Fratura supracondiliana do úmero complicada de lesão vascular
INTRODUÇÃO
A fratura supracondiliana do úmero é frequente na idade pediátrica,
constituindo cerca de 60-75% das fraturas do membro superior nesta faixa
etária. O pico de incidência ocorre entre os cinco e os oito anos de idade, com
predomínio no género masculino, com uma relação de três para dois [ 1-4, 10,
11].Dependente do mecanismo de lesão, as fraturas supracondilianas do úmero
podem ser em extensão, constituindo 97,5% dos casos, ou em flexão representando
apenas 2,5%. De acordo com os critérios de Gartland, estas fraturas são
classificadas em três tipos de acordo com o grau de descoaptação[6]. Wilkins
recentemente propôs dois novos subtipos dentro do tipo II e III,
respetivamente, de acordo com o grau de desvio rotacional[ 10].
A lesão neurológica surge em 12 a 24% dos casos, dos quais 2 a 6% correspondem
a lesão neurológica iatrogénica. A lesão vascular, menos comum, pode estar
presente em aproximadamente 10% destas fraturas, pelo que se torna imperativo a
identificação precoce de sinais de compromisso vascular para um tratamento
adequado a fim de prevenir futuras sequelas[1, 5, 11].
A abordagem desta complicação é ainda controversa. As indicações para
exploração cirúrgica em casos de ausência de pulso, com mão fria e pálida são
claros. Todavia, o tratamento de doentes com ausência de pulso mas com perfusão
distal permanece controverso[ 2, 18].
Os autores relatam um caso de uma fratura supracondiliana numa criança, apos
traumatismo em extensão complicada de lesão vascular. Este caso pretende
demonstrar a excelente evolução clínica perante uma atitude inicialmente
expectante sem complicação vascular.
CASO CLÍNICO
Criança de nove anos de idade, sexo feminino, que sofreu acidente escolar com
queda, da qual resultou traumatismo do membro superior esquerdo, com
deformidade marcada ao nível do cotovelo esquerdo, dor e limitação funcional. À
entrada constatou-se ausência de pulso radial confirmado por eco doppler,
contudo a mão apresentava-se quente e rosada, com um atraso do preenchimento
capilar e sem sinais de compromisso neurológico. Radiograficamente apresentava
uma fratura supracondiliana tipo III de Gartland, descoaptada e com desvio
postero-lateral do fragmento distal (Figura_1).
Figura_1
Tratando-se de uma fratura com indicação cirúrgica, e dado o compromisso
vascular, procedeu-se de imediato à realização de intervenção cirúrgica, com
redução incruenta e fixação percutânea medial e lateral com fios de Kirschner.
Por não se ter verificado o restabelecimento do fluxo arterial após a redução
da fratura foi efetuada arteriografia intra-operatoriamente, excluindo-se
encarceramento da artéria no foco de fratura, com evidência de interrupção do
fluxo arterial compatível com dissecção traumática e trombose da artéria
umeral, com reabitação nas artérias do antebraço por circulação colateral
(Figura_2).
Conciliando os achados clínicos de uma mão corada e quente, com preenchimento
capilar presente, e os achados da arteriografia, optou-se por uma atitude
expectante, sem qualquer intervenção do ponto de vista vascular. O membro foi
imobilizado com tala gessada posterior a 30º de flexão e iniciou por indicação
da Cirurgia Vascular heparina de baixo peso molecular. Perante a boa perfusão
distal no período de vigilância refez-se a tala às 72h com imobilização do
cotovelo a 70º de flexão, removendo-se os fios de Kirschner às 4 semanas
(Figura_3).
Figura_3
Aos dois anos de follow-up, apresentava excelente mobilidade do membro
superior, pulso radial palpável e fratura consolidada sem compromisso dos
núcleos epifisários, sem evidência de qualquer sinal clínico de insuficiência
vascular.
DISCUSSÃO
As fraturas supracondilianas são frequentes na idade pediátrica, correspondendo
a 17% das fraturas, com pico de incidência entre os 5 e os 8 anos [1-4, 10,
15]. A lesão vascular é uma das complicações decorrentes deste tipo de
traumatismo, correspondendo a 5 a 13,6% [1, 7, 8, 9, 12], frequentemente no
contexto de fraturas tipo III de Gartland, particularmente fraturas com grande
descoaptação e desvio postero-lateral do fragmento distal, estimando-se uma
incidência nestes casos de 10 a 20% [5, 23]. Estas situações são consideradas
uma urgência ortopédica, pelo que o seu diagnóstico é primordial, e o fator
tempo crucial, estando definido como período máximo as 12h no qual o doente com
aparente lesão vascular deve ser intervencionado. Caso contrário, a lesão
vascular e o edema concomitante condicionam um risco aumentado de síndrome
compartimental, que pode evoluir para uma contratura isquémica de Volkmann [1,
7, 8, 9, 10, 12]. Esta situação está descrita em cerca de 0.5% dos casos, sendo
caracterizada por uma flexão fixa da articulação do cotovelo, pronação do
antebraço, flexão da articulação do punho e extensão das articulações
metacarpo-falângicas [10, 11, 14]. O tratamento é difícil, passando por
libertação dos tecidos retraídos, reinserções tendinosas e fisioterapia
prolongada. Assim, a melhor forma de o evitar passa pela prevenção ativa,
procurando restabelecer o mais depressa possível a circulação, e, nos casos de
síndrome compartimental, atuar atempadamente com a realização de fasciotomias
dos compartimentos envolvidos de forma a reduzir a pressão intracompartimental
[19, 20, 21].
Várias são as causas para o compromisso da vascularização, desde o espasmo
arterial até à sua secção completa com posterior evolução para trombose, como
ocorreu no caso descrito. Sendo que a maioria destas lesões vasculares ocorrem
por compressão extrínseca da artéria pelos fragmentos ósseos, que resolve
espontaneamente após a redução da fratura, daí a importância em avaliar o
estado de perfusão do membro após a redução e estabilização da mesma.
A reperfusão do membro após a redução da fratura ocorre em cerca de 66.7% dos
casos, sobretudo à custa do tronco arterial, ou através de uma rede de
colaterais, proximais à lesão ou a jusante desta [12]. No entanto, deveremos
adotar uma atitude vigilante, com uma reavaliação clínica periódica, dando
ênfase ao aparecimento de dor intensa refratária aos analgésicos, ou sinais de
palidez, cianose, parestesia ou paralisia[12, 18, 19, 22, 23].
Na ausência de revascularização, e na perspetiva de se tratar de um espasmo da
artéria umeral, vários autores recomendam a realização de um bloqueio ao nível
do gânglio estrelado de forma a reverter o espasmo[2, 17]. Nos casos em que a
revascularização não foi conseguida quer pela redução da fratura quer pelo
bloqueio das vias simpáticas deverão ser considerados estudos complementares,
tais como Ecografia com Doppler, Angio-TC, Angio-Ressonância, ou mesmo exames
mais clássicos como a arteriografia[5].
O papel deste último exame é algo discutível, na medida em que só nos vem
confirmar o esperado perante a ausência de pulso após redução da fratura, mesmo
com o bloqueio simpático [17]. Na presença de uma mão rosada embora sem pulso,
opta-se por uma atitude inicialmente expectante, pelo que o exame não altera,
na maioria dos casos, a conduta terapêutica [2, 9, 11, 18].
No caso relatado, verificou-se que após a redução da fractura a mão permaneceu
rosada e quente, no entanto ainda sem pulso palpável. Dada a suspeita de lesão
vascular foi efetuada uma abordagem interna do braço, a fim de realizar
arteriografia, que confirmou a lesão da artéria umeral proximal ao foco de
fratura. Este exame, no entanto, acabou por não alterar a conduta terapêutica,
pelo que concordamos que nestas situações seja discutível a realização da
arteriografia, como vem referido na literatura[2, 17]. Perante os achados de
ausência de pulso e boa perfusão distal ("pink hand") as opiniões
são díspares no que diz respeito à melhor conduta terapêutica. White et al
[14] referem que a ausência de pulso é um indicador de lesão arterial, e mesmo
na presença de uma boa perfusão distal, sugerem a necessidade de exploração
vascular, enquanto Ramesh et al[ 15] ao avaliar sete fraturas supracondilianas
sem pulso e boa perfusão distal, optou pelo tratamento conservador tendo
verificado a existência de pulso entre as três e seis semanas de follow up,
concluindo que se deve ter uma atitude expectante, na presença de uma boa
perfusão distal apesar da ausência de pulso, estando a exploração cirúrgica
indicada nos casos de dor intensa ou sinais de deteriorização neurológica e/ou
insuficiência vascular.
Numa avaliação sistematizada, Flynn et al, estratificaram qual a melhor conduta
terapêutica a tomar nos casos de fraturas supracondilianas com lesão vascular
onde podem constatar a recomendação para uma atitude expectante na presença de
uma mão rosada e quente, com ausência de pulso radial sendo este caso um bom
exemplo do bom resultado desta conduta (Figura_4) [23].
CONCLUSÕES
A lesão neurovascular no contexto de fratura supracondiliana do cotovelo da
criança representa um desafio importante para o ortopedista e cirurgião
vascular. Perante a documentação de uma lesão de ordem vascular dois cenários
poderão ocorrer, merecendo da nossa parte uma conduta diferente. Na presença de
perfusão distal em mão rosada, o tratamento imediato da fratura seguida de uma
atitude expectante em relação à lesão vascular, com o cuidado de manter uma
imobilização inicial a 30º, constitui uma boa opção terapêutica.