Luxação glenoumeral posterior bilateral complicada de fractura cefálica na
sequência de choque eléctrico
INTRODUÇÃO
As luxações posteriores da articulação glenoumeral são raras, correspondendo a
4 % das luxações do ombro, sendo que apenas 1 % dos casos são complicados com
fractura1. Os casos bilaterais representam menos de 5 % de todas as luxações
posteriores, sendo que cerca de metade apresentam uma fractura-impacção da
região antero-interna da cabeça umeral, denominada de lesão de Hill-Sachs
inversa ou de McLaughlin2, e menos frequentemente com fractura cefálica sem
impacção óssea.
As causas mais frequentes de luxação posterior são as crises convulsivas, o
trauma de alta energia ou o choque eléctrico1. Cerca de 50 % dos casos de
luxação bilateral devem-se a episódio convulsivo, enquanto o choque eléctrico é
responsável por menos de 5 % dos casos1.
São várias as técnicas descritas para o tratamento destas lesões: reconstruções
não-anatómicas, como a transferência do tendão subescapular/troquino para o
defeito da cabeça, ou a osteotomia desrotatória da cabeça umeral. Outras opções
são a aposição de enxerto ósseo autólogo ou heterólogo e a artroplastia. O
aloenxerto osteocondral também é uma opção viável para a reconstrução da
cabeça, apresentando-se como alternativa à artroplastia, com vantagem da
preservação anatómica2,3.
Apresentamos um caso de luxação glenoumeral posterior bilateral complicada de
fractura cefálica, na sequência de choque eléctrico. Este caso reveste-se de
particular interesse pela raridade da lesão e pela opção tomada no tratamento
desta.
CASO CLÍNICO
Foi observado no serviço de urgência um paciente do sexo masculino de 34 anos
de idade, técnico de telecomunicações. Referia omalgia bilateral intensa após
choque eléctrico de 360 volts (60 amperes), sem perda de consciência.
Previamente saudável. Ao exame físico apresentava incapacidade funcional de
ambos os membros superiores e a tentativa de mobilização passiva era muito
dolorosa, condicionando o exame objectivo. Não apresentava défices de perfusão
nem alterações da sensibilidade.
O estudo imagiológico inicial incluiu radiografias antero-posterior e perfil em
Y da omoplata (Figura_1). Para caracterizar a complexidade das lesões realizou
uma Tomografia Computorizada (Figura_2). Assim confirmamos a luxação
glenoumeral posterior bilateral: à esquerda com pequena fractura cefálica e
área de impacção importando no total cerca de 30% da superfície articular
umeral antero-interna; à direita apresentava fractura cefálica com fractura-
impacção articular associada, correspondendo no total a cerca de 45% da
superfície articular umeral antero-interna.
Foi submetido a tratamento cirúrgico de urgência: posicionamos em cadeira-de-
praia abordando primeiro o lado esquerdo e depois o direito. A via utilizada
foi a deltopeitoral bilateralmente. À esquerda, após osteotomia do troquino,
confirmou-se a existência de pequeno fragmento osteocondral da cabeça (2,5 cm2)
associado a lesão de Hill-Sachs inversa, sem viabilidade da cartilagem,
correspondendo no total a 30% da área articular da cabeça umeral. Após remoção
do fragmento, procedemos à transposição do troquino para o defeito cefálico
anterior, fixando-o com 2 parafusos. À direita, após osteotomia do troquino,
verificamos um fragmento osteocondral da cabeça descoaptado (8 cm2) sem lesão
cartilagínea, associado a área de impacção da cabeça, com cartilagem sem
viabilidade, correspondendo no total a cerca de 45% da área articular da cabeça
umeral. Procedemos à redução e fixação do fragmento osteocondral da cabeça
umeral com 1 parafuso e reconstrução da restante cabeça umeral com enxerto
osteocondral da cabeça umeral contralateral fixado com parafuso. A reinserção
do troquino foi realizada com sutura trans-óssea com fio sintético não
absorvível (Ethibond®). Por rotura parcial do tendão da longa porção do
bicípete braquial à direita, realizamos a tenodese. Não verificamos lesões da
coifa dos rotadores ou da glenoide. Verificamos a estabilidade em todo o arco
de mobilidade intraoperatóriamente. Sem intercorrências peri-operatórias.
Os membros ficaram imobilizados com ortótese em abdução, extensão e rotação
externa bilateral durante 6 semanas, após o que iniciou mobilização passiva com
artromotor. Às 10 semanas iniciou mobilização ativa assistida e às 14 semanas
mobilização ativa com reforço muscular.
Com um follow-up de 3 anos e 8 meses, apresenta um Score de Constant absoluto
de 92 à esquerda e 80 à direita. O arco de mobilidade ativo é sobreponível ao
passivo (Figura_3) e os testes para instabilidade são negativos bilateralmente.
O doente encontra-se assintomático, satisfeito com o resultado funcional, tendo
retomado a atividade profissional prévia.
Figura_3
As radiografias mostraram a centragem das cabeças umerais, com a fractura e os
enxertos consolidados, sem sinais de necrose avascular ou alterações
degenerativas. (Figura_4).
DISCUSSÃO
A luxação glenoumeral posterior bilateral complicada de fractura é uma lesão
rara, passando desapercebida em até 50 % dos casos, conduzindo ao atraso do
tratamento adequado, tornando-o mais complexo e com resultados clínicos e
funcionais inferiores4.
A convulsão é uma causa bem descrita destas lesões, secundária ao espasmo
muscular que, com o ombro em posição de adução, rotação interna e flexão, força
a epífise umeral em direção superior e posterior sobre a glenoide5. Após a
convulsão a epífise umeral mantém-se bloqueada no bordo posterior da glenóide,
frequentemente com uma lesão de Hill-Sachs inversa. Em espasmos prolongados,
pode ocorrer uma fractura de complexidade crescente do úmero proximal.
Encontram-se documentados na literatura (PUBMED) apenas 8 casos de luxação ou
fractura-luxação gleno-umeral posterior bilateral na sequência de choque
eléctrico, pensando-se que o mecanismo responsável pela lesão seja semelhante
ao descrito para o episódio convulsivo6,7.
São vários os aspectos a considerar na decisão terapêutica: dimensão do defeito
da cabeça, período temporal decorrido desde o episódio traumático, idade,
ocupação e nível de atividade do doente8. Um dos factores mais importantes na
decisão é o tamanho da lesão de Hill-Sachs inversa.
Para lesões até 25% da superfície articular, a redução fechada pode ser
suficiente em lesões agudas ou com menos de 6 semanas de evolução e sem
fracturas associadas8. As lesões instáveis após a redução devem ser tratadas
cirurgicamente.
Para lesões envolvendo até 40% da superfície articular, diversas são as opções
cirúrgicas descritas.
Em 1952, McLaughlin foi o primeiro a reportar o tratamento da lesão mediante a
transferência do tendão do sub-escapular para o defeito osteocondral9. Mais
tarde, Hughes e Neer modificaram esta técnica preconizando a transferência do
troquino com a inserção do tendão subescapular para a área do defeito10. Em
1984, Weber defende a osteotomia subcapital umeral desrotatória11. Todas estas
técnicas não-anatómicas alteram a anatomia original podendo levar a limitação
da rotação interna e a dificultar uma reconstrução protética futura.
As lesões agudas com cartilagem viável são passiveis de reconstrução anatómica
com desimpacção do osso subcondral e aposição de cimento12 ou auto ou
aloenxerto2,3. Para lesões envolvendo mais de 40% da superfície articular da
cabeça umeral a artroplastia é o tratamento de eleição. Quando está associada
uma fratura proximal do úmero deve ser realizada a osteossíntese da fractura ou
a artroplastia, dependendo do tipo de fractura.
No caso apresentado, à esquerda, tendo em conta a superfície articular total
atingida (30%), a inviabilidade da cartilagem articular na área de impacção e
constatando que o fragmento osteo-condral era insuficiente para cobertura
completa da lesão, optou-se pela sua remoção (viria a ser utilizado como
enxerto para o ombro contralateral). Procedemos então à transposição do
troquino para o defeito cefálico anterior, fixando-o com 2 parafusos. Optamos
pela transferência do troquino, por proporcionar melhor cobertura da lesão e
uma inserção mais segura do tendão13, permitindo uma mobilização articular
ativa mais precoce14. Finkelstein et al14 reporta o ganho de flexão, abdução e
rotação externa completas 3 meses após este procedimento, em 7 doentes com
lesões entre 20 a 45% da superfície articular umeral. Checchia et al8 descreve
resultados similares mas realça a importância do intervalo de tempo entre a
lesão e o seu tratamento. Aparicio et al15 encontrou alterações radiográficas
degenerativas em 6 de 7 casos, que atribuiu à alteração da biomecânica
articular com a transposição do troquino para uma posição não anatómica. No
caso apresentado verificámos um arco de movimento com boa amplitude aos 6 meses
após a cirurgia e que permanece sobreponível no último follow-up, não
apresentando ainda alterações degenerativas radiológicas.
À direita, o defeito de 45% da superfície articular, colocou em discussão a
preservação versus a substituição articular. Devido à idade do paciente,
optámos por preservar a cabeça umeral, com osteossíntese do fragmento cefálico
com 1 parafuso e reparação da lesão com enxerto osteocondral autólogo da cabeça
umeral contra-lateral, fixado com 1 parafuso. Ao nosso conhecimento este é o
primeiro caso descrito com utilização de um enxerto osteocondral da cabeça
umeral contralateral. Esta foi uma opção viável por ser uma lesão bilateral,
tratada cirurgicamente no mesmo tempo operatório, permitindo a estratégia
conjunta para os 2 ombros. Diklic et al2 reporta um conjunto de 13 doentes com
follow-up de 54 meses, com Score de Constant médio de 86,8 em defeito da cabeça
de 30 a 50% da superfície articular e tratados com aloenxerto osteocondral
femoral. Apesar das diferenças para a técnica preconizada no nosso caso,
consideramos que os bons resultados apresentados nestes estudos encorajam à
reconstrução da cabeça com enxerto em alternativa à artroplastia em lesões mais
extensas e sem viabilidade da cartilagem, particularmente em doentes jovens.
Contudo, é desconhecido os resultados a médio e longo prazo, quer a nível
funcional, quer na incidência de alterações degenerativas da articulação. No
caso apresentado a abdução e a rotação externa apresentam alguma limitação,
contudo o doente está assintomático e satisfeito em termos funcionais com o
resultado, o que se reflete no bom Score de Constant absoluto obtido.
Apesar de raras, as luxações posteriores do ombro devem ser meticulosamente
investigadas em mecanismos de lesões pós-convulsão, politraumatismos de alta
energia ou choque eléctrico, pois o atraso no diagnóstico agrava o prognóstico
da lesão. O estudo com Tomografia Computorizada é fundamental para determinar a
área de impacção da superfície articular cefálica, bem como lesões associadas.
Estas informações, em conjunto com a idade e atividade do doente, orientam-nos
na planificação terapêutica. A opção tomada neste caso foi possível pela
abordagem cirúrgica bilateral no mesmo tempo operatório, que permitiu
restabelecer uma função satisfatória, com bons resultados 6 meses após a
cirurgia e que se mantêm ao final de quase 4 anos.