Breves Reflexões sobre a Cirurgia em 2012
ARTIGO DE OPINIÃO
Breves Reflexões sobre a Cirurgia em 2012*
Short reflections on Surgery in 2012
Araújo Teixeira
Prof. Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina do Porto
Presidente do Conselho Superior das Ciências da Saúde, Instituto Piaget
Correspondência
Ex.mos Senhores
Diretor Geral dos Hospitais
Bastonário da Ordem dos Médicos
Presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia
Digníssimos Membros de Honra do Congresso
As minhas primeiras palavras são para cumprimentar V. Ex.ª, Sr. Diretor Geral
dos Hospitais, enaltecendo a competência, dignidade e isenção que tem sabido
atribuir ao alto cargo que desempenha.
Na pessoa do Senhor Bastonário, cumprimento o representante dos médicos
portugueses, não tendo qualquer dúvida que Vª. ExCª. continuará a sua missão de
defesa intransigente dos nossos direitos.
Aos senhores Professores Potel Lesquereux, Bernard Sastre e Azoulay, membros de
honra deste congresso, manifesto a minha muita consideração destacando a
valiosa colaboração entre a Cirurgia Portuguesa e a dos Países que Vas. Exc.as
aqui brilhantemente representam.
Agradeço ao senhor Presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia o amável e
honroso convite que me dirigiu para ser o Presidente de Honra deste Congresso,
convite só compreensível pelo entusiasmo de uma vida inteira dedicada à
cirurgia, 25 anos dos quais como responsável do antigo Serviço de CII da
Faculdade de Medicina do Porto / Hospital de S. João.
Caros Colegas, minhas Senhoras e meus Senhores
Vou procurar sintetizar os acontecimentos mais importantes da cirurgia dos
últimos anos, não fugindo à responsabilidade de me referir às preocupações que
tanto inquietam os cirurgiões atuais e que, por razões óbvias, por eles nem
sempre podem ser denunciados.
Muito do que direi não são mais do que reflexões sobre assuntos por mim já
analisados em publicações anteriores.
Quando os cirurgiões da minha geração se licenciaram, a cirurgia portuguesa já
se encontrava em plena pujança, para isso muito contribuindo o prestigiado
internato dos Hospitais Civis de Lisboa e, posteriormente, do Hospital de Santo
António no Porto, este último instituído pelo meu Pai, então Diretor de Serviço
de Cirurgia daquele Hospital. Basta dizer que, em Lisboa, durante muitos anos
era clássico os Professores da Faculdade de Medicina obterem antes dos títulos
académicos, o concurso para cirurgião daqueles Hospitais.
Nas últimas décadas do século XX, registou-se uma enorme evolução na cirurgia
portuguesa a exemplo do que aconteceu no mundo inteiro.
Para isso, muito contribuiu a colaboração proporcionada pelas técnicas
endoscópicas, de imagiologia, radiologia de intervenção, biologia e medicina
nucleares, organização de Unidades de Cuidados Intensivos, suturas mecânicas,
permitindo estas últimas cirurgias mais ousadas nomeadamente ao nível do
esófago e do reto.
Em 1976, após o 25 de Abril, a exemplo do que acontecia na Europa, organizaram-
se os primeiros Cursos de Pós-Graduações, entre os quais é justo destacar as
Reuniões Internacionais de Cirurgia Digestiva organizadas pelo meu antigo
Serviço de Cirurgia 2 (SC2) no H. S. João, seguindo-se posteriormente outras em
Coimbra e Lisboa.
Em 1978, é fundada a Sociedade Portuguesa de Cirurgia graças ao esforço de José
Manuel Mendes Almeida e de Machado Macedo, sendo o seu primeiro presidente
Joaquim Bastos.
Em 1987, assiste-se a uma verdadeira revolução da cirurgia de então, com a
realização da primeira colecistectomia laparoscópica por Phillipe Mouret em
Lyon e, posteriormente, François Dubois em Paris e Jacques Perissat em Bordéus.
A cirurgia clássica com grandes incisões dá o lugar à cirurgia mini-invasiva,
com pequenas cicatrizes, vantagens estéticas daí inerentes, menos dolorosa e
com maior recuperação socioprofissional.
A princípio encarada com ceticismo, com enormes críticas por alguns cirurgiões
de então, foi, em breve, utilizada praticamente em todas as áreas cirúrgicas,
nomeadamente na DRGE, colo-retal, esplenectomia, ginecologia, urologia e em
matérias de diagnóstico.
Os cirurgiões portugueses atentos ao que se passava no estrangeiro, cedo
abraçaram a nova técnica, nomeadamente Alves Pereira e Trindade Soares em 1991
e, em Março do mesmo ano, eu e os meus colaboradores de então, (Carlos Saraiva
e Rocha Reis); igualmente devem ser referidos, entre os seus pioneiros, Bicha
Castelo, Castro Sousa, Augusto Moreira, Veiga Fernandes, Vítor Ribeiro, Jorge
Maciel, Costa Cabral e Pedro Coito. O meu antigo serviço SC2 continuou a
proporcionar a devida atenção a este tipo de cirurgia, publicando
sucessivamente em revistas nacionais e estrangeiras a sua experiencia sobre a
evolução desta técnica.
Em 1995, efetuou-se em Portugal o Congresso Mundial de Cirurgia que, há 40
anos, não se realizava entre nós, e a cuja comissão executiva tive a honra de
presidir, nele se destacando a valiosa colaboração organizativa de Bicha
Castelo.
Nos últimos anos do século XX, assistiu-se igualmente em Portugal, ao
desenvolvimento da cirurgia hepática e de transplantações, sendo justo referir
Linhares Furtado, Castro Sousa, Fernando José Oliveira em Coimbra, João Pena e
Eduardo Barroso em Lisboa e, no Porto, Vítor Ribeiro e Manuel Teixeira no H. S.
António e Abílio Gomes, José Bernardo e Costa Maia no H. S. João. Do mesmo
modo, desenvolveu-se a cirurgia esofágica com importante participação de José
Manuel Mendes de Almeida e Amadeu Pimenta.
A partir de 1999, surge novo conceito de cirurgia, com a divulgação dos Robotse
a sua comercialização em 2000. Desde logo foram proclamadas as suas vantagens:
visualização em 3 dimensões, aumento em 10 vezes da imagem, melhor ergonomia,
maior comodidade para o cirurgião e menor trémulo. Sucessivamente foram-se
apresentados modelos de nova geração com 4 braços e 2 consolas. Inicialmente
utilizados em cirurgia cardiovascular foram posteriormente usados, de modo
particular, na disseção das regiões profundas, nomeadamente na DRGE, na
cirurgia de cancro do reto baixo (facilitando a exérese do meso-reto,
preservando os plexos nervosos), na retopexia e, principalmente, nas
prostatectomias. Dados recentes de apontam para a existência de 1482 Robots,
dos quais 1091 no EUA e os restantes nos países Europeus. Devido ao seu elevado
custo (1.750.000,00 €) têm indicações muito precisas. Por isso, apenas são
rentabilizados em grandes centros hospitalares em que se realize com frequência
aqueles tipos de cirurgia.
Já em pleno século XXI e associados à cirurgia laparoscópica, os Robots deram
um grande impulso à telecirurgia, possibilitando a Jacques Marescaux a
orientação de New York para Estrasburgo de uma colecistectomia laparoscópica.
No futuro, admite-se a hipótese de haver a possibilidade de serem orientadas,
por rotina, intervenções a vários quilómetros de distância, não sendo porém de
menosprezar eventuais problemas éticos e médico-legais que daí possam surgir.
Do mesmo modo se aperfeiçoaram as técnicas de cirurgia laparoscópica,
utilizando-se um menor número trocarts e recorrendo-se à extração das peças
cirúrgicas através dos orifícios naturais (NOTES).
Apesar de todas estas novas tecnologias, o estado atual da cirurgia em todo o
mundo não pode deixar de ser encarado com algumas preocupações.
Assim, é indiscutível a diminuição crescente da procura pelos mais jovens desta
especialidade (25,9% nos USA de 1981 a 2005), dado o esforço físico no Serviço
de Urgência a que ela obriga, baixa remuneração em relação a outras áreas
(naqueles que optem pela clínica privada) e ainda por estar sujeita a
crescentes processos médico-legais.
Por outro lado, são cada vez mais evidentes as dificuldades inerentes à
formação dos jovens Internos. Tal facto está dependente do pouco tempo que por
vezes é disponibilizado pelos cirurgiões seniores para sua formação, dada a
sobrecarga de trabalho cirúrgico e administrativo para que estes últimos são
solicitados. Por isso, a preparação desses internos sofreu uma total
modificação em todo o mundo, associando-se à frequência no Bloco Operatório a
participação nos chamados "Skill Laboratories", como foi proposto
pelo American College of Surgeons para a acreditação em cirurgia.
Na Temple University, os internos são obrigados a incluírem no seu curriculum
55% de atividade em cirurgia experimental treinando-se, ainda, em simuladores
virtuais acoplados a computadores.
A preparação dos residentes de cirurgia ao longo dos 6 anos de Internato é
altamente desgastante e de custos elevados para a coletividade.
É importante reconhecer por esta razão que, tais Internos, no fim do seu
estágio, dificilmente estarão preparados para individualmente assumirem a
responsabilidade de alguns atos cirúrgicos. Parece-nos imprescindível que nos
hospitais em que esteja institucionalizada a chamada setorização em áreas
específicas** (esófago, hepatopâncreas, colo-retal baixo e pescoço) seja
implementado um setor individualizado de cirurgia geral (como já foi referido
por Jorge Maciel) correspondente a cirurgia gástrica, cólica, vias biliares,
hérnias e até determinados tipos de cirurgia laparoscópica. Os jovens
especialistas deveriam frequentar este último grupo durante um ou dois anos e
só depois ingressariam na cirurgia altamente diferenciada. Se assim não for, em
breve surgirão situações gravíssima no serviço de urgência e no ingresso
daqueles cirurgiões para hospitais menos diferenciados.
A avaliação dos serviços prestados não pode ser feita essencialmente em função
de uma eventual presença física revelada por um relógio de ponto mas,
fundamentalmente, pela eficiência com que são efetuados diversos atos de
cirurgia e pelas publicações científicas decorrentes das investigações
imprescindíveis na medicina atual. Atrevo-me, mesmo a dizer, que a valorização
indiscriminada do relógio de ponto deveria dar lugar ao relógio do dever
cumprido, em qualquer hora do dia ou da noite.
Mas há ainda, entre nós, situações anacrónicas difíceis de compreender e que em
parte são responsáveis pela hemorragia de alguns cirurgiões do setor público
para o privado.
Tais factos acarretam uma sensação de mal-estar e de intranquilidade em muitos
dos clínicos que frequentam os Hospitais portugueses. Por razões fáceis de
imaginar, poucos são aqueles que têm coragem de as denunciar.
Entre eles, devem-se destacar as publicações de Costa Almeida, como aconteceu
recentemente no Editorial dos Arquivos Portugueses de Cirurgia. São suscetíveis
de reflexão: a atribuição a jovens especialistas de honorários pelo dobro ou
triplo daqueles que já estão, há vários anos, na carreira hospitalar; a não
valorização das carreiras médicas universitárias e hospitalares para os lugares
de chefia; a contratação individual por objetivos em que a quantidade pode
sobrepor-se à qualidade.
Seja-me permitido citar o Professor de Coimbra acima referido: "Alguns
médicos saem das carreiras graças a contratos individuais de trabalho, no mesmo
hospital para as mesmas funções para valores milionários em relação a outros
que lá permanecem".
Termino proferindo palavras de esperança para aqueles a quem entregamos a
responsabilidade de ocuparem os nossos lugares e para os quais a história será
implacável no modo como atuarem futuramente.
"Como já escrevi:
Amizade, lealdade, entusiasmo nos momentos de desânimo, acompanhamento e
crítica construtiva nas investigações e atos cirúrgicos dos mais jovens,
humildade e reconhecimento dos eros cometidos, defesa intransigente das
carreiras universitárias e hospitalares, foram os valores que os meus mestres
(meu Pai, Fernando Magano, J. Hep, Mercadier) me ensinaram e aqueles que me
acompanharam durante toda a nossa vida cirúrgica (Adolfo Gama e José Ramalhão)
me ajudaram a implantar no serviço que dirigi durante 25 anos, cujo prestígio
certamente muito contribuiu para o honroso convite para estar hoje aqui
presente.
Estou convencido que os cirurgiões portugueses continuarão a dar o melhor do
seu esforço nos Hospitais onde trabalham e tudo farão para que continuem a
sentir-se orgulhosos do nosso Serviço Nacional de Saúde, sem dúvida um dos
melhores da atualidade, contribuindo, assim, para o prestígio da medicina
Portuguesa e satisfação dos seus utentes".
Por fim, uma vez mais seja-me permitido repetir a frase de Jean Pierre Favre
"As mãos são santas, a cirurgia é sacramental, os doentes pedem para que
aconteça um milagre e esperam que Deus lhes envie um cirurgião para o
realizar".