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EuPTCVHe1646-69182013000100006

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variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN1646-6918
ano2013
Issue0001
Article number00006

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Editorial INVESTIGAÇÃO EM CIRURGIA / RESEARCH IN SURGERY Editorial João Lobo Antunes Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa Presidente do Instituto de Medicina Molecular Correspondência

Pouco depois do início do meu internato em Neurocirurgia no Instituto Neurológico de Nova Iorque em 1972, o meu "Chairman" chamou-me para me dizer que a preparação que eu trazia do Hospital de Santa Maria e do Hospital Júlio de Matos fizera com que estivesse muito avançado em relação aos colegas do meu ano, e que portanto iria passar seis meses num laboratório de investigação. Quando acabei a especialização voltei em "full-time" ao laboratório durante mais dois anos. Desse trabalho nasceu uma tese de doutoramento que pouco tinha que ver com a Neurocirurgia. Intitulava-se "A regulação nervosa da função reprodutora no macaco Rhesus". Quando revejo o que ganhei durante esse tempo no International Institute for the Study of Reproduction, posso concluir que foi decisivo para a minha prática como clínico e contribuiu também para o meu treino cirúrgico, pois eu operava o "rhesus" com o mesmo cuidado como que tratava o "sapiens".

É verdade que o meu conhecimento da clínica iluminava com outra claridade alguns dos aspectos da nossa investigação, mas o que recebi excedeu largamente o que tinha para oferecer. E vale a pena enunciá-lo: - A prática da cirurgia experimental. Operei ratos, cães, ovelhas e macacos e não deixava de me surpreender com a esplêndida homologia anatómica e funcional.

- A aprendizagem do método científico, a procura de uma resposta precisa a uma pergunta claramente formulada. Percebi a necessidade de replicar os resultados, de verificar o rigor da prova e respeitar a integridade na sua comunicação. A investigação tornou-me, naturalmente, mais exigente e também mais céptico. E assim fiquei marcado para toda a vida. É talvez por isso que leio ainda hoje a abundante literatura neurocirúrgica com o olhar severo que me permite distinguir com mais acerto o que é realmente novo, sério e útil.

- O culto da interdisciplinaridade e o diálogo com as outras ciências, o que me foi particularmente útil quando, muitos anos depois, me lancei com a Prof.ª Carmo Fonseca na fundação do Instituto de Medicina Molecular de que tanto me orgulho.

- O treino na publicação científica, na clareza da exposição, na selecção da informação, na pesquisa exaustiva da bibliografia. Muitas horas passei (e que saudades tenho desse tempo) na biblioteca da minha Universidade de Columbia.

Então percebi bem a verdade do aforismo de Drummond Rennie - "science does not exist until it is published". Diga-se, de passagem, que o mundo da comunicação em Cirurgia é vasto e cada vez mais sofisticado e vai desde a comunicação oral (que murcha se não é transformada em artigo científico), à demonstração cirúrgica editada ou transmitida em tempo real - com os riscos que comporta e as questões éticas que suscita -, à videoconferência e à telemedicina. Assim vamos polindo o nosso ego, sempre mais lestos a anunciar triunfos que a confessar desastres.

O panteão dos cirurgiões descobridores ou inventores (e a distinção é mais do que semântica) é notável. Entre os pioneiros, recorde-se John Hunter [1] que além de ter inventado um tratamento cirúrgico para aneurismas da artéria popliteia, decidiu, temerariamente, decifrar o mistério da unicidade das doenças venéreas (eram a sífilis e a gonorreia entidades distintas?) auto- inoculando-se. Hunter inspirou o "Hunterian Laboratory of Experimental Medicine" criado em 1905 no John Hopkins Hospital por Harvey Cushing, pai da minha especialidade, ele mesmo filho dilecto da Cirurgia Geral [2]. Com Kocher Cushing investigara a fisiopatologia da hipertensão intracraniana. Mais tarde descobriu a etiologia da doença que tem o seu nome.

Cirurgiões de curiosidade infrene foram Reynaldo dos Santos e seu filho João Cid dos Santos [3], como fora antes deles Egas Moniz, que não foi cirurgião porque as suas mãos gotosas o não permitiram. Entregou essa missão a Almeida Lima, que foi mais que o executor passivo das ideias do mestre e com ele começou a trabalhar ainda como estudante de medicina. Também João Cid investigou desde o 4.º ano do curso, e aplicou a técnica angiográfica ao estudo das veias e inventou o endarterectomia - que William P. Longmire considerou um dos marcos da ciência cirúrgica contemporânea - destruindo o que chamou "mito da íntimo". Cid era, no entanto, um crítico severo de amores de ocasião e dizia: "Não faz sentido um clínico, porque se ia doutorar, fechar-se uns meses no laboratório, matar meia dúzia de ratinhos para dizer que tinha feito uma investigação".

Provavelmente a viragem intelectual de uma cirurgia puramente técnica, para uma ciência que buscava a compreensão da natureza da resposta biológica que a agressão combinada da doença e do tratamento operatório necessariamente provocam na homeostase que nos equilibra, foi obra de homens como Francis D.

Moore [4] que em 1959 publica o seu "The Metabolic Care of the Surgical Patient". A transição continuou com Joseph Murray e mais tarde Thomas E.

Starzl [5] que, lançados na cirurgia dos transplantes de órgãos, foram pedir socorro a outras ciências para domar a rejeição imunológica.

A verdade porém é que o cirurgião-investigador está hoje tão ameaçado quanto o médico-investigador. As causas são múltiplas mas nenhuma delas inultrapassável.

Em primeiro lugar, o avanço científico em rapidíssima espiral, obriga à constante actualização nas técnicas e a um treino especifico em investigação.

Paralelamente, as tarefas clínicas são cada vez mais absorventes, e a motivação para investigar durante o treino clínico é mais débil, como é igualmente desencorajante o reconhecimento académico desse esforço. Ao contrário do que eu próprio vivi como interno, em que estava bem presente a intenção de me educarem, entre nós valoriza-se quase a prestação clínica e o cumprimento de uma rotina de obrigações, e muito pouco se atende ao carácter essencialmente plástico e individual de qualquer processo formativo.

Resta, no entanto, muito a investigar e a comunicar em Cirurgia. A título de exemplo podemos enumerar: - O relato do caso singular - porque é raro ou porque foi resolvido de forma original.

- A revisão de séries cirúrgicas em análise retrospectiva ou prospectiva. Esta permite ensaios comparativos entre duas técnicas ou entre tratamentos médicos e cirúrgicos. Note-se, no entanto, a escassez de estudos controlados e randomizados que sustentam menos de 10% da nossa actuação terapêutica. As dificuldades são óbvias pela necessidade de ocultação da aleatorização, pela reticência ética quanto à "cirurgia placebo", pelo chamado "efeito do virtuoso", e pela escassez do financiamento. Sublinhe-se ainda que a distinção entre inovação terapêutica e tecnológica e experimentação, nem sempre é nítida, como não o é igualmente, entre a variação técnicaque admite um consentimento informado "normal", um resultado previsível e um risco aceitável, e a inovação cirúrgicaque obriga à aprovação de um protocolo, um consentimento informado adaptado, pois o resultado é mais difícil de prever e o risco por vezes difícil de estimar.

É vasto o cemitério onde se sepultaram intervenções que morreram porque tinham pouco préstimo ou muito risco (ou ambas as características) desde a sangria, a glomectomia para tratar asma, ou como li não sei onde, o shunt ponto-cava profilático. Todas elas, mais as que venceram a prova do tempo, nasceram no cérebro de cirurgiões como nós, por razões tão diversas como a insatisfação, a curiosidade ou a imaginação ou mesmo motivos menos nobres como a ambição ou a procura da fama. Mas provavelmente todos os seus autores tinham em grau maior ou menor aquela faculdade que René Leriche enunciou em fórmula de lapidar simplicidade: "Il faut s'étoner". É que a ciência nasce sempre de uma pergunta, e a nossa prática quotidiana é fonte, inesgotável de interrogações.


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