Tratamento artroscópico da luxação acromioclavicular aguda: Revisão dos 13
primeiros casos
INTRODUÇÃO
Desde a Grécia Antiga que as luxações acromioclaviculares despertam interesse
no que diz respeito à abordagem terapêutica, tendo Hipócrates (400 A.C.)
proposto o tratamento com ligaduras compressivas[1]
Galen, em 129 D.C., documentou e tratou a sua própria luxação acromioclavicular
após a prática de luta greco-romana[1] e atualmente esta lesão também ocorre
primordialmente em doentes jovens após trauma relacionado com a prática
desportiva.
A luxação acromioclavicular compreende 12% de todas as luxações da cintura
escapular e 8% de todas as luxações em geral[2]. As suas sequelas são
variáveis, podendo ir desde uma articulação completamente assintomática e
funcional até um ombro doloroso com perda de força e função devido a
instabilidade recorrente ou artrose pós-traumática. Apesar da sua grande
incidência, ainda existe grande controvérsia em relação ao melhor tratamento.
Ao longo dos anos, foram descritos mais de 60 tipos diferentes de técnicas
cirúrgicas[3], talvez refletindo a ausência de um tratamento ideal.
Neste artigo, os autores descrevem a sua experiência preliminar com uma técnica
totalmente artroscópica que reduz o intervalo coracoclavicular através do uso
de dois botões metálicos interligados por uma sutura de alta resistência não
absorvível.
O objetivo do estudo foi analisar o resultado funcional da técnica artroscópica
com sistema TightRope® (Arthrex: Naples, Florida) no tratamento das luxações
acromioclaviculares agudas.
MATERIAL E MÉTODOS
Entre Abril de 2009 e Dezembro de 2010 foram selecionados os doentes com
luxação acromioclavicular aguda tipo III, IV ou V de Rockwood[4] operados
segundo a técnica artroscópica com sistema TightRope®. Os doentes com luxações
grau I e II e os doentes com luxações grau III que tivessem baixo grau de
exigência funcional foram tratados conservadoramente. Foram excluídas também as
luxações acromioclaviculares com mais de 3 semanas de evolução.
Foi feita uma avaliação funcional pelo mesmo examinador através do Score de
Constant[5] e Subjective Shoulder Value (SSV)[6] e foram avaliadas as
mobilidades do ombro.
Foi realizado um estudo radiográfico bilateral da articulação
acromioclavicular através de uma incidência ântero-posterior e de uma
incidência axilar. Foi registada a posição do implante, a presença de
subluxação residual ou recidiva de luxação. Foram registadas as complicações.
Foi documentado o tempo de regresso ao trabalho e à atividade desportiva ou
nível de atividade física habitual. Foi avaliado o grau de satisfação com a
cirurgia e a presença de dor na articulação acromioclavicular em repouso, à
palpação e durante o cross arm test. Foi observado o resultado cosmético da
cirurgia.
Foram operados 13 doentes com uma luxação acromioclavicular aguda segundo a
técnica descrita, 5 deles recusaram participar no estudo e um mudou-se para
fora do país, perfazendo um total de 7 doentes avaliados retrospetivamente.
Os 7 doentes eram do sexo masculino, com idade média de 49 anos (mínimo: 40
anos; máximo: 60 anos). Em 6 casos a luxação ocorreu no ombro direito. Em 3
doentes a luxação ocorreu no lado dominante. Em 3 casos o trauma deveu-se a
acidente desportivo, em 3 casos a queda e num caso a acidente de viação. Cinco
doentes sofreram uma luxação grau III e 2 doentes uma luxação grau V. O tempo
de espera médio para a cirurgia foi de 5 dias e o recuo médio foi de 21 meses
(mínimo: 6 meses; máximo: 31 meses). Foi usado um único TightRope em 5 doentes
e dois TightRope em 2 doentes.
TÉCNICA CIRURGICA
Os doentes foram operados após assinatura de consentimento informado.
Todas as cirurgias foram realizadas pelo mesmo cirurgião segundo uma técnica
estandardizada.
Sob anestesia geral e após profilaxia antibiótica, o doente é colocado na
posição de semi-sentado com o membro superior e ombro isolados através de
campos cirúrgicos esterilizados.
É utilizada uma porta artroscópica posterior standard, uma lateral e uma
ântero-inferior. É feita uma incisão clavicular sagital de 1 cm para a
introdução do implante a 3,5 cm da articulação acromioclavicular.
Este implante consiste em dois botões metálicos de titânio interligados por um
fio não absorvível Fiberwire nº 5 (Arthrex; Naples,Florida) (Figura_1). O
botão clavicular é circular medindo 6.5 mm de diâmetro e o botão da apófise
coracóide é oblongo medindo 10x3.5 mm (Figura_2).
Após inspeção intra-articular na procura de lesões concomitantes, procede-se à
abertura do intervalo dos rotadores e, através dele, à limpeza do espaço
subcoracoideu.
A base e região inferior da apófise coracóide são libertadas de tecidos moles e
é determinada a posição ideal do implante que deverá ser no centro e na base da
coracóide. É colocado um sistema guia com uma das extremidades por baixo da
apófise coracóide e a outra no ponto de entrada na clavícula através da incisão
previamente feita.
Após furagem com broca de 4mm, o sistema guia é retirado e o implante é
introduzido de cima para baixo sob controlo artroscópico (Figura_3).
Após a redução da articulação acromioclavicular por manobras externas, o fio é
atado sobre a clavícula e a redução controlada por amplificador de imagem
(Figura_4).
Figura_4
No pós-operatório os doentes foram imobilizados com um suporte de braço em
rotação interna durante 4 semanas para assegurar a cicatrização dos ligamentos
coracoclaviculares. A auto-mobilização passiva foi permitida às 4 semanas
seguida de um período de reabilitação de cerca de 3 meses.
RESULTADOS
Ocorreu uma recidiva completa da luxação acromioclavicular e foi registado um
caso de subluxação superior assintomática com migração inferior parcial do
botão clavicular. Em ambos os casos foi usada a técnica com dois TightRope. O
primeiro caso tratou-se de um doente com uma prótese total do ombro anatómica
colocada no mesmo ombro devido a uma omartrose centrada 20 meses antes do
episódio de luxação. Sofreu uma recidiva após movimento brusco em elevação
anterior contra resistência; este novo trauma indirecto provocou uma fractura
da coracóide e falência da construção. No caso da subluxação não ocorreu novo
trauma que explicasse a perda de redução e este doente apresentou bons
resultados funcionais com mobilidade completa, um score de Constant de 91
pontos e um SSV de 90%.
Não foi registado nenhum caso de subluxação no plano horizontal durante a
avaliação da radiografia axilar. Os restantes 5 casos apresentavam uma redução
completa da luxação na altura da avaliação clínica.
O Score de Constant médio foi de 94 (mínimo: 87; máximo: 100). O valor de
Subjective Shoulder Value médio foi de 91 % (mínimo: 90; máximo: 95).
O valor médio de mobilidades comparando o ombro afectado com o contralateral
foi o seguinte: elevação anterior (em graus): 169/174, rotação externa (em
graus): 49/54, rotação interna (nível vertebral): D8/D7.
Ocorreram dois casos de capsulite retrátil transitória, ambos com resolução
completa com tratamento conservador aos 6 meses após a cirurgia. Não houve
nenhum caso de infeção pós-operatória ou de lesão neurológica.
Apenas um doente mantinha dor acromioclavicular ligeira em repouso. Quatro
doentes referiram dor ligeira à palpação acromioclavicular e um doente referiu
dor moderada durante o cross arm test.
O resultado cosmético foi bom em 5 doentes (Figura_5). Dois doentes
apresentavam alterações estéticas bem toleradas: no doente que sofreu a
recidiva, a deformidade era notória e o doente que sofreu a subluxação
apresentava uma deformidade superior ligeira da clavícula. Neste doente e num
outro registou-se uma protusão subcutânea do fio de sutura clavicular e houve
necessidade de fazer extracção de material no primeiro. Dos 5 doentes em idade
ativa, o tempo de espera médio até ao regresso ao trabalho foi de 5 meses. De
notar que todos eles detinham actividades profissionais com um elevado
componente físico. Desses, apenas 3 praticavam desporto e o tempo médio de
retorno à actividade desportiva foi de 6 meses. Dois doentes eram reformados e
não praticavam desporto previamente à lesão; retomaram o seu nível de
actividade habitual aos 7 meses.
Quatro doentes ficaram muito satisfeitos com a cirurgia e três satisfeitos.
Quando questionados se repetiriam a cirurgia atualmente, todos os doentes
responderam afirmativamente.
DISCUSSÃO
A classificação de luxação acromioclavicular em grau I, II e III proposta por
Tossy [7] e Allmann[8], com a sua extensão em grau IV e V proposta por Rockwood
[1]e em grau VI por Rockwood e Gerber[9] é a mais usada na prática clínica.
Atualmente, é consensual que o tratamento conservador é a melhor opção no
tratamento da luxação acromioclavicular grau I e II e que as luxações grau IV,
V e VI têm indicação cirúrgica[10,11].
O tratamento do grau III permanece controverso, com inúmeros estudos a
favorecerem o tratamento conservador e outros o tratamento cirúrgico não
havendo no entanto evidência científica da superioridade de um tratamento em
relação ao outro[10,12]. Neste estudo, considerámos como critério para
tratamento cirúrgico as luxações grau III em doentes jovens ou com elevada
exigência funcional.
Há várias técnicas cirúrgicas descritas na literatura para o tratamento das
luxações acromioclaviculares agudas. As técnicas de reparação da articulação
propriamente dita envolvem a utilização de fios de kirschner, parafusos ou
placas em gancho para a estabilização da articulação com alta taxa de
complicações como migração dos implantes, falência de material, artrose,
infeção e consequente perda de redução articular [13].
Outras técnicas apoiam-se no uso de transferências musculares com pouca
estabilidade e risco de lesão neurológica[14].
Outra alternativa terapêutica reside na redução do intervalo coracoclavicular.
Atualmente, inúmeros artigos favorecem a estabilização coracoclavicular como
método ideal para o tratamento das luxações acromioclaviculares agudas[15,16].
Esta opção de tratamento foi inicialmente descrita por Bosworth em 1941,
através do uso de um parafuso fixando a clavícula à coracóide em compressão
[17]. Os resultados desta técnica são satisfatórios mas a taxa de complicações
é alta, estando descrita a falência do material, o cut-out do parafuso na
coracóide e a perda de redução após extração de material de osteossíntese[18].
Estas complicações poderão ser explicadas devido à fixação exageradamente
rígida do intervalo coracoclavicular que interfere com os movimentos
rotacionais fisiológicos da clavícula[13]. Existem outras técnicas descritas
para este efeito como a reparação direta dos ligamentos coracoclaviculares, o
uso de cerclage com fio de aço, âncoras, suturas eloop de tecidos moles ou de
bandas sintéticas à volta da apófise coracóide[19]. Estas técnicas necessitam
de uma dissecção mais invasiva da base da coracóide com as complicações que daí
podem suceder.
O nosso tratamento de eleição para as luxações acromioclaviculares agudas é,
neste momento, e após esta série preliminar com um recuo a médio prazo, a
estabilização coracoclavicular com sistema TightRope® por via artroscópica.
Motamedi et al [20] demonstraram que não existe diferença significativa no que
diz respeito à rigidez e força entre os ligamentos coracoclaviculares intactos
e as suturas de polietileno entrançado como é o caso do Fiberwire®. Para além
disso, a via artroscópica evita a dissecção do deltóide e do ligamento
coracoacromial necessárias com outro tipo de procedimentos e permite uma melhor
visualização da base da coracóide do que com qualquer técnica aberta, o que
diminui o risco de lesão de estruturas nervosas. De facto, o nervo axilar cursa
em média 29.3 mm medialmente à margem anteromedial da coracóide[21].
Outra das vantagens do sistema TightRope é o facto de as suturas passarem
através da coracóide e não à sua volta o que reduz o risco de translação
anterior da clavícula e de colapso da coracóide por fricção das suturas[22].
Assim, é criada uma fixação fisiológica de moderada rigidez do intervalo
coracoclavicular, que confere uma vantagem biomecânica ao implante e poderá
explicar o facto de os resultados desta técnica serem favoráveis apesar de não
se intervir sobre os ligamentos acromioclaviculares, os principais
estabilizadores verticais estáticos da articulação. De facto, o princípio da
técnica TightRope passa por reduzir a luxação e permitir que os ligamentos
coracoclaviculares nativos e a cápsula acromioclavicular cicatrizem quando
mantidos numa posição anatómica. Para cumprir este objectivo, é mandatório que
a articulação seja imobilizada por um período de 4 semanas e que a luxação
tenha idealmente menos de 2 semanas de evolução.
Acreditamos que outro benefício do uso desta técnica é a possibilidade de
tratamento no mesmo tempo cirúrgico de lesões concomitantes por via
artroscópica. Estas lesões, se não tratadas, poderão ser responsáveis por dor
persistente depois da recuperação da luxação acromioclavicular. Dos doentes
avaliados neste estudo, num caso foi reparada uma ruptura parcial do
subescapular e na série inicial de 13 doentes foi também reparada.uma lesão
labral encontrada durante a artroscopia.
Este sistema foi originalmente criado para a redução de lesões sindesmóticas do
tornozelo, no entanto o seu uso foi recentemente adaptado para a cirurgia do
ombro, tendo mostrado resultados promissores.
O tratamento cirúrgico da luxação acromioclavicular com sistema TightRope® foi
inicialmente descrito na literatura em 2006 por Hernegger e Kadletz, os quais
descreveram o uso deste sistema por cirurgia aberta para a redução de uma
luxação grau III, tendo obtido um bom resultado[23]. Em 2007, Lim publicou a
primeira série de 4 luxações acromioclaviculares e de 4 fracturas do terço
lateral da clavícula tratadas por este método através de cirurgia aberta[24]. A
primeira série artroscópica foi publicada por Richards e Tennent em 2008, na
qual avaliaram os resultados do TightRope® como tratamento de 10 luxações
acromioclaviculares agudas[25].
A nossa taxa de recidiva foi de 14% e a de subluxação foi também de 14%,
valores semelhantes aos encontrados na literatura[25-27] De notar que na
nossa série inicial de 13 doentes, a um follow-up de 14 meses, correspondeu uma
taxa de recidiva de 15% e uma taxa de subluxação de 7,5%. Curiosamente, no
nosso estudo actual, nos dois casos de recidiva e subluxação foi usada a
técnica TightRope com dois implantes. O resultado menos favorável provavelmente
deveu-se mais ao início da curva de aprendizagem do que ao número de TightRope
utilizados. Rios et al [28] demonstraram no seu estudo em cadáver, que embora
existam diferenças absolutas no que diz respeito à distância entre a origem dos
ligamentos coracoclaviculares e o bordo lateral da clavícula entre o sexo
masculino e feminino, este valor é proporcional ao tamanho total da clavícula,
obedecendo a uma taxa constante independente do sexo. Verificaram que a
distância média entre o bordo lateral da clavícula e a origem do ligamento
conóide era de 4.63 cm e entre o ligamento trapezóide de 2.49 cm. Com base
nestes dados, inicialmente usámos a técnica de duplo tight-rope em dois doentes
com um implante a 2.5 cm e outro a 4.5 cm do bordo lateral da clavícula,
simulando a posição anatómica dos ligamentos.
No entanto, atualmente existem estudos que demonstram que a taxa de recidiva
entre a utilização de duplo TightRope e o uso de um único implante são
semelhantes[15,24]. Beitzel et al [29] avaliaram no seu estudo em cadáver a
biomecânica do uso artroscópico de botões metálicos para redução de luxações
acromioclaviculares. Compararam a redução articular feita através de um túnel
clavicular com um túnel coracóide através de um botão metálico e de dois túneis
claviculares com um túnel coracóide através de dois botões. Não encontraram
diferenças no que diz respeito à translação anterior, posterior e superior da
articulação acromioclavicular entre os dois métodos. Devido a estas evidências
recentes, começámos a utilizar a técnica com apenas um implante, ficando este a
3.5 cm do bordo lateral da clavícula, um valor intermédio entre os propostos
por Rios e colaboradores[28].
No artigo pioneiro de Richards e Tennent[25], os autores descreveram 30% de
subluxações superiores com bom resultado funcional e 0% de recidivas aos 15
meses de follow-up médio. Defoort[26] e colaboradores, na sua série de 9
doentes tratados por via artroscópica com um follow-up médio de 17 meses,
reportaram 4 subluxações superiores assintomáticas e uma recidiva por novo
trauma. Motta et al[27], na avaliação de 20 doentes, reportaram 25% de
subluxações superiores, a maioria delas bem toleradas, e 20% de recidivas não
traumáticas por falência da sutura do implante. Esta complicação particular,
apenas descrita na literatura no estudo de Motta, não foi verificada na nossa
série. De notar que a maioria das subluxações descritas nos vários artigos se
deveu à osteólise clavicular causada pelo botão superior, sendo esta a
complicação mais frequente dos botões metálicos[30]. Este facto é encarado como
um potencial problema devido à fragilidade óssea que promove e ao risco
subsequente de fraturas de stress após novo trauma. O problema poderá ser
evitado com o uso de um TightRope de 2ª geração, recentemente criado pelo
fabricante, que aumentou em 3.5 mm o diâmetro do botão clavicular e em 3 mm o
diâmetro do botão da coracóide, havendo assim uma melhor distribuição da carga
na cortical superior da clavícula.
As limitações deste estudo são o número pequeno de casos, a falta de avaliação
funcional pré-operatória e o facto de em dois casos a técnica cirúrgica ter
sido realizada com o recurso a dois implantes o que poderá influenciar os
resultados. Apesar de não terem sido observados sinais radiológicos de artrose
acromioclavicular pós-traumática na nossa série, é necessária uma avaliação
clínica com maior recuo para avaliar este problema a longo prazo.
O tratamento da luxação acromioclavicular com sistema TightRope® é um
procedimento totalmente artroscópico, com baixa taxa de complicações, de fácil
execução, sem necessidade de remoção a curto prazo do implante e que obtém bons
resultados funcionais e cosméticos.