Caracterização das alterações vertebrais em crianças com Paralisia Cerebral
INTRODUÇÃO
A Paralisia Cerebral (PC) é uma encefalopatia que afeta o cérebro imaturo,
levando à disfunção motora permanente [1,2].
A primeira definição de Paralisia Cerebral foi descrita por Bax em 1964 como
"um distúrbio do movimento e da postura devido a um defeito ou lesão do
cérebro imaturo"[3]. Atualmente define-se PC como "um grupo de
desordens permanentes do desenvolvimento do movimento e da postura, causando
limitações funcionais que são atribuídas a alterações não progressivas que
ocorreram no cérebro imaturo. As alterações motoras da Paralisia Cerebral são
frequentemente acompanhados por alterações da sensação, perceção, cognição,
comunicação e comportamento, por epilepsia e por problemas músculo-esqueléticos
secundários"[4].
A Paralisia Cerebral é classificada segundo considerações anatómicas e motoras
[3,5]. Anatomicamente é classificada como diplegia, hemiplegia e tetraplegia
(mais frequentes) e monoplegia e triplegia (menos comuns). A nível motor pode-
se classificar como espasticidade, discinesia (inclui hipotonia, movimentos
atetósicos, coreia), ataxia e misto[3,5,6].
As crianças com PC têm um risco aumentado de desenvolver escoliose, podendo
agravar as alterações na capacidade motora e funcional.
A escoliose é uma deformidade comum em crianças e adolescentes com Paralisia
Cerebral. A escoliose consiste no deslocamento lateral da coluna vertebral e é
quase sempre associada com a rotação dos corpos vertebrais[7,8,9]. Dependendo
da região da coluna afetada pelo deslocamento das vértebras, a escoliose é
classificada como torácica, lombar ou toracolombar[8].
Para avaliar a gravidade da escoliose é utilizado o método de Cobb, que mede o
ângulo de curvatura da coluna vertebral. A escoliose é definida como ângulo de
Cobb > 10º[7,8].
A escoliose pode ocorrer em qualquer idade, mas tende a tornar-se clinicamente
evidente durante os períodos de rápido crescimento somático[8]. A sua
prevalência varia entre 15% e 80% dependendo das diferentes definições de
escoliose utilizadas, assim como diferenças nos grupos etários, tipo e
gravidade de PC[10].
As alterações na coluna vertebral em crianças com PC aparecem em idades
precoces, podendo as cintas medicinais diminuir a velocidade de progressão da
curvatura[10]. As curvaturas com ângulo Cobb> 40º, em crianças com menos de 15
anos de idade, estão associadas a uma progressão mais rápida da escoliose,
sendo importante, nestes casos o tratamento cirúrgico[7,11].
A escoliose em crianças com PC desenvolve-se devido à combinação de fatores
como espasticidade, fraqueza muscular e deficiente controlo muscular, que
resultam em alterações no equilíbrio e nas suas capacidades motoras e
funcionais[2].
Estão associados problemas como dificuldades ao sentar, aparecimento de úlceras
de pressão (devido a cargas assimétricas causadas pela escoliose), disfunção
cardiopulmonar (resultado da deformidade da coluna vertebral seguida de
distorção do tórax), disfunção gastrointestinal (por exemplo refluxo
gastrointestinal, problemas de deglutição e aspiração dos alimentos) e dor
[1,2].
O Gross Motor Function Classification System (GMFCS) é um sistema de
classificação da capacidade motora em crianças com Paralisia Cerebral.
O GMFCS é largamente usado pelos profissionais de saúde para determinar
decisões clínicas de reabilitação futura. É uma classificação baseada nas
limitações funcionais, na necessidade de aparelhos auxiliares de locomoção
(canadianas, andarilho e cadeira de rodas) e na qualidade do movimento[12].
Varia entre nível I e nível V, em que as crianças classificadas como GMFCS
nível I realizam as mesmas atividades que os seus pares, mas com alguma
dificuldade na velocidade, equilíbrio e coordenação, enquanto as crianças GMFCS
nível V têm dificuldades em manter posturas anti gravitacionais da cabeça e do
tronco e no controlo voluntário do movimento, sendo dependentes para todas as
atividades[13].
O tratamento da escoliose em crianças com PC tem como objetivo manter ou
melhorar as capacidades funcionais, bem como a qualidade de vida. A tomada de
decisão relativamente ao tratamento deve ser adaptada a cada doente e deve ser
baseada na relação risco-benefício, bem como nas comorbilidades existentes[2].
O tratamento conservador, como o uso de cintas medicinais e adaptadores para
cadeira de rodas, são utilizados sobretudo como medida de suporte, mas não
previnem eficazmente a progressão das deformidades na coluna[2,11]. Está bem
documentado, que o tratamento cirúrgico tem um impacto positivo na qualidade de
vida dos doentes com deformidades graves, levando a uma melhoria no equilíbrio
e nas capacidades funcionais[2]. As principais indicações para o tratamento
cirúrgico são a rápida progressão da escoliose e a perda significativa das
capacidades motoras e funcionais[11].
O conhecimento da prevalência e incidência da escoliose e das suas
caraterísticas numa população de crianças com Paralisia Cerebral, é importante
para o planeamento da saúde e análise do risco de uma criança com PC, bem como
para a criação de programas de deteção precoce da escoliose[10].
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se um estudo epidemiológico retrospetivo, numa população total de
crianças com Paralisia Cerebral, entre os 6 e 12 anos de idade, completados até
28 fevereiro de 2013, seguidas em consulta na Associação do Porto de Paralisia
Cerebral (APPC). A análise dos registos clínicos e imagiológicos de todos os
doentes foi previamente aprovada pela Comissão de Ética para a Saúde do
Hospital de São João, mediante autorização dos respetivos Diretores de Serviço
e Conselho de Administração do Hospital.
Numa primeira fase, analisaram-se os registos clínicos e imagiológicos de todos
os doentes seguidos em consulta na APPC. Analisaram-se também os registos
clínicos e imagiológicos das crianças que foram orientadas para consulta de
Ortopedia Infantil no Centro Hospitalar de São João (CHSJ), no Centro
Hospitalar de Vila Nova de Gaia (CHVNG) e no Centro Hospitalar do Porto -
Hospital de Santo António (HSA).
Seguidamente registaram-se os seguintes dados: 1) dados individuais: sexo e
idade; 2) Tipo de Paralisia Cerebral; 3) nível de GMFCS; 4) ângulo de Cobb na
última avaliação radiológica.
O tipo de Paralisia Cerebral foi classificado segundo uma tipologia anatómica
(diplegia, hemiplegia e tetraplegia) e motora (espasticidade, ataxia,
discinesia e misto), tal como se apresentava descrito nos processos clínicos.
Para avaliar o nível de GMFCS recorreu-se aos registos clínicos, das consultas
de Medicina Física e Reabilitação e de Ortopedia Infantil, para avaliar a
capacidade motora e funcional da população em estudo.
Para avaliar o ângulo de Cobb, recorreu-se aos registos imagiológicos das
crianças seguidas em consulta de Ortopedia Infantil nos diferentes Hospitais.
Numa última fase, os dados foram introduzidos numa base de dados e tratados,
usando o programa informático SPSS ® (versão 21.0). Recorreu-se à estatística
descritiva, sob a forma de percentagens, para descrever os resultados obtidos.
O nível de significância utilizado para os testes estatísticos utilizados
(teste de qui-quadrado) foi de 0,05.
RESULTADOS
Do processo de análise dos registos clínicos e imagiológicos de uma população
total de crianças com PC, entre os 6 e 12 anos, seguidas em consulta na APPC
resultou uma amostra de 157 crianças.
As características da amostra estudada estão sumariadas na Quadro_I. Esta
amostra apresenta a seguinte distribuição de sexos: 55% do sexo masculino e 45%
do sexo feminino. A média de idades é de 8 anos.
Da amostra total 85% não apresentava escoliose, enquanto 15% apresentavam
escoliose (Quadro_I).
Fazendo a distribuição do nível de GMFCS, a grande maioria dos doentes (41%)
estavam no nível GMFCS I ou II; 10% estavam no nível GMFCS III; cerca de metade
dos doentes (49%) apresentava um GMFCS nível IV ou V. Utilizando o Teste Exato
de Fisher, distribuiu-se o nível de GMFCS em função da presença ou não de
escoliose e verificou-se que, 80% das crianças com escoliose estavam no nível
GMFCS V, sendo este um resultado estatisticamente significativo (p <0.001).
Para além disso, verificou-se que um terço das crianças com nível GMFCS V tem
escoliose (Quadro_II).
Quadro_II
A distribuição do tipo anatómico de PC em função da escoliose, sumariada na
Quadro_III, apresenta um resultado estatisticamente significativo, verificando-
se que 88% das crianças com escoliose apresentavam tetraplegia (p<0.001).
Quadro_III
Realizou-se também a distribuição entre o tipo motor de PC e a presença ou não
de escoliose, utilizando o Teste Exato de Fisher, não se verificando diferenças
estatisticamente significativas (p= 0.112) (Quadro_IV).
Quadro_IV
Sabe-se da literatura, que a escoliose aumenta com a idade. Foi analisado para
este estudo, se haveria relação entre a idade e a escoliose. Fez-se a
distribuição das crianças em 2 grupos etários, dos 6 aos 8 anos e dos 9 aos 12
anos, não sendo encontradas diferenças estatisticamente significativas entre a
idade e a presença de escoliose (p= 0.394). Verificou-se no entanto, que o
Valor Preditivo Positivo aumentou consideravelmente entre os diferentes grupos
[VVP (6-8anos) = 28.6 e VPP (9-12 anos) = 42,3], sugerindo assim que possa
haver uma tendência para que essa relação ocorra (Quadro_V).
DISCUSSÃO
O conhecimento da prevalência e incidência de escoliose e das suas
caraterísticas numa população de crianças com Paralisia Cerebral é importante
para o planeamento da saúde e análise do risco individual, bem como para a
criação de programas de deteção precoce da escoliose.
Sabe-se, pela literatura, que a incidência de escoliose varia devido aos grupos
de estudo, idade e tipo de Paralisia Cerebral, logo para comparar a incidência
entre os diferentes estudos é necessário ter em conta estas características.
Neste estudo foi avaliada a incidência de escoliose numa população total, bem
definida, de crianças com Paralisia Cerebral entre os 6 e 12 anos, constituindo
uma força para o estudo.
O tamanho da amostra (n=157) é em si uma limitação deste estudo, pois, sabe-se
pela literatura, que a prevalência de escoliose em crianças com Paralisia
Cerebral varia entre 15% e 80% dependendo das diferentes definições de
escoliose utilizadas, assim como diferenças nos grupos etários, tipo e
gravidade de Paralisia Cerebral. Neste estudo a prevalência de escoliose é 15%,
sendo que um aumento do tamanho da amostra seria uma mais-valia para os
resultados.
No que diz respeito à análise dos dados clínicos, todas as crianças são
seguidas em consulta na APPC, contudo nem todas cumpriam o seguimento de
consultas regulares anuais, sendo esta uma limitação, pois alguns dos dados
registados podem não estar em conformidade com a atual situação clínica destas
crianças.
Uma das limitações deste estudo prende-se com o fato das crianças serem
referenciadas para consulta de ortopedia e fazerem o exame radiográfico da
coluna quando já existe suspeita clínica. Não é de excluir que algumas crianças
possam ter já escoliose, ainda sem tradução no exame físico, levando a que
alguns elementos desta amostra possam ser falsos negativos.
Relativamente à classificação do tipo de Paralisia Cerebral, utilizou-se a
nomenclatura que constava nos registos clínicos, classificando-se a forma
motora como espasticidade, ataxia, discinesia e misto, e a forma anatómica como
diplegia, hemiplegia e tetraplegia. Alguns estudos apresentam algumas
diferenças nesta classificação, como por exemplo classificando a espasticidade
como unilateral ou bilateral[10].
No que diz respeito ao grupo etário selecionado, sabe-se pela literatura, que a
incidência de escoliose aumenta com a idade. Neste estudo, e estratificando o
grupo etário, não se verificou essa relação, apesar de se verificar uma
tendência. Isto deve-se ao facto, de a escoliose aparecer sobretudo em crianças
com mais de 8 anos, quando entram numa fase de rápido crescimento somático.
Neste caso o grupo etário é baixo (6 a 12 anos), não se verificando por isso,
uma incidência muito alta de escoliose. Torna-se assim importante acompanhar o
crescimento destas crianças, para tentar detetar precocemente o aparecimento de
escoliose e tomar medidas de suporte e tratamento logo que possível. Este
estudo levanta assim a questão se haverá um ponto de corte médio de idade e de
nível de GMFCS, onde seja possível verificar essa relação com a escoliose e
adotar assim as medidas e tratamentos necessários.
A comparação do nível de GMFCS com outros estudos não é fácil, pois esta
classificação varia com a idade. Sabe-se pela literatura, que as crianças GMFCS
nível I-II não apresentam um risco superior de desenvolver escoliose comparando
com as crianças sem PC. Sabe-se também, que o risco de escoliose é maior em
crianças mais velhas e com GMFCS nível IV-V. Neste trabalho verificou-se que as
crianças GMFCS nível V possuem maior probabilidade de desenvolver escoliose.
É também importante trabalhar no sentido de uma maior cooperação entre os
Serviços de Medicina Física e Reabilitação e Ortopedia Infantil. A existência
de consultas conjuntas poderá contribuir para um melhor acompanhamento e
tratamento destas crianças.
Verificou-se que há uma relação estatisticamente significativa entre a presença
de escoliose, o GMFCS nível V e a tetraplegia. Não existe um resultado
estatisticamente significativo entre o tipo motor de Paralisia Cerebral e a
escoliose. Não se obteve, para este estudo, um resultado estatisticamente
significativo entre os grupos etários e a escoliose.
Assim, para analisar o risco de uma criança desenvolver escoliose deve-se ter
em atenção o nível de GMFCS e o tipo anatómico de Paralisia Cerebral.
Em função dos resultados, se recomenda que todas as crianças GMFCS IV e V devam
fazer um Raio-X anual para rastreio de escoliose, a partir dos 6 anos de idade,
dada a elevada prevalência nesta população.
Conclui-se assim que as crianças GMFCS nível V e tetraplegia têm maior
probabilidade de desenvolver escoliose. Dada a elevada prevalência de escoliose
nas crianças com GMFCS IV e V, este estudo mostra a necessidade de todas serem
rastreadas, pelo menos, após os 6 anos.