Fratura espontânea bilateral do fémur e ingestão crónica de bifosfonatos
INTRODUÇÃO
A eficácia dos bifosfonatos no tratamento e prevenção da osteoporose tem sido
amplamente confirmada por vários estudos clínicos randomizados[1,2]. Os
bifosfonatos utilizados atualmente são composto nitrogenados que se ligam ao
osso e atuam sobre os osteoclastos, inibindo a sua atividade e induzindo
apoptose, aumentando assim a densidade mineral óssea (DMO)[3]. Como
consequência, existe uma inibição da remodelação óssea, tornando o osso
adinâmico, o que possibilita a acumulação de lesões microscópicas que podem
culminar em fraturas de fadiga[4].
Têm surgido na literatura múltiplos relatos que apontam para uma possível
associação entre o uso de bifosfonatos e o risco aumentado de fraturas
nãoosteoporóticas do fémur, com um número crescente de casos de fraturas com
padrões atípicos, que ocorrem na diáfise ou região subtrocanterica do fémur, em
doentes medicados com bisfosfonatos há seis ou mais anos[5,6,7].
Thompson RN et al[8] refere num estudo multicêntrico a incidência de 7% de
fraturas atípicas do fémur, sendo que 81% desses indivíduos estavam a tomar
bifosfonatos por um período médio de 4,6 anos.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 65 anos de idade, admitida no Serviço de Urgência (SU)
por quadro de dor e impotência funcional do membro inferior direito após queda
em ortostatismo. Como antecedentes pessoais de referir hipertensão arterial e
osteoporose (diagnosticada há 12 anos; T-score da coluna lombar de -2,7).
Sem outros fatores de risco major para osteoporose (tais como: fratura
vertebral ou de fadiga prévia; fratura da anca em um dos progenitores;
terapêutica corticoide sistémica com mais de 3 anos de duração; menopausa
precoce; hipogonadismo; hiperparatiroidismo primário ou propensão aumentada
para quedas), foi medicada com 70mg de ácido alendrónico por semana associado a
600mg de carbonato de cálcio por dia, durante 12 anos.
O estudo radiológico revelou uma fratura mediodiafisária do fémur, obliqua
curta, que foi tratada cirúrgica após redução fechada com encavilhamento
centromedular rimado estático (Figura_1). A consolidação da fratura deu-se aos
6 meses e aos 10 meses da alta hospitalar realizou nova densitometria óssea que
revelou um T-score de -2,4 da coluna lombar, que traduz osteopenia, e um T-
score de -1,0 do colo do fémur esquerdo, que indica normalidade (Figura_2).
Tendo mantido a medicação com bifosfonatos, sob a forma de 70mg de ácido
alendrónico e 5600UI de Vitamina D3 por semana complementada com 600mg
carbonato de cálcio por dia, aos 17 meses de pós-operatório dá nova entrada no
SU por quadro sintomático semelhante ao primeiro, mas agora à esquerda. O
estudo radiológico da coxa confirmou o diagnóstico de fratura mediodiafisária
do fémur esquerdo, oblíqua curta, tendo a doente sido novamente submetida a
redução fechada e encavilhamento centromedular rimado estático do fémur (Figura
3).
Analiticamente, a doente à data da segunda fratura apresentava um cálcio
corrigido de 8,4mg/dl (8,8-10,6), fosfato inorgânico 2,3mg/dl (2,5-4,5),
fosfatase alcalina de 82U/L (30-120) e um valor de paratormona 76pg/ml (9-72).
O cintigrama do esqueleto não apresentava critérios sugestivos de metastização
óssea (Figura_4).
DISCUSSÃO
Os bisfosfonatos são considerados a terapia de primeira linha no tratamento e
prevenção da osteoporose pós-menopáusica, aumentado a DMO e diminuindo o risco
de fraturas, principalmente da coluna vertebral e fémur[1,9]. Estes fármacos
reduzem a reabsorção óssea, inibindo a ação dos osteoclastos e promovendo a
apoptose[10]. O alendronato foi o primeiro medicamento desta família a ser
aprovado pela Food and Drug Administration, em 1995, e desde então um grande
número de mulheres na pós-menopausa e um menor número de homens com osteoporose
idiopática (por esteroides ou hipogonadal) têm vindo a ser tratados com este
fármaco.
A eficácia e segurança a curto prazo têm sido amplamente estudadas e
documentadas[1,2,3,10]. No entanto, há o receio da prevalência dos seus efeitos
adversos em terapêuticas crónicas. Embora sejam amplamente excretados pelos
rins, uma pequena quantidade de bifosfonatos permanece no corpo podendo-se
ligar ao tecido osteoide durante décadas. Os bifosfonatos têm um tempo de
semivida longo (cerca de 12 anos) e acredita-se que durante o período em que
permanecem no organismo, a inibição osteoclástica é sequencialmente seguida por
uma diminuição na formação de osso[11]. Desta forma, os bifosfonatos limitam o
processo de remodelação óssea podendo condicionar uma alteração na distribuição
de cargas que passam através do osso. Assim, apesar da DMO poder estar
preservada, a menor qualidade do osso e o insuficiente envelhecimento do
colagénio pode aumentar a suscetibilidade de fraturas[12].
Biópsias ósseas do foco de fratura e da crista ilíaca em doentes tratados com
bifosfonatos por vários anos confirmam a baixa remodelação óssea e tem sido
sugerido que a combinação do aumento da mineralização óssea com a redução
acentuada da remodelação podem promover a acumulação de microfraturas,
resultando em alterações no comportamento mecânico do osso[12,13].
A literatura confirma a existência de um padrão de fratura que tem
caraterísticas radiológicas específicas e que poderia, potencialmente, estar
relacionada com a utilização de bifosfonatos. Neste sentido a American Society
for Bone and Mineral Research (ASBMR)[14] criou um grupo de trabalho em que um
dos aspetos primordiais seria a definição de fratura atípica (Quadro_I).
A relação risco-benefício dos bifosfonatos tem sido documentada em múltiplos
estudos randomizados. Tendo em conta a incidência destas fraturas (31 por
10.000 doentes-ano, em mulheres que recebem o alendronato)[15] o risco
potencial absoluto relacionado com a utilização de bifosfonatos parecer ser
relativamente baixo pelo que, mesmo comprovando-se uma relação causal entre a
toma de bifosfonatos por longos períodos e a incidência deste tipo de fraturas
atípicas, seria extremamente difícil questionar o seu uso clínico.
Segundo os critérios da ASBMR, estamos perante uma fratura bilateral do fémur,
de padrão atípico, numa doente que tomava bifosfonatos consecutivamente há mais
de 13 anos, sem antecedentes palológicos relevantes e em que o estudo
complementar não apresentava critérios sugestivos de alteração no metabolismo
do cálcio, osteoporose ou metastização óssea. Tal facto fez-nos inferir que as
fraturas sofridas pela paciente poderão estar relacionada com uma significativa
diminuição da remodelação óssea secundária à toma crónica de alendronato.
Com este caso procurámos contribuir para a crescente discussão sobre a possível
relação entre a terapia a longo prazo com bifosfonatos e o seu impacto na
remodelação óssea, que poderá resultar em fraturas ditas "patológicas" ou
atípicas.
Em doentes a realizar este tipo de tratamento, uma dor na região inguinal ou na
coxa deverão levantar a suspeita da eminência ou presença de uma fratura,
devendo ser realizado um estudo radiológico complementar.
O autor é da opinião que sempre que se pondere a terapêutica com bifosfonatos
por períodos superiores a cinco anos e sempre que surja alguma suspeita
clínica, a suspensão ou substituição da terapêutica deve ser tomada em
consideração.
Estudos adicionais serão necessárias para melhor caracterizar o impacto da
terapêutica a longo prazo com estes fármacos na estrutura óssea, sendo
imperativo que se estabeleçam guidelines internacionalmente aceites sobre as
suas indicações e tempo terapêutico.