Num desporto com valores: Construir uma sociedade mais justa
Num desporto com valores: Construir uma sociedade mais justa
Sports with values: Constructing a fairer society
J. Vasconcelos-RaposoI
IDiretor da Revista Motricidade; Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
Vila Real, Portugal
A sociedade que atualmente se constrói, no mundo moderno, alicerça-se num
conjunto de valores que são, na sua essência, os pilares do funcionamento dos
sistemas de economia de mercado. Estas mudanças requerem que repensemos o
sistema de ensino, cuja estrutura curricular é, ainda, ineficiente a dar
resposta a tais alterações, uma vez que persiste em validar quase que
exclusivamente as áreas de formação associadas às necessidades da indústria e
do mundo financeiro, intimamente associado ao retorno rápido e altamente
lucrativo. A importância atribuída às atividades desportivas e até mesmo à
saúde, também tende a estar associada aos setores geradores de mais-valias,
sejam esses a indústria química como a que está associada ao exercício físico e
estas vão desde o negócio dos suplementos alimentares à sapatilha passando
pelos serviços sofisticados dos SPAS e ginásios. Tudo isto é pensado e
realizado sem ter em conta aquilo que deve, verdadeiramente, ser tido como
relevante para a felicidade dos cidadãos.
Nos tempos que correm, tipificados pela crise de valores socioculturais e pelo
que parece ser o esgotamento do modelo económico construído na base da
acumulação desenfreada de riqueza, importa repensar o papel que as atividades
desportivas podem e devem desempenhar na sociedade em geral e isso só poderá
ser feito de forma adequada através da pesquisa. Assim, neste editorial
deixamos ficar aquelas que nos parecem ser áreas carenciadas no que à pesquisa
diz respeito e nesse sentido deixando anunciado o quanto desejaríamos ver
submetidos à Motricidade artigos nas áreas que de seguida abordamos. Importa
esclarecer que alguns destes temas estiveram na base da minha intervenção
enquanto docente no curso de educação física e desporto e em alguns aspetos
reflete aquela que foi a bibliografia de base para essas unidades curriculares.
São várias as correntes teóricas que defendem que através das atividades
físicas podemos desenvolver os valores inerentes aos processos que garantem a
funcionalidade e a reprodução das sociedades alicerçadas numa economia de
mercado, e que têm por base as noções de sucesso, progresso, materialismo e
conformidade externa. Sem que os cidadãos sejam devidamente educados sobre este
conjunto de valores, torna-se particularmente difícil promover o
Desenvolvimento de qualquer Sociedade. A tese que defendemos é que deverá
existir uma maior formação dos cidadãos para que estes possam de forma
esclarecida beneficiar com o seu envolvimento em Atividades Físicas. Dados os
ganhos socioeconómicos que advém deste tipo de comportamento a educação e
promoção de cidadania deverão ser esclarecedores e integradores dos saberes já
acumulados sobre os estilos de vida saudáveis, mas não só. Só com o
desenvolvimento de políticas de cidadania e de saúde preventiva é que se
tornará possível acelerar o processo de integração dos princípios básicos
inerentes ao civismo, tal como este serve de base a qualquer sistema
democrático onde a solidariedade social é um valor e uma prática preponderante,
tal como essa se alicerça nos princípios socioculturais que servem como pilares
para as múltiplas opções comportamentais com que nos deparamos no nosso dia-a-
dia. Os verdadeiros pilares socioculturais dos países de língua portuguesa são
maioritariamente os princípios da ética cristã.
No presente, vivemos períodos de crise. No discurso político-ideológico fala-se
da crise tal como ela vai acontecendo associada ao sector económico-financeiro,
mas a crise a que nos referimos transcende esse contexto, por que nos referimos
à crise implantada no domínio dos valores humanos, tão esquecidos pela classe
política que se instalou nas cadeiras do poder. Para criar as condições
necessárias para a promoção da felicidade dos cidadãos não é suficiente a
implementação de programas económicos alicerçados em políticas de austeridade,
para salvaguardar os interesses do grande capital, nem de políticas de
investimento sem tomar em consideração as caraterísticas das populações a serem
afetadas por esse tipo de ações. Há muito que os modelos economicistas são
questionados, na medida em que as sociedades que ignoram os direitos dos seus
cidadãos, tal como estes se fundamentam na satisfação e qualidade de vida, têm
vindo a acentuar as desigualdades sociais, verificando-se um acentuado aumento
do número de pobres e diminuindo o número de ricos para aumentar o número dos
muito ricos e isto sem esquecer o acelerado ritmo de crescimento do exército
de desempregados. Em suma, não se faz desenvolvimento socioeconómico sem que
este seja acompanhado de mudanças na mentalidade das pessoas e isto implica um
processo de aprendizagem de novos valores, de modo a que as pessoas possam
adaptar-se convenientemente ao novo tipo de exigências do sistema sociocultural
que se pretende construir num mundo que é, cada vez mais, global.
A sociedade do futuro não pode ser pensada em termos da herança histórico-
cultural das sociedades onde nos inserimos. O futuro tem os seus pilares
naquelas que são as práticas de hoje, independentemente do contexto onde elas
se inserem. Neste editorial procuramos apresentar argumentos que levem a que os
pesquisadores do fenómeno desportivo tomem em consideração aquilo que
consideramos urgente pesquisar através das lentes de um ethos que emerge de
quem vive intensamente o mundo das emoções desse fenómeno sociocultural que é o
desporto. Assim, de seguida apresentamos um conjunto de considerandos que
deverão ser tomados em consideração no contexto das atividades físicas e
desportivas e que devem intencionalmente integrar qualquer tipo de programas de
atividades físicas dirigidas para as populações em geral, mas de uma forma
muito específica quando concebidos para os mais jovens. A abrangência destas
áreas do saber é de tal forma extensa que não é possível abordá-las no limitado
espaço de que dispomos. Assim, e com o propósito de ser objetivo e claro na
apresentação das nossas ideias, propomo-nos abordar, apenas, a questão da
mudança das mentalidades e como a prática desportiva é um elemento fundamental
para se atingir esse objetivo, desde que devidamente planificado e objetivado
nas políticas desportivas e educativas, assim como na oferta de atividades para
a comunidade em geral e para todos os programas que abranjam os jovens.
A Educação Física, a Atividade Física, o Exercício e o Desporto são aspetos
fundamentais para a formação e qualidade de vida dos cidadãos e das próprias
sociedades. A Educação Física, apesar de fazer parte dos curricula escolares, é
vista no contexto escolar como algo secundário às outras disciplinas do plano
de estudos escolares. A Atividade Física e o Exercício, há muito que foram
identificados como elementos centrais para a promoção e manutenção da saúde e
já existe evidência científica que demonstra que esta desempenha um papel ativo
nos processos de restituição da saúde.
O Desporto, ao longo da História tem sido instrumentalizado como ideologia
subjetiva para que aqueles que estão no poder possam prolongar-se nesse
exercício. Parte dessa instrumentalização pode ser identificada na retórica que
reproduz a ideia de que a prática desportiva é promotora de hábitos de saúde.
Essa afirmação é apenas metade da realidade daquela de que nos podemos
aperceber através dos conhecimentos adquiridos pela pesquisa científica. O
Desporto é um complemento do processo promotor de hábitos de saúde e de civismo
desde que oferecido e supervisionado por profissionais devidamente treinados
nesta área de intervenção. Este é um aspeto frequentemente ignorado nos estudos
que pretendem avaliar a relação entre atividade física e qualquer aspeto
associado à qualidade de vida dos cidadãos. Assim, recomendamos que os estudos
no futuro integrem como variável independente a formação dos profissionais que
atuam nesta área. Dos estudos preliminares que temos realizado deparamo-nos com
a realidade de que a formação académica hoje oferecida ao nível do ensino
superior requer particular atenção para que estes profissionais possam ser bem-
sucedidos na transmissão dos valores que abaixo passamos a descrever.
As sociedades do futuro requerem que os seus cidadãos se tipifiquem em torno
dos seguintes aspetos: Entusiasmo, cooperação, lealdade, amizade, autocontrolo,
alerto, autoiniciativa, intencionalidade, condicionamento, habilidade, espírito
de equipa, firmeza/ atitude, autoconfiança e nobreza competitiva. A literatura
nos domínios da excelência apresenta como requisitos para o sucesso dos
cidadãos estes parâmetros/ valores, mas na prática eles servem bem mais que os
interesses pessoais, na medida em que servem, também, para guiar qualquer
processo de construção de uma sociedade onde seja possível que a vasta maioria
dos seus membros tenham acesso às condições para aspirar a serem felizes na
nova tipologia de sociedade que está em construção, outros diriam em
ebulição.
Abaixo apresentamos os valores que devem guiar a prática profissional dos
profissionais que intervêm na área da Educação Física, Atividade Física,
Exercício e Desporto aquando da conceção e oferta de atividades:
Entusiasmo: É essencial na medida em que um indivíduo entusiasmado intervém
como elemento estruturador dos outros que participam nas mesmas atividades.
Este é um valor que podemos promover com as atividades de grupo e direcionadas
para a comunidade em geral. Implica promover, especialmente entre os jovens, a
ideia que devem envolver-se nas iniciativas e atividades, nas suas e nas dos
outros, apenas quando acreditam que podem ser bem-sucedidos na sua entrega. Em
suma, promover a importância do trabalho, quer para assegurar o bem-estar
pessoal como o coletivo.
Cooperação: De alguma forma este valor está associado ao entusiasmo e consiste
em desenvolver nos cidadãos a capacidade de analisar as "coisas" segundo a
perspetiva que os outros defendem, de forma a se encontrarem estratégias de
ação que sejam mobilizadoras da maioria dos participantes. É privilegiar a
equipa. Isto não implica abdicar dos objetivos pessoais. Aqui desejamos
promover a ideia de que os índices de rendimento de cada um só tem significado
real quando contextualizado ao nível da comunidade em que o indivíduo se
insere.
Lealdade: Este valor adquire-se através da promoção da consistência entre as
ações e o discurso individual (autorrespeito) como valor integrador dos
comportamentos e atitudes, onde o elemento valorizado para a integração do
indivíduo nas ações de grupo sejam os valores que defende, tendo por base o
princípio básico do respeito pelos outros. Nas sociedades ocidentais a
preponderância do individualismo existe em desequilíbrio com os que privilegiam
o bem-estar da comunidade em geral. Assim, apesar de a participação ser ao
nível dos desportos coletivos ou individuais há um conjunto de valores e de
práticas que lhes atribui um valor real. É a sociedade em geral que valoriza os
níveis de prestação, em suma, é a sociedade que confere valor às práticas, quer
sejam individuais quer sejam coletivas e fá-lo em função dos valores que
pretende ver salvaguardados.
Amizade: Resulta da estimulação mútua entre as pessoas que se associam com o
propósito de levar a cabo, com sucesso, uma tarefa qualquer. São ingredientes
deste valor os seguintes elementos: a) respeito mútuo; b) devoção ao que se
assumiu como projeto conjunto; c) dedicação e sinceridade para com as pessoas
com quem se participa nas atividades (espírito de equipa); d) ser-se verdadeiro
para com os outros. O mero profissionalismo, por si só, não produz resultados,
especialmente no contexto do desporto onde o imediatismo do resultado tende a
ser transformado em maior valor comercial do atleta. Aqui, tal como constatamos
no que se refere à lealdade, a amizade como valor e para ser entendida como tal
deverá ser projetada para a comunidade mais imediata em que se insere o atleta:
a claque do seu clube. É esta que por sua vez serve de meio para a construção
mais lata dessa projeção de humanismo. É, em parte, o reconhecimento da relação
de amizade entre os jogadores e a claque que leva a que estes sejam admirados e
apreciados, mesmo pelos membros das equipas rivais.
Autocontrolo: Tomar consciência do papel real que se tem nas atividades em que
se participa. É compreender que o todo produz, sempre, mais e melhor que o
indivíduo. Através da prática desportiva é possível transmitir aos jovens a
norma comportamental de que a nossa liberdade, concomitantemente, acaba onde
começa a dos outros, mas também se expande quando os outros livremente aderem
às nossas iniciativas.
Alerto: Integrar as atividades com a atitude de dar o seu contributo e
concomitantemente aprender algo de novo para poder melhorar as suas
capacidades. Associado ao desenvolvimento da mestria (ou excelência) implica
uma procura constante para identificar e aprender como a sua melhoria contribui
para o aumento da eficácia e da eficiência do coletivo. Este princípio é
essencial para o desenvolvimento da ideia de progresso desde que as
intervenções dos educadores e dos técnicos desportivos tenham como preocupação
central a orientação cognitiva para a mestria: todas as experiências são
oportunidades para se aprender algo mais que nos vai permitir ir mais além
naquilo em que optamos aplicar os nossos esforços.
Autoiniciativa: Cultivar a capacidade e a habilidade de tomar decisões sozinho,
o desejo em assumir riscos para redefinir o limite das suas capacidades. Isto
implica que necessitamos educar promovendo a motivação intrínseca de modo a que
daí advenham as vantagens do auto-ensino-aprendizagem. Este valor reveste-se da
maior importância na medida em que associa a procura constante para se ser
melhor (diferente) sem que para isso seja necessário espezinhar os outros.
Promover a ideia que entre nós e os nossos sucessos está apenas a nossa força
de vontade e a determinação em querer ir mais além e que essa força deverá
depender do compromisso que assumimos perante nós próprios e de que as metas
são alcançáveis, desde que sejamos realistas, trabalhadores e disciplinados no
trabalho.
Intencionalidade: Implica desenvolver a habilidade de resistir às tentações e
manter a direção dos esforços para se atingir os objetivos que foram definidos
como critério de sucesso. Todo o comportamento é intencional. Assim, importa
treinar os jovens desde muito cedo sobre as vantagens da definição de
objetivos. Esta habilidade não é apenas relevante para o contexto da prática
desportiva. Na medida em que a intencionalidade comportamental é o âmago do
comportamento, os profissionais que intervêm na área da Educação Física, do
Exercício e do Desporto deverão assumir a responsabilidade de educar,
intervindo ativamente no processo da gestão do tempo a que os jovens estão
sujeitos no seu dia-a-dia.
Condicionamento: Refere-se ao equilíbrio estabelecido entre o exercício físico,
o descanso e os hábitos alimentares. Da interação destes resulta uma formação
moral, mental e física adequada às exigências do mundo produtivo, especialmente
daqueles que ambicionam posições de liderança. Com a combinação destes fatores
consegue-se o desenvolvimento da resistência mental. Este aspeto alicerça-se na
autodisciplina. Mas, mais uma vez, estes princípios deverão ser transmitidos
como parte integrante da formação teórico-prática que deverá fazer parte dos
conteúdos da unidade curricular de educação física que se oferece nas escolas.
Habilidade: Desenvolvimento do conhecimento necessário para executar eficiente
(com o menor esforço possível) e eficazmente (conseguindo os objetivos
previamente definidos) as tarefas inerentes às ações em causa. Implica estar
preparado para melhor interpretar e, consequentemente, responder às situações
de surpresa. Da prática desportiva deverá aprender-se como com o trabalho
disciplinado e devidamente orientado se desenvolve a inteligência, tal como
esta pode ser aferida através das capacidades que o indivíduo apresenta em
contextos específicos. O importante é que se consciencialize os jovens do
processo que conduz a essas estratégias para a resolução de problemas.
Espírito de equipa: Ser-se capaz de negociar os interesses pessoais em função
dos do coletivo, é saber como as vitórias do coletivo também são veículo para a
promoção pessoal. A realidade da sociedade contemporânea é de tal forma
complexa que requer níveis de intervenção dificilmente ao alcance de um só
indivíduo. É com base nesta constatação que tão frequentemente somos expostos
aos apelos para a constituição de equipas multidisciplinares, para que os
sucessos possam ser alcançados o mais eficientemente possível.
Firmeza/Atitude: Ser firme e ter atitude é ser-se aquilo que se é estando à
vontade em qualquer situação. Por outras palavras, é nunca estar em conflito
consigo mesmo. É ser-se possuidor de um conjunto de valores orientadores e
aplicáveis às múltiplas atividades em que os indivíduos optam por se envolver.
O que aqui se apresenta é inerente ao processo de desenvolvimento de uma
orientação cognitiva para a mestria e como esta tem por base a motivação
intrínseca.
Autoconfiança: É ter respeito sem se ter medo, ser confiante é saber que nos
preparamos o melhor possível para a tarefa com que nos deparamos. É ter a
consciência que quem trabalha sempre alcança. Mais uma vez, o tipo de
experiências que podem ser vividas pelos jovens no contexto da educação física,
porque construídas a partir das sensações físicas associadas ao sucesso das
realizações motoras e tal como estas se expressam nas emoções típicas de quem
tem sucesso, representam um registo de tal forma poderoso que mais facilmente
podem ser generalizáveis para os restantes contextos em que os jovens
participam.
Nobreza Competitiva: É procurar ser-se amanhã melhor do que se é hoje, algo que
se faz com base numa motivação intrínseca. É, em suma, a paixão de fazer bem
feito tendo como referência as prestações já realizadas por si, assim como
pelos outros. Este valor tem por base uma visão humanista do ser humano. O
importante é termos a certeza que tudo fizemos para a cada dia que passa
podermos ser, enquanto pessoas detentoras de um estatuto social, melhor do que
fomos no dia anterior. É nunca se assumir que as coisas são estanques e que o
que temos hoje não é permanente e que para o mantermos é requerido um esforço
diário e assim potenciarmos as probabilidades de as termos no amanhã. Em suma,
é também na nobreza competitiva que manifestamos a nossa solidariedade social:
o melhor de nós próprios.
Com base nestes catorze valores procuramos desenvolver nos jovens o princípio
deontológico que o Sucesso é obtido como a consequência natural de muito
trabalho e ao longo de muito tempo. Sem este tipo de compromisso temporal o que
se consegue são êxitos, que normalmente estão associados ao fator sorte. Em
suma, na vida, tal como nas atividades desportivas reconhecem-se as seguintes
formas para alcançar o sucesso: 1) através do trabalho (quem trabalha
honestamente tem sempre sucesso); 2) nunca estar satisfeito com o nível de
prestação atingido (procurar de uma forma sistemática redefinir os seus
limites) ; 3) ser paciente e saber esperar pelo momento em que se culminarão os
esforços (que ocorre no futuro).
O conceito de Progresso fundamenta-se em noções quantitativas assim como nas
orientações cognitivas e temporais que os sistemas socioculturais promovem.
Quando visto aos olhos da economia de mercado o progresso tem um significado
específico. Em termos quantitativos, as pessoas estão sujeitas a um conjunto de
estímulos que visam promover o consumo, na medida em que este se apresenta como
o fiel da saúde das economias em causa. Assim, as pessoas procuram ter mais e
melhor. Porém esta procura de se ter "cada vez mais" deverá alicerçar-se na
aceitação de valores básicos e que deverão ser preservados, através da
reprodução cultural, de modo a salvaguardar a integridade sociocultural dos
sistemas em que nos inserimos. Por outras palavras, procuramos educar as
pessoas no princípio de que as mudanças são necessárias, que todo e qualquer
indivíduo é capaz de influenciar esses processos, mas que estas, para serem
eficazes, deverão ocorrer preferencialmente, na ausência da revolução. Em suma,
o bem-estar do indivíduo é o pilar do bem-estar da sociedade em geral.
Relativamente às orientações cognitivas e temporais, todas as sociedades tendem
a privilegiar uma das seguintes três: passado, presente e o futuro. Para
assegurarmos o progresso dos sistemas socioeconómicos, alicerçados em
princípios de igualdade e justiça social, importa desenvolver nos jovens, desde
os primeiros anos de escolaridade, uma orientação para o futuro. Também neste
domínio as atividades desportivas revestem-se da maior importância na medida em
que a aprendizagem das habilidades motoras se deverá fazer por etapas, o que
implica, por parte do docente, uma gestão por fases na relação ensino/
aprendizagem. A participação em jogos ou competições também devem ser
fundamentadas na definição individual de objetivos. Esta prática visa
desenvolver simultaneamente as capacidades de atenção exigidas ao nível da
capacidade de concentração, assim como no desenvolvimento da motivação
intrínseca, requisito imperioso para o desenvolvimento da excelência, seja
qualquer for o âmbito de aplicação.
Quanto à dimensão Materialista impõe-se afirmar que este é um direito básico de
cada indivíduo, na medida em que em última instância da análise o que este
conceito implica é que todos deverão ser compensados com algo de concreto e
compatível com o seu esforço, suas capacidades e em função das suas prestações.
Um bem material é tudo quanto pode ser quantificável, nomeadamente definir como
objetivo correr 100 metros em 10 segundos e conseguir tal proeza. Ter um
salário adequado às mais-valias associadas ao trabalho desenvolvido tendo como
referência tanto as habilidades requeridas para a realização das tarefas
(presente) como no desenvolvimento das capacidades para executá-las (todo o
processo de formação: passado). Com a prática desportiva eficazmente
promoveremos o materialismo como um bem na medida em que sem este se torna
difícil o desenvolvimento da motivação intrínseca que no contexto do sistema
social em que nos inserimos tenham ganho um significado acrescido para o
envolvimento dos indivíduos em qualquer atividade.
Finalmente, nenhuma sociedade tolera a total liberdade dos seus cidadãos ou
membros. Daí que a Conformidade Externa seja um requisito fundamental para
assegurar, simultaneamente, a integração social dos indivíduos e da sociedade
no seu todo. Por esta razão, através da definição da filosofia de participação
nas atividades desportivas se definem como prioridades a noção de
representatividade (personalidade coletiva). Como alunos, ao vestirem a
camisola da escola, do colégio, da universidade ou do clube são, cada um em si,
é a representação viva do todo (todos) que se constitui e renova na
identificação e comunhão em torno dos mesmos símbolos ou agente de ação.
Através desta prática torna-se possível desenvolver o respeito pelas
expectativas da comunidade em que se inserem, nomeadamente: 1) a família, 2) os
amigos, 3) grupo social, 4) grupo religioso, 5) grupo de trabalho, e 6) as
comunidades a que pertence. Sem se desenvolverem estes sentimentos básicos
dificilmente se poderão desenvolver outros de âmbito mais abrangente como é,
por exemplo, o sentimento de Nacionalidade.
Através das relações estabelecidas entre atletas e treinadores e como estes,
por sua vez, respondem às expectativas da comunidade em geral, os jovens
aprendem que os seus comportamentos serão tanto mais livres quanto mais
estiverem em conformidade com o bem-estar comum.
Para além destes aspetos prioritários para orientação das atividades
desportivas a serem implementadas pelos órgãos competentes, é ainda de tomar em
consideração o fato que o grau de exigência académica deverá ser elevado e como
tal será necessário proporcionar aos discentes a possibilidade de descansarem
ativamente. A atividade física, para além de estruturadora, serve também como
forma de combater a alienação inerente ao trabalho repetitivo que na maioria
das vezes é monótono, para além de decorrer em lugares onde graças à ausência
dos valores aqui descritos é rico em conflitos entre colegas e onde, por vezes,
a competência de uns é objeto de inveja por parte dos outros.
Tanto quanto nos é dado a observar, nenhuma atividade oferece a riqueza e a
complexidade de dinâmicas que visam a promoção destes valores ideológicos como
as atividades desportivas. Se assim é, por que razão os governos não valorizam
esta componente da formação dos cidadãos?
A resposta requer mais compromisso para com as questões assim referidas, assim
como uma praxis científica mais implicada. Quanto ao envolvimento da classe
governante somos da opinião que a sua atitude reflete a falta de formação e
informação que aqui apresentamos como urgente. Sem este esforço, quer ao nível
da pesquisa quer no desenvolvimento de ações educativas, continuaremos a
assistir à instrumentalização do desporto. A mudança que preconizamos requer
que a sua gestão seja feita por indivíduos cujo grau de conhecimentos sobre a
complexidade do fenómeno desportivo seja suficientemente rico, para que pelo
menos entendam a razão de ser dos argumentos que aqui sugerimos.
Estas são áreas difíceis de serem estudadas mas estamos certos que em breve
poderemos partilhar a alegria de sermos veículo para a apresentação de
resultados à comunidade científica através da Motricidade.