Polirradiculite por Herpes Zoster: Uma invulgar causa de monoparésia
INTRODUÇÃO
O Herpes Zoster ou Zona é causada pelo Vírus Varicela Zoster (VVZ) e
caracteriza-se por uma erupção cutânea vesicular, unilateral, dolorosa,
geralmente restrita a um dermátomo[1] embora possa atingir dois ou mais
adjacentes, nomeadamente em doentes imunocomprometidos[2].
A sua incidência na população geral é 10- 20%[1], estando aumentada em idosos e
em doentes imunodeprimidos, designadamente em infetados pelo Vírus da
Imunodeficiência Humana (VIH) [1], nos quais a taxa de complicações está também
aumentada[3]. A contagem de células CD4+ neste grupo parece estar relacionada
com a incidência de Zona[4], correspondendo a 47,2 por 1000 pessoas/ano para
uma contagem de CD4+ entre 200 a 499 células/ microlitro e 97,5 por 1000
pessoas/ano para uma contagem de CD4+ inferior a 200 células/ microlitro[1].
A Zona resulta da reativação do vírus após latência no gânglio da raiz dorsal.
Em aproximadamente 3% dos casos[5] pode provocar 2 a 3 semanas após o início
sintomático, défice motor e atrofia muscular no miótomo correspondente ao
dermátomo atingido[6], por migração viral para as raízes/corno anterior
resultando em inflamação e hipervascularização secundárias[7].
Os territórios mais frequentemente atingidos correspondem ao nervo facial (50%
dos casos), seguindo-se o membro superior com envolvimento predominante de C5-
C7[8,9]. O diagnóstico de radiculite provocada por Herpes Zoster é
fundamentalmente baseado na história clínica de dor e erupção cutânea,
associados a défice de força muscular no território correspondente[8]. Estudos
radiológicos permitem excluir patologias que possam causar sintomatologia
similar (Quadro_I). Os achados electroneuromiográficos são importantes na
confirmação do diagnóstico e consistem habitualmente na normalidade dos
potenciais de ação sensitivos e redução da amplitude dos potenciais motores,
com presença de ondas positivas e fibrilações em dois músculos enervados por
nervos periféricos distintos originados a partir da mesma raiz motora[10].
O tratamento baseia-se no controlo da dor e na terapêutica com aciclovir oral
iniciado o mais precocemente possível[11] aliado a tratamento de reabilitação,
quando existe comprometimento motor. Esta desempenha um importante papel na
analgesia e recuperação motora do doente, embora a literatura seja escassa
relativamente a programas de reabilitação pós-herpética[12].
Em geral o prognóstico é favorável, havendo em 75% dos casos recuperação
completa vários meses depois[2].
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 62 anos, caucasiano, previamente autónomo. Tinha como
antecedentes uma hipostesia do polegar direito, sob tratamento fisiátrico na
área de residência.
Recorreu ao Serviço de Urgência com queixas de omalgia direita tipo queimor, de
início súbito, com predomínio noturno e irradiação para o cotovelo, sem outras
queixas. Negava febre, traumatismo, realização de exercício violento, bem como
infeções recentes.
Ao exame físico encontrava-se apirético, sem alterações da mobilidade ativa ou
força muscular daquele membro. Apresentava hipostesia na região do polegar
direito e os reflexos osteotendinosos (ROT's) eram simétricos. As provas
tendinosas eram negativas. Tinha dor à palpação na região do ombro e braço
direitos, sendo detetada erupção vesicular cutânea no território de C5 e C6
homolateral, compatível com Zona, pelo que o doente foi medicado com aciclovir
oral e analgésico, tendo alta para o domicílio.
Cerca de 15 dias depois, acorre novamente ao Serviço de Urgência por
persistência de cervicobraquialgia direita, associada a défice progressivo de
força muscular do membro superior homolateral.
Ao exame físico apresentava lesões em estado cicatricial no membro superior
direito, sem adenopatias palpáveis, mas com discreta atrofia do músculo
deltoide. A mobilidade passiva do membro encontravase preservada, estando a
mobilidade ativa e força muscular diminuídas (Quadro_II).
Apresentava hipostesia no território de C5 e C6 e os reflexos bicipital,
braquiorradial e tricipital estavam diminuídos.
Realizou telerradiografia e ecografia do ombro que não revelaram alterações e
tomografia computorizada cervical que mostrou alterações osteodegenerativas da
coluna, sendo internado no Serviço de Ortopedia para estudo.
Efetuou ressonância magnética da coluna cervical que revelou
espondilodiscartrose difusa, com maior expressão de C3 a C6 e presença de
complexos discoosteofitários de base larga que estreitavam o canal raquidiano,
condicionando deformidade da vertente anterior da medula espinhal em C3-C4 e
estenose dos foramina em C3-C4 e C4-C5 à direita e C5- C6 à esquerda, podendo
causar comprometimento plurirradicular.
A electroneuromiografia evidenciou uma polirradiculite direita, atingindo as
raízes de C5, C6, C7 e com menor intensidade C8. Os potenciais de ação
sensitivos estavam preservados, havendo um aumento da latência e diminuição da
amplitude dos nervos mediano e radial. A exploração dos músculos deltoide,
bicípete, tricípete e curto abdutor do polegar não detetou atividade voluntária
e mostrou-se muito deficitária nos músculos longo supinador, extensor comum dos
dedos e grande palmar, sendo registados em todos os músculos sinais de
desnervação ativa, com presença de ondas positivas e fibrilações em todos eles.
As serologias para os vírus da hepatite B e C foram negativas, bem como para
Citomegalovírus, Epstein Barr, Sífilis e Borrelia. Detetou-se VIH positivo, com
contagem células CD4+/mm3 245.
Perante o quadro foi retomado o aciclovir oral e iniciada terapêutica
analgésica dirigida, sendo solicitada a colaboração de Medicina Física e de
Reabilitação (MFR).
Durante o internamento o doente apresentou uma dor avaliada pela escala visual
analógica (EVA) da dor equivalente a 8, mantendo o quadro de monoparésia do
membro superior direito acima descrito.
Iniciou programa de tratamento fisiátrico em regime de ambulatório, visando
analgesia, aumento das amplitudes articulares, fortalecimento muscular e treino
de atividades de vida diária.
Três meses após o inicio do tratamento, o doente apresentava uma EVA da dor
equivalente a 0, mantinha alteração do ritmo escápulo-umeral, com atrofia dos
músculos deltoide e supraespinhoso, mas com notório aumento das amplitudes
articulares ativas (Figura_1) e da força muscular (Quadro_III):
Figura_1
Cinco meses após início de programa de reabilitação, o paciente apresentava
amplitudes articulares completas (Figura_2), força muscular preservada (grau 5/
5 em todos os grupos musculares avaliados) e simétrica. Não manifestava défices
de sensibilidade superficial e profunda e os ROT's eram simétricos.
Recuperou a funcionalidade do membro superior e estava autónomo em todas as
atividades de vida diária.
Figura_2
DISCUSSÃO
A Zona, embora relativamente frequente na população em geral, raramente cursa
com défice motor concomitante.
Os autores descrevem o caso particular de um doente cuja reativação do VVZ deu
origem a um quadro de polirradiculite com atingimento das raízes anteriores e
consequente défice motor. O diagnóstico diferencial coloca-se com todas as
situações de dor aguda e parésia da cintura escapular (Quadro_I). Neste caso
concreto, foram inicialmente consideradas as hipóteses de lesão da coifa dos
rotadores e lesão compressiva ou radiculopatia cervical. A presença de lesões
cutâneas compatíveis com infeção por VVZ tornaram este o diagnóstico mais
provável. Destaca-se ainda o facto desta apresentação rara, ter culminado com o
diagnóstico de infeção por VIH, até então desconhecida.
Embora este vírus por si só, possa causar polirradiculite, a concomitância com
a reativação do VVZ coloca o diagnóstico de radiculite herpética como principal
hipótese diagnóstica, tendo a imunodepressão pelo VIH, com baixa contagem de
células CD4+, possivelmente contribuído para a exuberância do quadro clínico
apresentado.
Apesar dos sintomas incapacitantes, na grande maioria dos casos há uma
recuperação motora completa.
O tratamento de reabilitação revela-se de grande valor durante a recuperação,
prevenindo limitações articulares e retrações musculotendinosas, permitindo a
recuperação da força muscular e funcionalidade mais precoces e efetivas.
CONCLUSÃO
A polirradiculite por VVZ é rara e pode ser confundida com outras causas de dor
e parésia do membro superior, tornando-se importante a sua identificação, dado
o contraste entre o seu quadro exuberante e o seu bom prognóstico a longo
prazo. A suspeição atempada e precoce contribui para a redução dos custos da
investigação e minimização das complicações e sequelas a longo prazo.