Uma reflexão crítica sobre a prática científica e o seu contributo para a
qualidade de vida da sociedade
Uma reflexão crítica sobre a prática científica e o seu contributo para a
qualidade de vida da sociedade
J. Vasconcelos-Raposo 1, C.M. Teixeira 2, H.M. Fernandes 1
1 Direção da Revista Motricidade; Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
Vila Real, Portugal.
2 Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal.
O crescente ritmo a que atualmente o conhecimento é acumulado não tem reflexo
na melhoria da qualidade de vida dos povos, em geral. Na realidade, em alguns
casos, os progressos têm servido para reforçar a ideia, crescente nos tempos
que correm, que os seres humanos não são valorizados por essa condição (a de
serem Humanos), mas sim por outros artifícios culturais, nomeadamente a
capacidade financeira que têm. Esta é uma constatação que se faz sentir de
forma muito particular na área da saúde.
O objetivo nobre da ciência tem sido, ao longo dos tempos, apresentado como
sendo o de explicar os fenómenos e assim contribuir para a melhoria de vida da
Humanidade. Mas, na realidade, a prática científica tem vindo a ser promovida
com um enfoque práxico que, de alguma forma, é condicionador do comportamento
daqueles que investigam, uma vez que tende a privilegiar aspetos que encontram
pouco eco no bem-estar coletivo, mas sim nos que promovem a competição entre
aqueles que deveriam cooperar para produzir melhor ciência e com maior
relevância sociocultural. São encorajados e financiados, fundamentalmente, as
áreas de pesquisa onde se podem identificar novos produtos a serem
industrializados, ou seja, capazes de gerar mais-valias. É neste quadro que nos
propomos a apresentar uma reflexão crítica sobre a forma como alguns ganhos têm
sido integrados na vida de todos nós. Tomaremos como ponto de partida o que nos
é dado a observar no caso dos tratamentos de alguns tipos de cancro.
Ninguém contesta que a investigação na área dos estudos do cancro tem produzido
ganhos fantásticos, especialmente no que se refere às intervenções terapêuticas
através de novos fármacos. Acontece, porém, que estes, apesar de serem
financiados pelas populações em geral, através dos seus impostos, só estão
disponíveis para os que têm uma capacidade financeira diferenciada na
acumulação de capital. Quem mais tem, melhor tratamento recebe. Aos olhos dos
que se inspiram numa ideologia neoliberal nada emerge de estranho nesta
prática: é a lei do mercado. Porém, para quem recorre a análises um pouco mais
ricas, por serem de natureza interdisciplinar, tal diferença não deveria
existir, e o argumento economicista não é mais que a evidência de uma
capacidade limitada de processar informação que vá para além do ganho imediato
que o EU deseja ter. A evidenciá-lo está o fato de na crise que atualmente os
países enfrentam, como sequência de más práticas da banca, se considere normal
e até exigível que os Estados (todos os cidadãos e que nada fizeram para que a
crise tivesse lugar) tenham de estar a financiar a recapitalização desses
bancos que continuam a acumular lucros a um ritmo interessante. Seria de
esperar que os que defendem a diferença no acesso diferenciado dos medicamentos
erguessem a voz contra o apoio do Estado aos bancos e aos empresários falidos.
Mas esta é uma discussão política à qual a ciência não se deve manter alheia.
Caso contrário, o produto da investigação é um bem desvalorizado enquanto
ciência, para ser reconhecido e apreciado apenas quando transformado em
riqueza. O posicionamento acrítico da comunidade científica permite que os
pesquisadores vivam alienados das realidades socioculturais onde desenvolvem as
suas atividades. Quando nos mantemos acríticos permitimos que atrocidades sejam
cometidas em nome da ciência, tal como a história recente na área da saúde nos
demonstrou aproximadamente 70 anos atrás, tanto na Europa, como na Ásia. Toda a
prática científica não se deve alhear da dimensão humana, pois fazê-lo é,
direta ou indiretamente, legitimar a violação grosseira de alguns direitos
humanos básico, como é o caso da saúde.
O atual paradigma da produtividade científica é, por si só, uma contradição.
Por um lado, fazem-se apelos aos estudos interdisciplinares e por outro lado,
quando se fazem as avaliações curriculares aqueles que tenderam a aderir a essa
prática acabaram sendo prejudicados. De qualquer forma, estamos convictos que
encorajar a pesquisa inter e multidisciplinar é uma forma eficaz de promover a
capacidade de pensamento crítico e talvez por essa razão esses pensadores
tendam a estar em maior sintonia com as realidades socioculturais e as
condições de vida das pessoas que, em princípio, devem beneficiar da acumulação
do conhecimento científico.
Uma investigação científica orientada para a defesa e promoção da condição
humana deverá ter por base todos os aspetos que de uma forma ou outra se fazem
repercutir no dia-a-dia de cada um. Tal como conhecemos a ciência, assim como a
forma como formamos os cientistas, não iremos longe nos avanços a serem feitos
no que diz respeito à qualidade de vida das populações. Apenas uma prática
científica que combine saberes possibilita dar respostas às complexidades em
causa. Mas uma sociedade em que os próprios Homens da ciência, por questões
de vaidades pessoais se deixam envolver numa prática, intelectualmente menor,
de dividir os ramos da ciência em áreas científicas mais prestigiadas que
outras, pouco tem a esperar destes pensadores, pois perdem-se a olhar e a falar
de uma árvore como se fosse uma planta ornamental de um jardim qualquer, quando
na realidade é de uma floresta imensa.
Para esclarecer este aspeto tenhamos por referência dois domínios científicos
que tem por objeto de intervenção a mesma unidade, mas em perspetivas
diferentes: A Educação Física e a Medicina. Ambos têm o Homem como objeto de
trabalho; no entanto, a primeira tem por meta a autonomia e a capacidade de
trabalho educando que, em parte, a cada um que cabe a responsabilidade pela
preservação do seu estado de saúde, assim como também de todos os que com ele
constituem a comunidade onde vivem. Para a medicina, a intervenção é de outro
tipo, pois tem por intenção nobre curar e restituir a saúde. A diferenciar
estas duas temos que a Educação Física, para ser bem-sucedida requer um
envolvimento ativo e persistente de cada um, enquanto na prática da medicina
esse mesmo sucesso requer que o indivíduo abdique da sua liberdade de decidir,
em favor do médico.
Talvez como consequência do processo de evolução da espécie, os Homens tendam a
favorecer, nas suas análises e consequentes juízos, os aspetos negativos com
que se deparam no seu dia-a-dia. Por exemplo, sempre que algum tipo de
incerteza é vivenciado pelo Homem, o organismo disponibiliza um conjunto de
substâncias de forma a permitir uma resposta perante a eventual ameaça. Podemos
mesmo aceitar que há uma certa predisposição genética para privilegiar o
negativo em detrimento do positivo. Porém, essa forma de pensar implica,
também, reconhecer que valorizar os eventos positivos dá lugar a uma forma mais
complexa de estar e que esta, por sua vez, resulta de processos como os da
enculturação (aprendizagem da primeira cultura) e socialização (aprendizagem
das normas que regulamentam a interação entre indivíduos, grupos e
instituições). É exatamente essa dimensão cultural do Homem que serve de
alicerce à valorização do que se faz da ciência. Mas na última instância,
sempre que na forma de confronto entre a forma básica de estar na vida e aquela
que é mais consonante com a própria evolução da espécie (o criar cultura), há
um número vastíssimo de Homens que não vai além da resposta simplista da
genética e isso, na sociedade atual resulta no favorecer o que dá lucro. Assim,
a Educação Física promove o mais nobre da Humanidade, as práticas culturais,
preferencialmente tal como se enquadram no meio ambiente, ou que a tentam
imitar, embora estas tendem a não ser profissionalmente valorizadas apesar de
serem as mais diretamente responsáveis pelos ganhos em anos de vida que se têm
verificado. Porém, esse mesmo Homem, quando confrontado com a finitude da sua
existência procura ajuda e aquela que lhe é prestada é sobrevalorizada. Mas
mesmo assim, após o período de doença, e apesar de serem os médicos a
recomendarem mudanças do estilo de vida e que devem deixar de fumar, beber,
devem ser fisicamente ativos, etc., continuam sem valorizar o que é a
importância efetiva da Educação Física. Neste caso, esse reconhecimento já não
se deve ao desconhecimento mas sim à eventual necessidade de manter uma
narrativa de vida coerente e assim manter uma aparente saúde mental.
Mas olhemos de forma mais detalhada às posturas profissionais e às decisões
relativas às políticas de saúde pública: o caso do cancro.
Há um crescimento do número de cancros a cada ano que passa. Mas isto é
consequência, fundamentalmente, do fato de que as pessoas vivem mais tempo.
Quantos mais anos os indivíduos vivem, maiores as probabilidades de lhes ser
diagnosticado um cancro tendo por base o que naturalmente ocorre ao nível
biológico, com as alterações que inevitavelmente ocorrem ao nível do DNA
celular. Tem sido ao nível das alterações celulares que se têm verificado
grandes progressos no que se refere à capacidade de intervenção terapêutica.
Mas importa destacar um outro tipo de resultados da pesquisa que, por não estar
centrado no negativo que é a doença em si, não tem merecido a atenção que
deveria ter: o exercício físico.
A investigação científica tem evidenciado que uma larga percentagem dos casos
de cancro está associada a estilos de vida. De acordo com a Encyclopedia of
Cancer, Vol. 1, as mais recentes evidências epidemiológicas demonstram, de
forma inequívoca, que alguns cancros, nomeadamente os de pulmão, colo-rectal,
próstata e da mama, que no seu conjunto são responsáveis por mais de 50% dos
cancros diagnosticados no mundo ocidental, estão intimamente associados aos
hábitos comportamentais. Assim, o consumo de tabaco causa cerca de 30% dos
cancros, a inatividade física explica 5%, a obesidade associa-se a 15%, a dieta
a 10%, as bebidas alcoólicas a 5% e a exposição excessiva ao Sol 3%. Colditz, o
editor desta enciclopédia, argumenta que face a este conhecimento 50% dos
cancros podem ser prevenidos, uma vez que estão associados a comportamentos que
podem ser mudados.
Ao aceitarmos estes resultados, torna-se evidente, pelo menos para alguns, que
é urgente repensar algum do investimento que é feito na saúde, ou se quisermos
nos domínios da Educação e Promoção para a Saúde. Não é suficiente reconhecer
que é necessário que as pessoas mudem os seus comportamentos. Importa saber
quais os motivos presentes que levam os indivíduos a serem resistentes a essas
alterações no comportamento. Esta é uma área de intervenção profissional que
requer alguns cuidados, mas que infelizmente continua negligenciada nos
sistemas de ensino. Parece-nos inadequado continuar a insistir num modelo que
após décadas de aplicação se tem demonstrado ineficaz em garantir as mudanças
necessárias, se é que efetivamente se desejam essas alterações. É um erro
continuar a colocar no terreno, pessoas treinadas técnica e cientificamente
para intervirem no processo de prestação de cuidados médicos, para fazer
educação e promoção para a saúde. Uma das poucas áreas de formação para
intervir nestes domínios é o da Psicologia do Exercício e Saúde que expande a
intervenção psicoterapêutica, recorrendo ao exercício físico como mais uma
ferramenta para intervir no processo de alívio de sintomas, tal como se faz
recorrendo à farmacologia, e promovendo as mudanças comportamentais e estilos
de vida, o que lhe confere um estatuto único nos domínios científicos da saúde.
É inquestionável que a atividade física é promotora de saúde. Uma política de
saúde de cariz preventivo, decerto que deveria ter em atenção as medidas que
pudessem, concomitantemente, promover os níveis de saúde e poupanças nos gastos
que o Estado tem na oferta centrada numa medicina curativa. Por exemplo, a
promoção da atividade física regular, devidamente prolongada no tempo e
supervisionada por profissionais devidamente treinados na área da promoção de
mudanças ao nível do indivíduo como um TODO (mente e corpo), no mínimo,
contribuiria com uma redução de aproximadamente 20% dos casos de cancro. Os
restantes 30% poderiam ser alvo de programas adequadamente desenvolvidos por
psicólogos. Neste caso, os profissionais especializados em Psicologia do
Exercício e da Saúde apresentam vantagens sobre as restantes áreas de
intervenção mais tradicionais ou convencionais, dada a conjugação de saberes e
competências nestes domínios de intervenção.
Para uns, esta proposta é certamente utópica, na medida em que no presente não
se deslumbram entidades políticas e financiadoras sensibilizadas para esta
forma de intervenção. Porém, com base no conhecimento que temos da história da
Humanidade e em particular da ciência, estamos certos que o dia virá em que os
povos reivindicarão para si o produto dos seus investimentos efetivos que
fazem, através dos impostos que pagam, para o desenvolvimento dos novos
medicamentos ou práticas terapêuticas que ainda só são de acesso a grupos
restritos. É uma questão de direitos humanos, na nossa opinião.
Enquanto responsáveis pela edição de uma revista científica sentimo-nos
legitimados para encorajar e até propor um novo olhar sobre as atuais práticas
de oferta de serviços na saúde. Defendemos que o bem-estar coletivo se deve
sobrepor à lógica de práticas que privilegiam a acumulação de mais-valias em
detrimento daquele que deve ser um bem-maior: a condição humana e o direito à
felicidade.