Uma avaliação acerca do perfil somatossensorial de indivíduos hemiparéticos
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), descrito pelo Ministério da
Saúde do Brasil (2004), o acidente vascular cerebral (AVC) é definido como uma
síndrome clínica com desenvolvimento rápido de sinais clínicos de perturbação
focal ou global da função cerebral, com possível origem vascular e com mais de
24 horas de duração.
De acordo com Teixeira-Salmela, Olney e Nadeau (1999), esses sinais clínicos
estão relacionados com a localização e o tamanho da lesão, a natureza e as
funções da área atingida e com a disponibilidade de um fluxo colateral no
encéfalo e podem desencadear uma variedade de alterações no sistema
somatossensorial, cujo funcionamento é responsável por transmitir e analisar o
tato ou informações táteis de localizações internas e externas no corpo e na
cabeça, sendo o produto final desse processo denominado de apreciação de
sensações somáticas.
Segundo trabalhos realizados, seu comprometimento gera perturbações nas funções
sensório-motoras, cognitivas, e ações que envolvem a linguagem e percepção
intrasensorial, tornando estes indivíduos portadores de uma inabilidade
funcional (Danckert, Saoud, & Maruff, 2004; Sharp & Brouwer, 1997;
Teixeira-Salmela, Lima, Morais, & Goulart, 2005; Teixeira-Salmela, Lima,
Souza, & Goulart, 2006).
Sendo assim, Franzoi e Kagohara (2007), Lent (2008) e Shumway e Woollacott
(2003) postularam que as consequências da lesão em regiões responsáveis pelo
processamento das informações sensório-motoras desencadeiam incapacidades
variáveis a depender da sua extensão, caracterizadas por modificações no
controle motor voluntário, com paralisia ou paresia do lado contra lateral à
lesão (hemiplegia ou hemiparesia), alteração na marcha, espasticidade e
hiperreflexia profunda, mudança na imagem corporal e agnosias.
Estudos anteriormente publicados indicam que o controle postural está
diretamente relacionado com o funcionamento do sistema visual, do sistema
vestibular e do sistema somatossensorial, assim como, a interação entre eles e
a posterior relação com o planejamento motor e assim, com a execução do ato
motor voluntário (Carello, Silva, Kinsella-Shaw, & Turvey, 2008; Hortobágyi
et al., 2009; Lent, 2008; Mochizuki & Amadio, 2006; Shumway &
Woollacott, 2003). Esses sistemas oferecem subsídios adequados para a
elaboração do movimento através dos feedbacks sensoriais, tornando o sistema
motor cerebral dependente do sistema sensorial (Kandell, 2008; Lent, 2008;
Magill, 2000; Silva et al., 2008).
Sendo assim, Franzoi e Kagohara (2007) e Mochizuki e Amadio (2006) relataram
que em indivíduos portadores de hemiparesia após um AVC há alterações nestes
órgãos e nos seus respectivos mecanismos e como conseqüência, eles não
conseguem manter um equilíbrio na postura ereta e expressam modificação no
desempenho da marcha.
Portanto, de acordo com Cardoso (2007), essas modificações na integração
somatossensorial e suas repercussões na estruturação da imagem corporal e do
seu movimento geram mudanças no sentido neurofilosófico do que é entendido
sobre todas as dimensões do corpo humano.
Segundo Merleau-Ponty (1999), o ser humano consiste no centro da discussão
sobre o conhecimento. Este nasce e faz-se sensível em sua corporeidade ' eu
sou o meu corpo. Para ele, o corpo é o sentido de toda a existência humana.
Desta forma, alterar a percepção da imagem de seu próprio corpo como acontece
nos indivíduos incapacitados após sofrer um AVC, é modificar a consciência de
toda a plenitude deste modelo com a sua percepção do mundo, tal como afirmado
por Beresford (2006).
Diante da problemática referida, este estudo teve por objetivo avaliar o perfil
somatossensorial de indivíduos hemiparéticos espásticos vitimados de AVC com e
sem bloqueio visual.
MÉTODO
Este estudo foi operacionalizado utilizando a estratégia metodológica de uma
avaliação de contexto através de uma pesquisa experimental. Segundo Stufflebeam
(1977), esta metodologia é o tipo mais básico de avaliação, cuja finalidade é a
de fornecer um fundamento lógico para a determinação de objetivo.
Especificamente, a referida avaliação define o meio ambiental concernente,
descreve as condições reais e desejadas em relação ao referido ambiente,
identifica as carências não supridas e fornece informações para se planejar
ações necessárias para a resolução dos mesmos, como também as oportunidades não
utilizadas e diagnostica os problemas que impedem o entendimento das
necessidades de serem supridas e as oportunidades de serem utilizadas.
Amostra
A amostra deste estudo foi composta por 18 indivíduos hemiparéticos espásticos
vitimados de AVC, de ambos os sexos, com idades entre 45 e 67 anos, que faziam
fisioterapia em uma clínica escola da cidade de Salvador, Bahia - Brasil,
lúcidos e orientados, capazes de entender e executar comandos do avaliador e
que apresentavam marcha independente sem o uso de qualquer dispositivo. Estes
formavam um grupo denominado voluntário de acordo com a tecnologia da
amostragem de Cochran (1956).
Instrumentos e Procedimentos
Para a concretização desta pesquisa, durante o mês de Março de 2009, os
participantes do estudo foram submetidos aos seguintes testes, baseados nos
trabalhos de Mochizuki e Amadio (2006) e Teixeira-Salmela et al. (1999, 2005,
2006), a saber:
Contração Muscular Máxima: Através de isometria sustentada com olhos abertos e
posteriormente com olhos fechados com uso de venda da cor preta para oclusão da
visão.Foi verificado o tempo que o indivíduo conseguia manter a contração
isométrica máxima bilateral e simultânea dos seguintes grupamentos musculares,
através de cronómetro portátil da marca Casio Lap Memory.
Extensores do quadril: Com o indivíduo deitado de decúbito dorsal sobre uma
maca e membros inferiores em flexão, com apoio sobre a superfície plantar foi
solicitado realizar o movimento da ponte e sustentá-la o máximo de tempo
possível.
Flexores de quadril: Com o indivíduo em decúbito dorsal sobre uma maca, foi
solicitado ao participante realizar flexão de quadril de ambas as pernas com
joelhos extendidos simultaneamente até 45o de amplitude articular e sustentá-
las o máximo de tempo possível.
Extensores de joelhos: Com o indivíduo sentado sobre uma maca com membros
inferiores pendentes, foi solicitado que o mesmo realizasse extensão dos dois
joelhos de forma simultânea até 180o de amplitude articular e sustentá-los o
máximo de tempo possível.
Flexores de joelhos: Com o indivíduo deitado de decúbito ventral sobre uma
maca, foi solicitado flexão dos dois joelhos simultaneamente até 90ode
amplitude articular e sustentação o máximo de tempo possível.
Plantiflexão: Com o indivíduo na postura de pé, de frente a uma parede lisa,
com as mãos segurando esta e os pés à largura dos ombros foi solicitado que o
mesmo permanecesse o maior tempo possível na ponta dos pés, realizando a flexão
plantar.
Repetição de ciclos em bicicleta ergométrica vertical: Verificou-se o número de
ciclos realizados num intervalo de tempo de 1 minuto em uma bicicleta
ergométrica da marca Moviment, modelo 2700, com a carga mínima oferecida pela
mesma em dois momentos, primeiramente com olhos abertos e depois o mesmo
procedimento com olhos fechados.
Para a execução dos testes os participantes foram instruídos a estarem usando
roupa confortável e tênis como calçado.
Foi aferida a pressão arterial e a temperatura corporal para garantir
integridade clínica.
O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa
envolvendo seres humanos da Universidade Castelo Branco (UCB/RJ) e aprovada sob
protocolo nº 0163/2008.
A coleta de dados se deu conforme a resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde do Ministério da Saúde Brasileiro. Assim, inicialmente foi solicitada a
que todos os participantes assinassem o termo de consentimento livre e
esclarecido.
Análise estatística
A análise dos dados deste estudo foi realizada com base na comparação de
resultados estatísticos, utilizando-se o programa BIOESTAT 5.0.
Os resultados obtidos nas avaliações de contração muscular máxima de olhos
abertos e olhos fechados foram calculados através da estatística descritiva, a
média e o desvio padrão. Todos os dados foram considerados paramétricos pelo
teste de Shapiro-Wilk, portanto, para uma comparação entre olhos abertos e
olhos fechados utilizaram-se testes próprios para duas amostras pareadas já que
cada participante deste estudo contribuiu com dois escores em cada teste.
Desta forma, a média das diferenças entre os instantes olhos abertos e olhos
fechados foi analisada de forma paramétrica utilizando-se, para o efeito, o
teste t de Student para amostras pareadas.
RESULTADOS
Na Tabela 1 são apresentados os dados dos resultados dos indivíduos avaliados
em relação a sua capacidade de executar ciclos em uma bicicleta ergométrica
durante 1 minuto, de olhos abertos e olhos fechados.
Tabela 1
Avaliação da capacidade de reproduzir ciclos de bicicleta por 1 minuto
No instante de olhos abertos, os indivíduos apresentaram uma variação de
resultados entre 35 e 84 ciclos e a média do grupo ficou em 58.44 ciclos por
minuto, já no instante de olhos fechados a variação ficou entre 31 e 86 ciclos,
e a média em 51.23 ciclos por minuto. Assim observa-se uma diferença entre as
médias de 7.21 pontos, que se apresenta significante através do teste t (p =
.02), comprovando assim a diferença entre os dois instantes.
Já na Tabela 2, apresentam-se as médias dos testes que envolvem os movimentos
do joelho.
Tabela 2
Avaliação acerca da contração isométrica máxima em extensão e flexão do joelho
(tempo de contração em segundos)
Para a sua extensão, a variação de resultados no instantes de olhos abertos
apresentada pelos indivíduos ficou entre 3.75 e 45.00 segundos, sendo a média
do grupo de 20.44 segundos. Já no instante de olhos fechados a variação de
resultados obtidos ficou entre 2.13 e 32.63 segundos, obtendo-se uma média
igual a 15.26, o que faz perceber que existe uma diferença entre as médias dos
instantes olhos abertos e olhos fechados de 5.18 segundos, diferença esta
considerada significante, através do teste t (p = .03).
Ainda na Tabela 2 é possível perceber que os resultados relacionados à flexão
de joelho nos instante de olhos abertos apresentaram uma variação entre .23 e
14.18 segundos, e uma média de 4.39 segundos, e no instante de olhos fechados a
variação de resultados em relação à capacidade de flexão do joelho ficou entre
.23 e 8.51 segundos e a média foi apenas de 2.77 segundos. Nota-se, então, que
existe uma diferença de 1.62 segundos entre as médias dos dois instantes,
diferença esta que foi significante estatisticamente (p = .01).
A partir da Tabela 3 é possível observar o desempenho dos indivíduos em relação
à capacidade de contração isométrica do quadril quanto à extensão e flexão, nos
instantes de olhos abertos e olhos fechados.
Tabela 3
Avaliação acerca da contração isométrica máxima em extensão e flexão do quadril
(tempo de contração em segundos
Em relação à extensão do quadril no instante de olhos abertos, a variação entre
os resultados foi de 2.65 a 49.40 segundos, e uma média de 26.41 segundos. No
instante de olhos fechados a média foi de 3.47 segundos, com uma variação de
resultados entre 1.00 e 7.57 segundos. Observa-se, então, uma melhor capacidade
dos indivíduos em realizar a contração isométrica máxima do quadril em extensão
de olhos abertos, já que foi obtida uma diferença entre as duas médias de 22.94
segundos, a qual é significativa a p = .01.
Já em relação à contração isométrica de flexão de quadril no instante de olhos
abertos, a variação de resultados apresentados ficou entre 1.00 e 8.02 segundos
e a média foi de 4.70 segundos.
No instante de olhos fechados a média foi de 3.47 segundos, com uma variação de
resultados entre 1.00 e 7.57 segundos. Nota-se, então, uma diferença de 1.23
segundos, a qual também revelou uma expressão estatisticamente significativa (p
= .05).
Em relação à flexão plantar no instante de olhos abertos, os resultados dos
indivíduos demonstraram uma variação entre 1.30 e 14.50 segundos com uma média
de 6.77 segundos.
Já no instante de olhos fechados os resultados variaram entre .22 e 9.87
segundos e a média ficou em 3.56 segundos. A comprovação estatística desta
diferença entre as médias foi feita através do teste t para duas amostras
pareadas que revelou um p = .04.
DISCUSSÃO
Shumway e Woollacott (2003) definem o controle motor como a integração de
sistemas orgânicos com o objetivo de gerir o movimento. Sendo assim, a partir
dos resultados apresentados anteriormente pode-se sugerir que os indivíduos
avaliados apresentam uma dificuldade em desenvolver o "modelo de
processamento de informação" que envolve a captação do estímulo, a
decodificação, a percepção, o processamento central, a decisão da resposta, bem
como o seu planejamento e a sua efetivação para cumprir uma determinada tarefa
motora quando no instante de olhos fechados (Lent, 2008; Magill, 2000; Silva et
al., 2008). Ou seja, esses indivíduos apresentavam dificuldade em executar o
movimento propriamente dito que é definido por Beresford (2006) como o
comportamento motor dotado de significação ou com valor por ser oriundo de uma
consciência intencional surgida de um problema, ou de uma carência.
Considera-se então possível que estes participantes apresentem uma dificuldade
de conexão intersensorial entre o processamento das informações secundárias ou
de associação e as informações terciárias ou de integração onde ocorrem a
adição e combinação de todos os aspectos do estímulo recebido. Com isso,
baseado nas afirmações de Magill (2000) e de Kandell (2008) e no estudo de
Silva et al. (2008), os indivíduos avaliados podem ter uma baixa frequência de
condução neural nos processos cognitivos que envolvem planejamento (córtex pré-
frontal), organização da sequência (pré-motor) e envio das ações específicas
dos movimentos a serem executados (córtex motor). Assim, isto parece afetar o
envio de mensagens para dosagem de força e agilidade, alterando o que é
fornecido pelos feedbackssensoriais.
Sendo assim, os indivíduos podem ter apresentado problemas para organização da
atividade consciente e a sua regulação, programação e verificação no instante
de olhos fechados, o que os tornaram incompreensíveis em relação a tarefas
motoras seguidas e simultâneas que foram executadas num determinado período de
tempo e que exigem a atividade conjunta de vários grupos musculares (Carello et
al., 2008; De Paula, 2007). Ou seja, os executantes não conseguiram pensar
sobre os aspectos cognitivos, simbólicos ou processuais da tarefa motora
realizada de olhos fechados da mesma forma que fizeram de olhos abertos, ou
melhor, na ausência de movimento observável. Portanto, enquanto os julgamentos
(ou expectativas) de eficácia pessoal diriam respeito à convicção que o sujeito
tinha de poder executar com sucesso um comportamento necessário para produzir
determinado resultado, as expectativas de resultado diriam respeito à
estimativa de uma pessoa de que um dado comportamento iria conduzir a certos
resultados (Cardoso, 2007; Danckert et al., 2004; Hortobágyi et al., 2009).
Por fim, considera-se provável que os indivíduos avaliados neste estudo
apresentaram falhas de comunicação acerca das informações resultantes da
análise perceptiva que prosseguem na ordem do processamento, fluindo a seguir
para o estágio de decisão e depois o de programação de resposta, apresentando
uma desorganização na resposta desejada, enviando assim para a musculatura
prevista uma informação não correta em relação ao tempo de execução do
movimento.