Artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha
INTRODUÇÃO
Com a disponibilidade de novos bio-materiais e com a transformação de uma
cirurgia tecnicamente exigente, invasiva, necessitando imobilizações
prolongadas num procedimento pouco invasivo, com boas taxas de consolidação e
deambulação imediata, tem-se registado um aumento na popularidade da artrodese
tibio-talo-calcaneana com cavilha. Esta, exibe uma superioridade biomecânica
nas forças compressivas aplicadas assim como maior rigidez e estabilidade
rotacional quando comparada com outros métodos de fixação[1-4].
As principais indicações aprovadas na literatura internacional[5] são:
- Artroses desenvolvidas na tibiotalar e talocalcaneana (de etiologia
degenerativa, pós-traumática ou inflamatória)
- Traumatologia aguda severa
- Necroses talares
- Neuropatias periféricas
- Consolidações viciosas
- Não uniões com perdas ósseas importantes (após falência de artrodese ou
artroplastias)
- Estabilização após amputações de Chopart
As contraindicações absolutas específicas para a aplicação de cavilha incluem
infecções ativas, alterações vasculares severas e deformidades da tíbia que
impeçam a normal progressão da cavilha.
Como contra indicação relativa, a presença de uma articulação subtalar saudável
e o seu sacrifício visando uma artrodese mecânica imediata e estável tem sido
alvo de alguma controvérsia. Pés neurogénicos, talus que não permitam
artrodese, patologia traumática severa do pilão tibial ou a incapacidade em
realizar descarga provisória sobre o membro afectado são exemplos em que o
sacrifício subtalar pode ser equacionado.
TÉCNICA CIRÚRGICA[6]
O paciente é colocado em decúbito dorsal ou lateral. A abordagem subtalar e
tibiotársica é preferencialmente lateral mas é comum o uso de vias alternativas
já que muitos doentes apresentam uma pele danificada por sequelas traumáticas
ou cirúrgicas. Embora algumas casas comerciais evoquem a não necessidade de
abordagem subtalar, a preparação das superfícies articulares, principalmente
tibiotársica, é ainda recomendada.
Durante a preparação articular é necessário ter em conta o offset lateral do
corpo do calcâneo relativamente à diáfise tibial dado que uma linha recta
traçada ao longo do istmo diafisário da tíbia encontra, medialmente, o
sustentáculo do calcâneo.
Assim, na aplicação de uma cavilha reta procede-se a uma medialização (com ou
sem remoção do maléolo interno) do calcâneo e talus em relação à tíbia de modo
a que, entrando distalmente pelo corpo do calcâneo, a progressão da cavilha não
provoque um desvio em varo do retro-pé. Alguns autores defendem que esta opção
pode provocar um stress nas estruturas vasculares laterais[7], muitas vezes
retraídas por cicatrizações antigas. Este argumento, assim como o fato de
facilmente se medializar o ponto de entrada distal, potenciando uma
fragilização calcaneana, tem levado ao desenvolvimento de cavilhas
"anatómicas" com uma curvatura distal de 7º a 10º. Com um ponto de
entrada lateral, asseguram boa progressão pelo corpo do calcâneo poupando tempo
cirúrgico na preparação e correção do eixo anatómico[8].
O normal posicionamento do retropé em relação ao tornozelo é de 0º de
dorsiflexão, 5º de valgo e 5ºa 10ºde rotação externa.
Após introdução da cavilha, faz-se a aplicação de parafusos no talus, tíbia e
calcâneo. Estes, promovem a coaptação e compressão direta das três estruturas
anatómicas formando-se um bloco rígido que promove a artrodese. A cavilha
permite ainda, se necessário, dinamização da tíbia, ausência de compressão para
aplicação de enxerto ósseo, introdução de parafusos no calcâneo para maior
estabilidade e até progressão de parafusos pela tuberosidade calcaneana para
artrodeses do médio e ante-pé.
Uma das questões mais polémicas refere-se ao comprimento da cavilha já que
esta, não ultrapassando o istmo, pode provocar um ponto de concentração de
stress com hipertrofia cortical e eventual fratura. Noonan e Pinzur
demonstraram que em doentes osteopénicos e obesos a progressão da cavilha até 5
cm distal à superfície proximal da tíbia dissipa as forças e evita fraturas de
stress.[9]
RESULTADOS
Os doentes são normalmente encorajados a deambularem, com ou sem imobilização
gessada, em descarga parcial. As queixas clínicas e os parâmetros radiológicos
irão ditar, individualmente, o programa de reabilitação.
As taxas de fusão óssea descritas na literatura variam entre 76% e 100%,
ficando a maioria dos doentes satisfeitos quanto aos resultados finais. As
complicações mais comuns incluem infeções, pseudartroses dolorosas, fratura de
parafusos calcaneanos e consolidações viciosas com retropé em valgo ou varo. A
taxa de complicações pode chegar, em alguns estudos, aos 55%, com 22% de re-
intervenções (e 1,6% de amputações) [10, 11].
EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO
Desde 2002 que foram seguidos, no serviço de Ortopedia do Hospital Geral do
Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (antigo centro Hospitalar de
Coimbra), 10 pacientes submetidos a artrodese tibio-talo-calcâneana com
cavilha, nomeadamente: 2 doentes com sequelas neurológicas (um dos quais com
pseudartrose diafisária da tíbia), 1 doente com artrose primária tíbio-talo-
calcaneana, 1 caso de necrose talar pós traumática, 1 caso de fratura aguda
cominutiva do pilão tibial e 5 casos de consolidações viciosas/não uniões de
fraturas distais da tíbia.
O follow up foi de 9 a 117 meses. Em 8 dos casos verificou-se uma progressão
para consolidação. Como complicações registámos 1 infecção pós-operatória
superficial (resolvida com antibioterapia sistémica), e 2 casos de atraso de
consolidação associados a infecção profunda (resolvidas após desbridamento
cirúrgico, antibioterapia sistémica e dinamização da cavilha). Registámos em
todos os casos satisfação dos doentes, com um score AOFAS Ankle-Hindfoot médio
de 70.
Seguem-se dois casos seguidos neste serviço.
CASO CLÍNICO 1
JFCP, 64 anos, Queda com fratura multiesquirolosa do pilão tibial direito
- exposta grau 3B de Gustillo e Anderson - tendo-se realizado limpeza,
desbridamento e osteotaxia com fixador externo.
Pós-operatoriamente houve deiscência de sutura e exposição óssea necessitando
intervenção pela equipa de cirurgia plástica com retalho de cobertura sural.
Desenvolvimento de pseudartrose dolorosa e incapacitante tendo sido submetido a
artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha e aplicação de enxerto ósseo
autólogo (Figura_1).
Figura_1
Nove meses após aplicação da cavilha o doente mantinha algumas queixas álgicas
tendo desenvolvido infeção profunda e fistulização. Foi submetido a nova
cirurgia com desbridamento cirúrgico amplo e dinamização da cavilha.
Um ano após a última cirurgia, o paciente apresenta marcha autónoma sem
necessidade de auxiliares de marcha, sem infecção visível e muito satisfeito
quanto aos resultados finais. AOFAS Ankle-Hindfoot score 69.
CASO CLÍNICO 2
NDFC, 26 anos, Acidente de viação em Abril de 2007, com "Injury Severity
Score">16, do qual resultou fratura do fémur esquerdo com lesão vascular,
fratura da extremidade distal dos ossos do antebraço esquerdo, fratura
metafisária proximal da tíbia esquerda e fratura-luxação peri-talar esquerda
associadas a lesão tipo neurotmese do ciático-poplíteo externo (CPE).
Realizada reparação vascular e osteossíntese. Um ano após procedimentos
cirúrgicos, realizava marcha com canadianas e palmilha corretora mantendo dores
intensas. Radiologicamente apresentava necrose asséptica do talus. Submetido a
artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha (Figura_2).
Figura_2
Dois anos após a artrodese, o paciente apresenta marcha autónoma sem auxiliares
de marcha, mantendo ainda algumas dores residuais mas totalmente satisfeito
quanto aos resultados cirúrgicos., AOFAS Ankle-HIndfootscore 72.
CONCLUSÃO
A artrodese tibio-talo-calcâneana com cavilha é um procedimento reservado para
situações particulares e, muitas vezes, de difícil resolução[12]. Embora a
literatura refira taxas elevadas de re-intervenções cirúrgicas é necessário
compreender quais seriam as alternativas (como a amputação) e ter em conta que
estamos, muitas vezes, perante um membro multi-operado.
A evidência atual aponta para bons resultados e uma satisfação geral dos
pacientes submetidos a esta técnica, mas os estudos são ainda escassos e na sua
maioria descritivos e retrospectivos.
Na nossa série, a taxa de consolidação situou-se nos 80% com poucas
complicações e uma satisfação geral dos pacientes.