As Primeiras Lesões por Armas de Fogo- novo paradigma para o cirurgião militar:
Ambroise Paré
HISTÓRIA E CARREIRAS
As Primeiras Lesões por Armas de Fogo- novo paradigma para o cirurgião
militar - Ambroise Paré
The First Firearms Lesions- a new paradigm for military surgery -
Ambroise Paré
Miguel Onofre Domingues1; Madalena Esperança Pina2
1Interno de Cirurgia Geral do Centro Hospitalar de Lisboa Central e colaborador
do Departamento de História da Medicina, Faculdade de Ciências Médicas -
UNL,
2Regente do Departamento de História da Medicina, Faculdade de Ciências Médicas
- UNL
Correspondência
INTRODUÇÃO
Alexandre da Macedónia, general de extraordinária habilidade, talvez um dos
melhores estrategas de todos os tempos, revolucionou a arte da guerra no seu
tempo, tornando as suas falanges mais agressivas com lanças de 4 metros e
diminuindo as suas armaduras, o que permitia aumentar a mobilidade dos seus
homens, e utilizando pela primeira vez a cavalaria, reforçada por armaduras,
com lanças e espadas, que envolvendo os seus opositores pelos flancos os
posicionava ao alcance das suas falanges apeadas.
Mas as tácticas e a mestria de Alexandre, usadas como referência durante vários
séculos, tornaram-se completamente obsoletas no século XIV, quando a pólvora
começou a encher os campos de batalha de fumo. Com a introdução e utilização da
pólvora ao serviço dos exércitos, as tácticas forçosamente tiveram de se
adaptar às novas circunstâncias e danos, agora infligidos à distância. As
armaduras, outrora tão úteis, tornaram-se completamente devassáveis e portanto
inúteis para fazer face ao novo poder de destruição resultante da aplicação da
pólvora.
O aparecimento pólvora e das primeiras armas de fogo
A descoberta da pólvora tem sido consensualmente aceite na comunidade
científica como originária da china no século IX. Descoberta pelos alquimistas
chineses na busca do elixir da imortalidade, a pólvora resultou de séculos de
experimentação. A palavra chinesa para "pólvora" é: 火火/火火; Huo Yao
/ xuou y火火 /, significa "fogo da Medicina", estando a primeira
referência às propriedades incendiárias da pólvora descrita num texto
"taoista" Zhenyuan miaodao yaolüe (真元妙道要略) de meados do século IX:
"aquecidos juntos, enxofre, realgar (derivado do ácido sulfúrico) e
salitre com mel originaram chamas e fumo, de tal forma que as suas mãos e
rostos foram queimados, e até mesmo toda a casa ardeu" (Fig._1).
Nos séculos que se seguiram, foram descritos uma variedade de objetos
propulsores criados pelos chineses, incluindo lança-chamas pólvora, foguetes,
bombas, entre outros. Os primeiros projécteis apareceram por volta de 904-906
- 'flying fires' (Fig._2).
No entanto, o primeiro registo do uso da pólvora ao serviço de um exército como
propulsora de lanças foi descrito em 1232 na batalha de Kai-Keng entre a China
e a Mongólia. (Fig._3). Os Mongóis após o combate criaram os seu próprios
modelos e pensa-se terem sido uns dos responsáveis pela sua disseminação pela
Europa a par de Roger Bacon, que importou e melhorou a formula da pólvora
- descrita no seu livro "De nullitate magiæ" publicado em
1216 (Fig._4).
Os primeiros objectos propulsores de projécteis eram constituídos por um tubo
de bambu preenchido por pedras ou outros objectos de arremesso onde uma mistura
de salitre, enxofre e carvão em contacto com o fogo criava um escape de gazes
responsável por expelir os objectos. Os dispositivos que utilizavam as
propriedades propulsoras e explosivas do novo composto são mencionados pela
primeira vez num manuscrito datado de 1326, em que se descreve um canhão em
forma de vaso, capaz de disparar um projéctil de ferro em forma de seta (Fig.
5).
A introdução da pólvora na Europa rapidamente se fez acompanhar da sua
utilização para fins bélicos. No século XIV surgiram os primeiros canhões de
bronze e a sua consequente evolução deu origem a armas cada vez mais pequenas,
capazes de serem transportadas e utilizadas por um só homem, as chamadas armas
de fogo de roda de mecha - arcabuzes e mosquetes - que vieram
revolucionar toda a táctica militar de então.
A primeira arma de fogo individual usada na Europa teve origem na Hungria, com
o nome de arcabuz, sendo que um em cada três soldados do exército Austro-
Húngaro possuía um arcabuz. No final do século XV as armas de fogo eram apenas
um complemento aos besteiros, mas em 1550 a sua importância estratégica tinha
suplantado o uso da besta como arma principal de guerra, quer nos campos de
batalha europeus quer nos do Novo Mundo. O mosquete, que sucedeu ao arcabuz,
foi uma das primeiras armas de fogo usadas em larga escala pelos soldados de
infantaria entre os séculos XVI e XVIII. A arma era carregada pela boca com
pólvora e por aí era igualmente colocado o projéctil. O sistema de disparo
consistia em mechas incendiárias. O alcance máximo que um mosquete poderia
alcançar era de cerca 90 a 100 metros. (Figs._6 e 7)
A Batalha de Crécy - 26 de agosto de 1346
Segundo relatos da época, os canhões foram usados pela primeira vez na Europa,
nos campos de Crécy, pelas tropas inglesas durante a Guerra dos Cem anos. A
Batalha de Crécy teve lugar a 26 de Agosto de 1346 e foi o primeiro grande
confronto da Guerra dos Cem Anos, entre os exércitos de Filipe VI, da França, e
Eduardo III, da Inglaterra, que terminou com a vitória dos ingleses. (Fig._8)
As lesões por armas de fogo - o novo paradigma para a Cirurgia
Quando os ingleses utilizaram pela primeira vez as armas de fogo (1346), na
batalha de Créçy, Guy de Chauliac, ital. Guido De Cauliaco (1298-1368) foi um
dos primeiros autores que fez anotações sobre o tratamento deste tipo de
lesões. (Fig._9).
Escreveu em 1363 a sua grande obra Chirurgia magna (titulo original:
Inventorium sive collectorium in parte chirurgiciali medicin.) considerado até
ao século XVI o grande livro, e referência da cirurgia do seu tempo. No seu
livro Chauliac seleccionou e compilou de todos os seus antecessores as técnicas
e as práticas cirúrgicas consideradas mais importantes e de maior referência à
época, comentando e acrescentando pormenores da sua prática clínica e
experiência cirúrgica. Neste incluem-se textos de Galeno, Hipócrates,
Aristóteles, Razi (Rhazes), Abul Kasim (Albucasis), Avicenna (Ibn Sina), entre
outros autores. (Fig._10)
Sobre este livro, Ambroise Paré afirmou: "Guy de Chuliac escreveu um
livro imortal que estará sempre ligado ao destino e aprendizagem da escola
cirúrgica francesa da sua época" (Fig._11).
As feridas causadas por armas de fogo levantaram inicialmente grandes problemas
aos cirurgiões militares, por se entender que os projécteis disparados causavam
três efeitos distintos no corpo do ferido e que cada um deles necessitava de
tratamento próprio. O projétil provocava uma ferida contusa, o efeito da
explosão provocava uma queimadura e a pólvora provocava envenenamento. A grande
destruição dos tecidos fornecia consequentemente um óptimo meio de crescimento
bacteriano e os cirurgiões depararam-se com um novo tipo de ferida e gangrena
desconhecidos.
Depois de Guy de Chauliac, Giovanni de Vigo (1450-1525), médico italiano,
escreveu sobre o tratamento de ferimentos por arma de fogo, e defendia que
todas as feridas por arma de fogo descritas pelo próprio como "contusas e
queimadas", não necessitavam de cauterização com ferro em brasa mas sim
azeite a ferver para combater a ação tóxica da pólvora, uma vez que era esta a
razão principal da evolução catastrófica das feridas por arma de fogo;
"as propriedades venenosas e tóxicas da pólvora". (Fig._12)
No seu grande livro, "Practica Copiosa in Arte Chirurgie" reúne uma
serie de autores Gregos e Árabes, e caracteriza e descreve os ferimentos por
arma de fogo afirmando que teriam de ser tratados com óleo a ferver ao invés de
cauterizados com ferro em brasa. O prestígio de Vigo no meio médico europeu
pode ser avaliado pelo facto de sua obra Practica in chirurgia, publicada em
1514, ter alcançado 30 edições.
Este tipo de pensamento arrastou-se durante muito tempo até que um cirurgião
mais atento, Bartolomeo Maggi (1477-1552), cirurgião militar e professor da
Universidade de Bolonha, resolveu investigar e verificar que nada se passava
assim. Disparou balas de arcabuzes sobre pólvora, enxofre e fatos de soldados e
verificou que a bala não fazia arder nenhum destes elementos, o que facilmente
comprovava que estas, por si só, não provocavam queimaduras. Verificou também
que a ingestão de pólvora ou dos seus componentes não provocava qualquer
envenenamento, acabando de vez com a ideia antiga de que a pólvora tinha esse
efeito.
Ambroise Pare (1510-1590) - O cirurgião militar
A revolução no tratamento das feridas por armas de fogo começou com Ambroise
Paré.
O que o intempestivo e revolucionário Paracelo fez pela medicina do seu tempo e
o brilhante Vesalius pela anatomia renascentista. Paré, arriscamo-nos a
afirmar, fez pelo renascimento da cirurgia militar e da cirurgia como um todo e
como disciplina separada da medicina devolvendo-lhe um estatuto e lugar
determinantes para o seu desenvolvimento e prestigio no século século XVI. O
seu exemplo e os seus tratados influenciaram inúmeras gerações de seus
discípulos, não só pelos seus métodos científicos mas, e sobretudo, pelo seu
exemplo de humanismo. (Fig._13)
Ambroise Paré (1510-1590) não era médico e iniciou sua carreira como aprendiz
de cirurgião-barbeiro na cidade de Laval, no interior da França. Ainda jovem
transferiu-se para Paris e, aos 19 anos, conseguiu o que mais desejava -
trabalhar no Hôtel-Dieu de Paris, considerado o mais antigo hospital da cidade
e um dos melhores hospitais da época. Trabalhou quatro anos como auxiliar de
cirurgia, vendo, observando e participando do tratamento de feridos.
Demonstrou, desde o início, uma habilidade cirúrgica fora do comum e interesse
em aprender. Capacitou-se de tal maneira na prática da cirurgia que foi
indicado como cirurgião militar do exército francês, participando das campanhas
da Itália de 1536 a 1545.
A sua primeira grande contribuição para o tratamento dos ferimentos por arma de
fogo ocorreu quando contava 26 anos de idade. Até ao século XVI acreditava-se
que as feridas produzidas por armas de fogo eram envenenadas, conforme ensinava
Vigo, conceituado cirurgião e traumatologista italiano, e que as mesmas deviam
ser cauterizadas com óleo a ferver para combater a acção tóxica da pólvora.
Durante as campanhas de Itália, Paré passava grande parte do seu tempo nos
campos de batalha, junto dos soldados e dos feridos, procurando não só estar
mais próximo dos feridos como ajudar com mais celeridade a sua recuperação.
Numa destas campanhas constatou e descreveu que não só não tinha qualquer uso
como era prejudicial para a evolução e tratamento das feridas por arma de fogo
o uso de óleo a ferver.
"No ano do Senhor de 1536, Francisco, Rei de França, mandou um poderoso
exército para lá dos Alpes. Eu era, no exército real, o cirurgião do Senhor de
Montejan, general de infantaria. Os inimigos tinham tomado os desfiladeiros de
Suza, o castelo de Villane e todos os demais caminhos, de modo que o exército
do rei não era capaz de expulsá-los de suas fortificações senão pela luta.
Houve neste embate, de ambos os lados, muitos soldados com ferimentos
produzidos pelas armas mais diversas, sobretudo por bala. Na verdade, não
estava muito versado, naquela época, em questões de cirurgia, nem estava
acostumado a fazer curativos em ferimentos por arma de fogo. Lera que os
ferimentos por arma de fogo estavam envenenados; portanto, para seu tratamento
era útil queimá-los ou cauterizá-los com óleo fervente misturado com um pouco
de teriaga. Mas ainda que não desse crédito ao remédio, quis, antes de correr o
risco, ver se os outros cirurgiões que estavam comigo na tropa usavam qualquer
outro curativo para esses ferimentos. Observei e verifiquei que todos usavam o
curativo prescrito. Aconteceu que, certa vez, devido à multidão de feridos,
faltou óleo. Então, porque ficassem alguns sem curativo, fui forçado, porque
podia parecer que não queria fazer nada e não podia deixá-los sem tratamento,
aplicar uma mistura feita de gema de ovos, óleo de rosas e terebentina. Durante
aquela noite não pude dormir porque estava com o espírito conturbado e o
curativo da véspera, que eu julgava impróprio, perturbava os meus pensamentos e
temia que no dia seguinte iria encontrá-los mortos ou a ponto de morrer devido
ao veneno da ferida que não tratara com óleo fervente. Portanto, acordei cedo
e, fora de qualquer expectativa, notei que aqueles tratados sem o óleo estavam
descansados, porque livre da violência de dor e suas feridas não estavam
inflamadas nem tumefeitas; entretanto, os outros, queimados pelo óleo fervente,
estavam febris, atormentados com muitas dores e tumefeitas as partes que
cercavam as feridas. Depois de ter experimentado isto muitas vezes em diversos
outros feridos, considerei muito a respeito que nem eu nem ninguém devíamos
cauterizar qualquer ferido por arma de fogo". Transcrição do seu livro
"La methode de traiter les playes faites par hacquebutes et autres
bastons à feu."
A segunda importante contribuição de Paré no campo da cirurgia militar diz
respeito à hemostase dos vasos sanguíneos nas amputações de membros. Até então
a conduta usada para controlo de hemorragia consistia na cauterização com ferro
incandescente, procedimento que, para além do sofrimento e dor que causava,
ocasionava lesões de difícil cicatrização. O próprio Paré utilizou o método
clássico até 1552, quando passou a usar pinças e ligar os vasos com fios, tal
como hoje. Para se defender das críticas contra o novo método, considerado
temerário, Paré citava Hipócrates, Galeno, Avicena e outros autores clássicos
que, nos seus livros, recomendavam ligar as veias em lugar da cauterização com
o ferro incandescente.
Em 1552 Paré tomou parte noutra expedição militar e Henrique II, rei da França,
impressionado com sua habilidade cirúrgica, designou-o cirurgião ordinário do
Rei, facto que lhe trouxe prestígio, acabando dois anos depois por ser admitido
na Confraria de S. Cosme, que congregava os mais notáveis cirurgiões da França,
sendo-lhe concedido o título de Mestre em Cirurgia, apesar da oposição de
alguns membros do colegiado, que não admitiam que alguém que não soubesse latim
pudesse pertencer à Confraria. (Fig._14)
Paré teve uma vida de intensa atividade. Inventou novos instrumentos
cirúrgicos, idealizou membros artificiais e o reimplante de dentes. Em 1564
publicou Dix livres de la Chirurgie e, em 1575, aos 65 anos de idade, reuniu
todos os seus trabalhos sob o título Les Oeuvres de M. Ambroise Paré, avec les
figures et les portraits de l'Anatomie que des instruments de chirurgie
et de plusieurs monstres.
Nas páginas dos seus livros Paré descreve a suas experiências e repete a sua
filosófica afirmação que descreve toda a sua personalidade e brilhantismo:
"Je le pansai, Dieu le guérit"