Trocanterite tuberculosa
INTRODUÇÃO
A tuberculose continua a ser uma das principais causa de morte em todo o Mundo
devido a doença infeciosa, sendo que a sua prevalência continua a aumentar,
particularmente em países subdesenvolvidos[1]. Em Países desenvolvidos, os
factores predisponentes mais importantes são a infeção pelo vírus da
imunodeficiência humana[2,3] e a idade. Outro importante fator são as forma de
M. Tuberculosis resistentes à terapêutica[1, 4].
Em mais de 85% dos casos de Tuberculose, o sistema respiratório é afetado. A
localização osteo-articular não é frequente[5]. Em 20.000 novos registo de
tuberculose extra-pulmonar de 22 países observou-se que em 19% dos casos eram
atingidos o osso ou a articulação[6], sendo multifocal em 72,2% [7]. Quando a
sua disseminação é osteo-articular, o grande trocanter é afectado em apenas 1-
2% dos casos[5,8,9].
O diagnóstico de uma trocanterite tuberculosa é difícil e desafiante, uma vez
que os sinais clínicos são inespecíficos, o estudo radiológico inicialmente é
pouco útil e são raros os casos que se apresentam com um volumoso abcesso peri-
articular. Para obter o diagnóstico, frequentemente são necessárias técnicas
mais invasivas assim como o recurso a estudo microbiológico e anátomo-
patológico.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, 85 anos de idade, com antecedentes patológicos de
pleuresia há 65 anos, internado pelo Serviço de Urgência por quadro de queixas
arrastada de dor e edema localizados à face anterior do terço proximal da coxa
esquerda (Figura_1), sem história traumática associada. Analiticamente
apresenta uma PCR de 2,27 mg/dL e VS de 35 mm/hora (sem outras alterações
significativas). O estudo ecográfico revela um coleção heterogénea com parede
moderadamente espessada e a radiologia convencional da bacia (Figura_2) levanta
a suspeita de se tratar de uma lesão lítica localizada ao grande trocanter
esquerdo. A TC (Figura_3) confirma a presença de uma lesão osteolítica
associada a uma coleção líquida multi-loculada com calcificações e a biópsia
guiada por TC revela no estudo anátomo-patológico a presença de um processo
inflamatório crónico granulomatoso inespecífico. Na RNM (Figura_4) observam-se
várias coleções abcedadas na espessura dos músculos da coxa e interrupção da
cortical ao nível do grande trocanter e por Angiogragia (Figura_5) constata-se
que a lesão osteolítica é vascularizada pela artéria ilíaca interna.Perante a
ausência de diagnostico, realiza um cintigrama ao esqueleto e um PET (Figura
6), que levanta a suspeita de se tratar de uma massa neoplásica maligna com
envolvimento ganglionar secundário.
Figura_6
Dada a evolução da tumoração ao nível da coxa esquerda, que se encontrava sob
tensão, e a indefinição diagnostica, é submetido a drenagem, limpeza e biópsia
cirúrgica aberta com colheita de um tecido granulomatoso com uma substância
caseosa-esbranquiçada para estudo anátomo-patológico e bacteriológico.
O estudo anátomo-patológico revela a presença de um processo inflamatório
crónico granulomatoso, com granulomas do tipo tuberculóide, alguns com necrose
central, e a presença de células gigantes do tipo Langerhans. A pesquisa de
micobactérias no pus do abcesso é positiva para Mycobacterium tuberculosis
complex (por Quantiferon®-Tb Test). Encaminhado para o Serviço de Luta Anti-
Tuberculosa, inicia terapêutica quádrupla (Isoniazia, Etambutol, Pirazinamida e
Rifampicina). Inicialmente apesenta diminuição da tumoração e dos sinais
inflamatórios, porém e após 2 meses de terapêutica tuberculostática e
bactericida, re-inicia quadro álgico referido à anca esquerda e edema local,
que condiciona nova cirurgia (limpeza cirúrgica, sequestrectomia e
bursectomia).
Após 6 meses de terapêutica tuberculostática e bactericida e com 2 anos de
follow-up pós-operatório, o doente mantém-se assintomático clínica e
radiologicamente.
DISCUSSÃO
A tuberculose extrapulmonar pode originar-se por: 1) disseminação canalar,
associada a tuberculose pulmonar ativa, particularmente de longa evolução e sem
tratamento; 2) disseminação linfática e/ou hemática por ocasião da
primoinfecção, usualmente não associada a tuberculose pulmonar activa e 3)
extensão da lesão para estruturas adjacentes (contiguidade).
A tuberculose osteoarticular resulta da disseminação do bacilo de Koch de um
foco ativo ou não de uma qualquer parte do organismo[10]. A tuberculose óssea
normalmente atinge a porção anterior dos corpos vertebrais e a metáfise dos
ossos longos. Teale[11] foi o primeiro a descrever a trocanterite tuberculosa
em 1870.
É atual a discussão sobre se a anormalidade inicial é a osteíte trocantérica ou
a infeção de uma das bursas. Alvik[12] e mais tarde Ahern[13], defendem que a
disseminação seria da bursa para o osso. Segundo Lampe[14] a lesão começa ao
nível do grande trocanter devido à presença de foci enquistados. Já Lindahl,
Ahlberg e McNeur[14, 9,15] acreditam que a lesão primária pode ser tanto na
bursa como no osso.
A trocanterite tuberculosa é uma entidade relativamente rara, estando descrita
em apenas 1-2% dos casos de tuberculose óssea[5,8,9], apresentando uma marcada
tendência à recorrência[15].
A lesão óssea típica causa destruição, rarefacção e sequestro. A calcificação
de tecidos moles revela a actividade da doença nos tecidos circundantes. Um
padrão lítico com destruição do trocanter ocorre se não tratada.
O tratamento deve ser iniciado o mais rapidamente possível com o objetivo de
"salving the hip"[17]. Sendo a trocanterite tuberculosa extra-
articular, especial cuidado deve ser tido no sentido de evitar iatrogenia
intra-operatória e a sua disseminação articular por má abordagem cirúrgica.
A apresentação clínica da tuberculose do grande trocanter é frequentemente vaga
e um abcesso frio surgindo na região trocantérica pode estar tanto presente
medial ou mais comummente lateralmente[8, 18]. Ainda assim, a principal
dificuldade no diagnóstico de uma infeção tuberculosa da bursa trocantérica
continua a ser a sua falta de inclusão na lista dos diagnósticos diferenciais.
Após a suspeição diagnóstica, o estudo por TC ou RNM, onde frequentemente se
verifica uma lesão lítica com comunicação justacortical abcedada são fortes
fatores preditores de tuberculose óssea. Nestes casos, a biopsia associada a
estudo microbiológico e anátomo-patológico permitem a confirmação do
diagnóstico[5].
Um diagnóstico precoce é extremamente importante pois 90-95% dos pacientes
chega a atingir uma função proxima do normal quando este é efectuado[19, 20].
Após o diagnóstico, o tratamento mais indicado assenta na remoção cirúrgica do
tecido infetado (bursa e ósseo)[19, 20]. Paralelamente um esquema de
quimioterapia durante 4-18 meses deve ser associado[19, 20], sendo que a sua
data de inicio e duração são tema de controversia.
O objetivo deste caso clínico é o de chamar a atenção para esta entidade
clínica pouco comum e para a sua suspeição diagnostica. Salienta-se assim a
importância da inclusão da tuberculose óssea no diagnóstico diferencial de
pacientes com bursite trocantérica resistente ao tratamento conservador, assim
como aqueles com sintomatologia osteoarticular de longa duração.
Apesar de rara, a tuberculose óssea é uma realidade, devendo todos nós estarmos
alerta para esta doença uma vez que o resultado final em muito se relaciona com
o seu diagnóstico precoce.