Cirurgia de salvamento de membro no tratamento de sarcomas ósseos em idade
pediátrica: Será uma alternativa segura e eficaz à amputação?
INTRODUÇÃO
Até há poucas décadas, o tratamento cirúrgico dos sarcomas passava quase
exclusivamente pela amputação do membro afectado. A partir dos anos 70-80, os
avanços na quimioterapia, avaliação radiológica, técnica cirúrgica e na
tecnologia de materiais e implantes conduziram a uma melhoria dramática na taxa
de sobrevida de doentes com sarcomas, modificando a estratégia cirúrgica no
sentido do salvamento do membro[1, 2]. Atualmente, 80 a 85% dos doentes com
tumores ósseos malignos primários dos membros (ex: osteossarcoma, sarcoma de
Ewing, e condrossarcoma) são tratados eficazmente com ressecção alargada e
preservação do membro afetado.
Quando a excisão cirúrgica dos tumores é exequível, a abordagem do defeito
ósseo resultante é difícil. Muitos métodos estão descritos na literatura,
nomeadamente, enxertos ósseos vascularizados e não-vascularizados, próteses
adaptadas, aloenxertos intercalares e, mais recentemente, osteogénese em
distração[3-6]. As vantagens da osteogénese em distração incluem a formação de
osso com as mesmas propriedades biomecânicas do osso preexistente e a
possibilidade de encurtar o tempo de consolidação, exceto se a consolidação
entre o osso novo e o osso adjacente não ocorrer.
Os autores apresentam dois casos de sarcomas ósseos em idade pediátrica,
submetidos resseção alargada e reconstrução do defeito através de transporte
ósseo com osteogénese em distração.
CASOS CLÍNICOS
Dois doentes do sexo masculino, de 6 e 12 anos, procuraram observação médica
por dor e massa palpável na face anterior da porção proximal da perna. Após
estudo imagiológico e histológico, foi feito o diagnóstico de Sarcoma de Ewing
(caso 1 - Figura_1A) e osteossarcoma (caso 2 - Figura_2A) da tíbia
proximal.
Figura_1
Figura_2
Os doentes foram, desde inicio, orientados e acompanhados por uma equipe
multidisciplinar de Oncologia, Ortopedia Infantil e Medicina Física e de
Reabilitação. A presença de doença metastática foi excluída.
Em ambos os casos procedeu-se ao controlo local da doença por resseção alargada
dos tumores após resposta satisfatória à quimioterapia neoadjuvante, seguido de
reconstrução do defeito pela técnica do transporte ósseo (Figura_1B e 2B). Foi
realizada uma osteotomia monofocal para permitir o transporte de um segmento
ósseo usando um fixador externo monoplanar. O transporte ósseo teve inicio aos
8 dias de pós-operatório e o índice de consolidação óssea médio foi de 18,5
dias/cm (Figura_1C e 2C). A avaliação da peça operatória revelou um tumor com
margens livres amplas e 100% de quimionecrose. Nenhum dos doentes foi submetido
a quimioterapia adjuvante.
Na fase final do transporte ósseo, houve a necessidade de colocação de enxerto
corticoesponjoso autólogo da crista ilíaca de forma a completar o defeito ósseo
na sua porção mais proximal (Figura_1D).
Diversas complicações foram identificadas durante este processo, tais como a
não-consolidação do enxerto de ilíaco com o segmento de transporte ósseo em
ambos os casos, com necessidade de recorrer a enxerto de perónio vascularizado
(caso 1 - Figura_1E) ou enxerto intertibioperoneal (caso 2 - Figura
2D); pseudartrose no local de osteotomia (caso 2 - Figura_2E) que motivou
nova osteotaxia da tíbia com sistema híbrido com anel semi-circular metafisário
proximal combinado com a colocação de enxerto intertibioperoneal autólogo e de
Bone Morphogenetic Protein-2. No caso 1 (Figura_1), a ocorrência de uma queda
motivou uma fractura do terço médio da tíbia, que evoluiu para pseudartrose,
com necessidade de osteossíntese com placa e parafusos (Figura_1F). Salienta-se
ainda o diagnóstico acidental de doença de Perthes na anca contralateral no
caso 1, sem que o doente tenha apresentado qualquer sintomatologia e cuja
evolução radiográfica foi favorável.
Ao fim de 6 anos após a cirurgia, os dois casos apresentam consolidação clínica
e imagiológica com mobilidades completas do joelho e tornozelo (Figuras_1G e
2F). Em nenhum dos casos se verificou recidiva local do tumor ou metastização.
O caso 1, com 12 anos, foi submetido a epifisiodese do membro contralateral por
dismetria de 10 cm que, em apenas dois meses, já permitiu uma correcção de 2
cm. Regressou às actividades normais, embora com limitações, maioritariamente
devido ao receio do doente. No caso 2 (Figura_2), conseguiu-se uma compensação
total de uma dismetria de 5 cm com o uso de palmilha. De momento com 18 anos, o
doente apresenta uma recuperação funcional completa e retomou as atividades
normais praticamente sem limitações. Neste caso, a aplicação do Musculoskeletal
Tumor Society Rating System2 para avaliação clinica da extremidade afetada,
revelou uma capacidade funcional normal de 93%, comparada com 60% no caso 1.
DISCUSSÃO
Atualmente, a maioria dos doentes com tumores malignos das extremidades podem
ser tratados com cirurgia de salvamento do membro.
Estudos comparando a amputação com procedimentos de salvamento de membro têm
chegado a resultados sobreponíveis na sobrevida a longo-prazo[7-10], desde que
o tumor primário possa ser completamente removido, após resposta satisfatória à
quimioterapia pré-operatória para diminuir o risco recidiva local. Não parece
haver diferenças significativas nos outcomes de qualidade de vida entre os
procedimentos de salvamento de membro e a amputação[10, 11]; no entanto, alguns
estudos encontraram melhor outcome funcional nos doentes submetidos ao primeiro
tratamento [7, 10, 13]. Antes de considerar um procedimento de salvamento, a
doença precisa de ser corretamente estadiada e o doente avaliado numa abordagem
multidisciplinar, em centros com experiência no tratamento dos sarcomas. Assim
sendo, atualmente, a cirurgia de salvamento de membro está indicada em doentes
com bom prognóstico a longo-prazo e em que seja possível ter margens de
resseção alargadas sem comprometer a funcionalidade do membro. A reconstrução
final deve funcionar tão bem ou melhor que uma prótese adaptada após amputação.
Os defeitos ósseos criados pelos procedimentos de salvamento de membro podem
ser reconstruídos por diversos métodos, mas a incidência de complicações como
fractura, atraso de consolidação ou pseudartrose, deformidade e infecção, são
elevadas[3-6] e requerem uma reabilitação exaustiva.
Nos casos apresentados, a ocorrência de complicações teve um papel determinante
no prolongamento do tratamento e no atraso da recuperação. Em ambos os casos, a
proximidade do tumor à fise proximal da tíbia motivou uma extensão muito
proximal da resseção, impedindo assim o preenchimento completo do defeito ósseo
pelo transporte ósseo. O enxerto de osso ilíaco, usado para completar este
defeito residual proximal, não consolidou com o segmento de transporte ósseo, o
que motivou a realização de enxerto de perónio vascularizado e
intertibioperonial, no caso 1 e 2, respetivamente. No entanto, apesar do tempo
e recursos dispendidos no tratamento destas complicações, todas elas foram
tratadas com sucesso e o resultado aos 6 anos é bastante animador.
O osso regenerado por osteogénese em distracção, nomeadamente pela técnica de
transporte ósseo, tem condições para fornecer resistência biomecânica,
estabilidade e durabilidade. A reconstrução por este método resulta num membro
estável, evitando as complicações associadas com a substituição protésica ou a
utilização de aloenxerto, além de fornecer inserção para ligamentos, tendões e
músculos, o que conduz a uma performance funcional aceitável na maioria dos
casos[14, 15].
O transporte ósseo é um método seguro e eficaz na correcção de defeitos ósseos
após resseção alargada de sarcomas em crianças, possibilitando a preservação do
membro envolvido, sem prejudicar o risco de recorrência, a sobrevida a longo
prazo e a qualidade de vida. No entanto, a taxa de complicações deste método
não é desprezível, pelo que os pais devem ser alertados ab initio da morosidade
e complicações associadas a este tipo de procedimento.