Pé de Charcot: Uma visão actual da neuroartropatia de Charcot
INTRODUÇÃO
A neuroartropatia de Charcot (NAC) é uma deformidade óssea e articular do pé
neuropático, em que a arquitectura e a organização estrutural dos ossos estão
alteradas, apresentando alterações radiográficas caracterizadas por destruição
e remodelação óssea, destruição articular, subluxação e luxação1-4.
Apesar de reconhecer que foi Mitchell o primeiro médico a descrever a
destruição osteoarticular associada à disfunção neurológica, foi Charcot que em
1868, fez a primeira descrição histopatológica detalhada das alterações
presentes na Tabes Dorsalis. Em 1881, Paget, num congresso médico internacional
em Londres, sugeriu a definição doença de Charcot para esta entidade patológica
detentora de várias definições4, 5, 6, 7.
Apesar da Diabetes ser actualmente a principal causa de NAC em todo o mundo, só
em 1936, esta patologia foi pela primeira vez descrita como uma complicação da
Diabetes1,2,5,6.
Embora seja reconhecida há mais de 300 anos, a NAC continua a ser uma entidade
complexa e difícil no que toca ao seu diagnóstico e tratamento. Os
profissionais de saúde devem estar, por isso, atentos a esta patologia dada a
tendência crescente da Diabetes e das suas complicações5.
O objectivo deste trabalho centrou-se na revisão bibliográfica da NAC a fim de
reunir os conhecimentos mais recentes nas várias dimensões desta patologia,
nomeadamente epidemiologia, patogénese, apresentação clínica, diagnóstico e
formas de classificação.
EPIDEMIOLOGIA
A NAC apresenta-se frequentemente sem aviso e pode rapidamente deteriorar-se
numa deformidade grave e irreversível do pé que pode conduzir à ulceração e
amputação4,5.
A incidência e prevalência da NAC permanecem desconhecidas devido à dificuldade
e ao atraso no diagnóstico decorrentes da inexistência de critérios de
diagnóstico clínicos e radiológicos estandardizados6. No entanto, a prevalência
relatada oscila entre 0,1 a 0,46,8.
A incidência desta patologia tem aumentado devido, em parte, à melhoria dos
métodos de imagem e ao menor número de amputações9.
A NAC é uma complicação complexa da Diabetes que está presente em cerca de 0,8-
8% dos diabéticos e em 10% dos diabéticos com neuropatia e alterações
radiográficas associadas9,10.
A incidência e prevalência do Pé de Charcot diferem entre pacientes diabéticos
tipo-l e tipo-ll. Pacientes com Diabetes tipo-l apresentam alterações típicas
do Pé de Charcot em idades mais jovens e têm maior predisposição para
desenvolver a patologia que os diabéticos tipo-ll11.
Esta grave complicação da Diabetes reduz a qualidade de vida e aumenta a
morbilidade e mortalidade dos pacientes12.
O Pé de Charcot surge habitualmente na quinta ou sexta década de vida, após
cerca de 10 anos do surgimento da Diabetes6.
Apesar de actualmente a Diabetes ser a principal causa de NAC, esta pode surgir
associada a hábitos etílicos marcados, siringomielia, neurosífilis, lepra e
outras patologias neurológicas4, 6, 9,12, 13.
A NAC atinge igualmente ambos os sexos e apresenta-se habitualmente de forma
assimétrica9.
PATOGÉNESE
O mecanismo exato da patogénese da NAC ainda não está estabelecido14.
Duas teorias tentam explicar a sua patogénese: a teoria Neurotraumática (Alemã)
e a Neurovascular (Francesa). Considera-se, no presente, que ambas as teorias
poderão ter um papel importante na patogénese da NAC1,4,5,6.
Segundo a teoria neurotraumática a destruição óssea deve-se à perda sensitiva
associada aos repetitivos traumas mecânicos do pé. O trauma imperceptível
combinado com a sustentação do peso no membro afectado causará fracturas e
destruição articular características desta patologia6.
Por outro lado, na teoria neurovascular, a destruição articular será causada
por um reflexo vascular secundário a uma desregulação neurológica autónoma
(simpatectomia) que vai causar hiperemia e osteopenia periarticular através da
activação de osteoclastos, o que facilita a ocorrência de fracturas com o
trauma6, 15, 16.
A neuropatia autonómica resulta numa osteopenia que associada à perda de
sensação protectora causada pela neuropatia sensitiva, predispõe à destruição
óssea ocorrida durante a marcha, pois o paciente não se apercebe do trauma. A
NAC resulta assim deste ciclo vicioso em que o paciente continua a caminhar no
pé doente permitindo o aparecimento de mais lesões16,17.
De referir que a resultante disfunção dos músculos intrínsecos do pé origina
sobrecarga em determinadas áreas, levando ao surgimento de microfracturas,
laxidez dos ligamentos e à progressão para a destruição óssea16,17.
Também as citoquinas pró-inflamatórias parecem ter um importante papel na
patogénese do Pé de Charcot. A resposta inflamatória causada pelo trauma no pé
originaria um desequilíbrio na regulação da citoquina RANK-L, responsável pela
activação dos osteoclastos, originando osteopenia, osteólise e mediocalcinose
das artérias do tornozelo5, 6,14,16-20. A figura_1 demonstra o mecanismo
explicativo da patogénese da NAC.
Figura_1
APRESENTAÇÃO CLÍNICA E DIAGNÓSTICO
Clinicamente a artropatia de Charcot pode-se apresentar sob duas formas, a fase
aguda e a fase crónica6.
O diagnóstico da NAC aguda é predominantemente clínico e deve-se suspeitar
desta entidade patológica na presença de um pé com sinais sugestivos de
inflamação, na ausência de febre e de uma porta de entrada visível, como
feridas interdigitais ou úlceras plantares6,23,24.
O Pé de Charcot agudo apresenta-se com hiperemia, edema, elevação de
temperatura superior a 2 graus quando comparado com o outro pé, pele muito seca
e neuropatia sensitiva. A sensibilidade proprioceptiva e os reflexos estão
diminuídos ou ausentes. A dor pode estar presente em graus variáveis ou mesmo
ausente, dependendo do grau de disfunção nervosa. Os pulsos arteriais do pé
atingido estão mantidos ou mesmo aumentados decorrente da vasodilatação
periférica característica da NAC21-24.
A apresentação aguda da NAC pode mimetizar uma crise de gota, TVP ou celulite,
daí a importância do doseamento de determinados parâmetros serológicos, como a
PCR e o ácido úrico, e da imagiologia na distinção destas diferentes entidades
patológicas6,7.
O diagnóstico clínico da fase aguda é difícil e a radiografia muitas vezes não
consegue identificar ou distinguir esta entidade de outras condições, falhando
o diagnóstico de fratura e/ou luxação. Por sua vez, a cintigrafia óssea com
radioisótopo tecnésio apresenta boa sensibilidade e baixa especificidade para
esta patologia. É de salientar, contudo, que apenas a ressonância magnética
(RMN) é capaz de revelar, com maior pormenor, a natureza do dano e da
inflamação óssea e dos tecidos moles adjacentes (edema da medula óssea
subcondral com ou sem microfracturas). A RMN é, assim, particularmente útil nos
primeiros estadios da doença, verificando-se uma correlação significativa entre
a intensidade do edema da medula óssea e determinados parâmetros clínicos, como
o edema das partes moles e a dor6, 7, 25.
O diagnóstico da NAC aguda é, portanto, baseado na história e no exame clínico
mas deve ser confirmado através de métodos de imagem. A Radiografia do pé deve
ser o primeiro exame de imagem a ser realizado a fim de verificar a ocorrência
de fraturas ou subluxações subtis. Quando apesar da suspeição clínica, a
Radiografia do pé é aparentemente normal, a RMN e a imagiologia nuclear podem,
algumas vezes, confirmar o diagnóstico7.
É de realçar que o atraso no diagnóstico correto da NAC aguda apresenta
consequências graves, na medida em que o paciente ao continuar a fazer carga no
pé afetado irá aumentar a destruição óssea e o surgimento de deformidades no pé
características da fase crónica22-24,26.
Na fase crónica da NAC, o pé não apresenta sinais inflamatórios, embora o edema
permaneça. Nesta fase existe deformidade do pé devido à diminuição do arco
plantar e ao equinismo causado pelo encurtamento do tendão de Aquiles. Estas
deformidades resultantes do atingimento osteoarticular e muscular originam
locais de hiperpressão e aumentam a probabilidade de ocorrência de úlceras e
amputação, em simbiose com a isquemia característica desta fase15,22,27,28.
CLASSIFICAÇÃO
Têm sido propostos diferentes sistemas de classificação para a NAC, sendo a
classificação anatómica de Sanders-Frykberg uma das mais populares. A NAC pode
ser classificada segundo vários parâmetros como por exemplo o estadio clínico,
a localização anatómica e o estadio da história natural da doença. As
classificações existentes não têm valor prognóstico nem influenciam o
tratamento4-6.
Classificação Clínica
Clinicamente a NAC pode ser dividida no estadio agudo ou crónico. Na fase aguda
ou activa o pé apresenta sinais inflamatórios marcados (rubor, edema e calor)
atingindo mais frequentemente o mediopé. A dor pode estar ausente, dependendo
do grau de neuropatia. Neste estadio o pé não apresenta deformidades e a
imagiologia é tipicamente normal5, 6.
Por outro lado, na fase crónica ou inactiva, os sinais inflamatórios locais
regridem progressivamente, permanecendo, no entanto, o pé ruborizado mas com
temperatura semelhante à do pé contralateral. É nesta fase que o pé pode
desenvolver deformidades características como colapso do arco plantar no
mediopé, originando a "deformidade rocker-bottom" e a convexidade
medial do mediopé5,6.
Classificação Anatómica
Vários autores propuseram classificações anatómicas da NAC de acordo com os
padrões de atingimento do pé e tornozelo, pois embora esta doença tenha sido
verificada em outras localizações corporais, no paciente diabético esta afeta
quase exclusivamente o pé e o tornozelo3.
Em 1991 Sanders e Frykberg propuseram a classificação anatómica da NAC mais
usada actualmente. Segundo esta classificação, a NAC pode ser dividida em cinco
padrões diferentes de acordo com as articulações envolvidas3,5,7 (Figura_2).
O tipo I presente em 15% dos pés com NAC, atinge as articulações
metatarsofalângicas e interfalângicas do pé. O tipo II, o mais comum,
responsável por 40% dos pés de Charcot, atinge as articulações
tarsometatársicas ou articulação de Lisfranc. O segundo padrão mais comum, o
tipo III, presente em 30% da NAC, caracteriza-se por um atingimento das
articulações naviculocuneiforme, talonavicular e calcaneocubóide. O padrão tipo
IV (10%) atinge as articulações do tornozelo e a subtalar. Por último, o tipo
V, presente em 5%, afecta a região do calcâneo. Os tipos IV e V apresentam mau
prognóstico devido à anómala distribuição da carga durante a marcha3,5,7.
A classificação anatómica de Sanders e Frykberg é apresentada na Tabela_1.
Existe ainda uma classificação anatómica mais simplista que caracteriza esta
entidade em 3 tipos diferentes de acordo com a localização do atingimento do
pé: antepé (articulações metatarsofalângicas e interfalângicas), mediopé
(articulações do tarso e tarsometatársicas) e retropé (articulação do tornozelo
e calcâneo)10.
Também Dounis classificou a NAC em três tipos distintos. O tipo I atinge o
antepé, o tipo II o mediopé e o tipo III causa instabilidade severa ao atingir
o retropé. O tipo III subdivide-se em tipo IIIa( se atinge o tornozelo), tipo
IIIb( se atinge a articulação subtalar) e o tipo IIIc( se há reabsorção do
talus e/ou calcâneo)10.
A distribuição da doença pode também ser descrita usando a classificação de
Brodsky (Tabela_2). A NAC geralmente inicia-se na região tarsometatarsal,
apesar de poder ser vista na articulação mediotársica, tornozelo ou nas
fraturas patológicas do calcâneo7.
Classificação de Roger
Roger propôs uma classificação que considera a presença de complicações que
podem ocorrer na NAC, como a presença de deformidades, ulceração e
osteomielite, e que poderá ser útil na previsão da necessidade de amputação
(Gráfico_1). Esta classificação é constituída por dois eixos (XY) e combina as
características do exame clínico, radiográfico e anatómico. O eixo X marca a
localização anatómica do pé e tornozelo atingido e é dividido em três regiões:
antepé, mediopé e retropé/tornozelo. O eixo Y descreve o grau de complicação
presente: A indica NAC aguda sem deformidade, B representa um pé de Charcot com
deformidade; C representa um pé com deformidade e ulceração e D inclui
osteomielite. Assim, movendo-se através do eixo X (envolvimento anatómico) e /
ou para baixo, o eixo Y (factores complicadores) a NAC torna-se " mais
complicada " e portanto, há maior risco de amputação7,23,27.
Classificação baseada na história natural da doença
Em 1966 Eichenholtz propôs uma classificação que correlacionava os achados
clínicos com os achados radiográficos, baseando-se na aparência radiográfica da
NAC e no seu curso fisiológico. A classificação de Eichenholtz divide a NAC em
3 fases distintas e lineares: desenvolvimento, coalescência e consolidação. No
estadio I (desenvolvimento da doença) existe eritema, edema e aumento da
temperatura; a radiografia do pé é normal, mas pode existir debris ósseos nas
articulações, fragmentação óssea subcondral, subluxação ou fratura4-6. No
estadio II ocorre a diminuição gradual dos sinais inflamatórios e a doença
torna-se mais evidente ao nível radiológico (ocorre reabsorção dos debris
ósseos com nova formação óssea e esclerose). No estadio III (consolidação da
doença), não há sinais inflamatórios e radiograficamente verifica-se
remodelação dos ossos e articulações afectados. É durante esta fase que as
deformidades podem alterar a arquitetura do pé, predispondo à ulceração6.
Em 1990 foi proposta uma adaptação à classificação de Eichenholtz a qual
incluía uma fase anterior à fase de desenvolvimento, o denominado Estadio 0 ou
fase inflamatória (Tabela_3). Segundo esta classificação, a NAC inicia-se com
um trauma não perceptível decorrente da neuropatia, originando um pé com sinais
inflamatórios, muitas vezes confundido com celulite, gota ou TVP. Esta fase
pode preceder o surgimento das alterações radiográficas em até um ano e pode
ser detectada através da RMN. As lesões cumulativas podem evoluir para graves
deformidades do pé, ulceração e amputação. A identificação desta fase
prodrómica pode impedir a progressão para as últimas fases da NAC prevenindo
mais deformidades e complicações4, 5, 29, 30.
CONCLUSÃO
A síndrome da NAC é uma complicação importante resultante da diabetes e da
neuropatia. O mecanismo exato da sua patogénese ainda não está esclarecido
apesar de considerar-se, no presente, que quer a teoria neurotraumática quer a
neurovascular poderão ter um papel importante.
Apesar de esta condição ser considerada uma das complicações importantes da
Diabetes, esta é identificada apenas numa pequena percentagem de Diabéticos.
Devido ao atraso no diagnóstico e tratamento da NAC esta progride para a
formação de úlceras, aumentando assim o risco de amputação, daí a importância
de um diagnóstico e tratamento precoce.
Embora vários autores tenham apresentado diferentes sistemas de classificação
com alguma importância clínica, estes não possuem valor prognóstico nem
influenciam o tratamento.
Trata-se de uma neuroartropatia com consequências individuais e sociais
importantes, que estando predominantemente associada à epidemia da Diabetes,
merece especial atenção a fim de diagnosticarmos e tratarmos precocemente esta
complicação decorrente deste grave problema de saúde pública.