Os Ambientes e as Espécies
ARTIGO DE OPINIÃO
Os Ambientes e as Espécies*
A. Mega de Andrade
Ex-Chefe de Serviço da Cirurgia I do Hospital de São Teotónio em Viseu.
Correspondência
Agradeço à Direcção da S.P.C. o honroso convite para Presidente de honra do
XXXIII Congresso, promoção esta na qual, sinceramente e sem falsa modéstia,
jamais havia pensado.
Este inesperado convite deve-se seguramente a dois factores: à grande amizade e
consideração que me foram sempre demonstradas pela S.P.C., a cuja direcção já
tive o privilégio de pertencer, sob a presidência do Professor Castro e Sousa
e, sem dúvida também, ao esforço, entusiasmo e lealdade dos meus colaboradores,
cujo progressivo crescimento, dentro e fora do País, me fez subir aqui.
O CRESCIMENTO DAS ESPÉCIES DEPENDE DO AMBIENTE EM QUE VIVEM.
Portanto, a quota de mérito que me tem sido atribuída, refere-se apenas a
alguma capacidade para aproveitar os ambientes que tive a sorte e o privilégio
de frequentar e à grande vontade de os "transferir" para o velho
Hospital de Viseu, dentro das magras possibilidades da altura (Janeiro,1979).
Esta manobra de copy/paste,embora apenas dos ficheiros à época possíveis,
conduziu de forma natural e progressiva, à transformação do ambiente local.
Teve então o Serviço de Cirurgia I a sorte de começarem a entrar Internos da
Especialidade de grande valor que, nesse ambiente já diferente e mais
favorável, puderam crescer rapidamente e cedo começaram a mostrar as
capacidades científicas e humanas que todos lhes reconhecem, tendo 4deles já
sido também membros da Direcção da S.P.C. durante vários mandatos.
Este curto prólogo obriga-me, a tentar recordar e homenagear pessoas e a
descrever ambientes que criaram e formataram a carreira profissional de muitos
cirurgiões. No fundo, é uma resumida história que pretende deixar algumas
mensagens, muito particularmente para os mais jovens.
A partir dos meados do século XX, com o desenvolvimento nas áreas de
Anestesiologia, Farmacologia, investigação científica e tecnológica, a evolução
da cirurgia acelerou e cresceu de tal modo que, hoje em dia, somos obrigados a
ter "super-especialistas" em diferentes áreas da cirurgia geral.
Por estas razões, a S.P.C., sempre atenta ao desenvolvimento da ciência, tem o
mérito de, há muitos anos, ter criado os Capítulos em várias áreas da cirurgia
geral com o objectivo de incentivar cirurgiões a aprofundarem os seus
conhecimentos e experiência nas suas áreas preferidas. Esta decisão fez
aumentar exponencialmente a capacidade científica da Sociedade sem, no entanto,
permitir que a "super-especialização" viesse a colidir com o
conceito do cirurgião geral por razões óbvias.
O NOSSO CONHECIMENTO ASSENTA NOS OMBROS DOS NOSSOS ANTECESSORES
Um lugar comum mas, que deve estar sempre presente nas nossas mentes. Por isso,
passo agora a recordar os meus mestres e ambientes que marcaram directamente a
formação de muitos cirurgiões.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 1963
Prof. Doutor Bártholo do Valle Pereira
Não vou alongar-me na descrição da destreza e elegância da sua técnica
cirúrgica nem da sua cultura geral e clínica de que, pelo menos os de meia
idade, ainda se lembram. Estava rodeado por uma equipa, da qual destaco os
jovens cirurgiões Linhares Furtado e Ornelas Monteiro que, logo de manhã,
começavam a discutir artigos que tinham lido na véspera. Aqui está um exemplo
dum ambiente estimulante e motivante para o estudo continuado. A competência
clínica do Professor Bártholo mostrou-me que a teoria é muito importante mas,
tem que ser completada e até, por vezes, corrigida pela prática.
GUERRA DE ÁFRICA - NORTE DE ANGOLA
Janeiro de1937 a Maio de 1939
Mais uma mensagem para os jovens: aprendam sempre que possam, aproveitem as
oportunidades, não percam tempo, cumpram as regras.
Antes de seguir para Angola, durante alguns meses de espera no Regimento de
Serviço de Saúde de Coimbra, aproveitei para ir trabalhar como voluntário para
o Serviço do Professor Bártholo. Ao ir para Angola, sentia-me com o estatuto de
um rudimento de um interno do 1.º ano de cirurgia. Mesmo assim foi muito útil.
UNIVERSIDADE DE LOURENÇO MARQUES
Maio de 1939 a Abril de 1972
Professor Giesteira de Almeida. Com ele e a sua equipa terminei o Internato de
Cirurgia Geral, enquanto desempenhava as funções de 2.º Assistente das
disciplinas de cirurgia. Era um Director de Serviço impecável. Homem de uma
educação e cultura excepcionais, afável, com plena imparcialidade na formação
dos seus internos que muito com ele aprenderam. Vê-lo operar era como estar a
assistir à arte do Dr. Frank Netter a fazer desenhos de anatomia. Até parecia
que via as células!
O Professor Veiga Simão1, Reitor da U.L.M. durante sete anos, cumpriu um
Programa Estratégico que consistia em promover doutoramentos em boas
Universidades no estrangeiro, para os jovens licenciados selecionados pelos
Directores das diferentes Faculdades.
O Professor Lobato de Guimarães selecionou vários de diferentes especialidades.
Convidou-me algumas vezes mas só aceitei o seu honroso convite quando perdi o
meu mestre, Professor Giesteira, que terminava a sua comissão.
Escolhi o Departamento de Cirurgia da Universidade de Witwatersrand em
Joanesburgo, República da África do Sul, dado o grande prestígio internacional
desse Departamento, associado ao facto de ficar apenas a 300 Km de casa e da
Família.
WITWATERSRAND UNIVERSITY, DEPARTAMENTO DE CIRURGIA
Abril de 1972 a Dezembro de 1978
Director do Departamento: Professor D. J. Du Plessis(1918-1999)
Prestar um merecido e especial tributo ao Professor Du Plessis e aos membros do
seu staffé uma tarefa muito fácil e gratificante. Basta citar alguns extractos
escritos pelos seus pares, personalidades conhecidas na área da cirurgia.
Em 1951, recebeu o "Nuffield Fellowship to Oxford University"2
Aos 40 anos, em 1958 foi nomeado Professor e Chefe do Departamento de Cirurgia
da Witwatersrand University2. Um mestre cirurgião, professor e líder, um homem
com visão, tenacidade, integridade e compaixão.
Um Homem que deixou um indelével e profundo legado académico e cirúrgico.
Era um duro "taskmaster" (capataz mas que, no contexto do Autor que
estou a citar (H. Rode), significa um chefe de trabalhadores, que trabalha,
organiza, vigia e ensina os outros a trabalhar), esperando do seu
"staff" uma dedicação firme e constante mas sempre liderou pela
frente, dando o exemplo.
Sob a sua liderança, o Departamento tornou-se mundialmente conhecido3. Sendo um
grande mestre e excelente administrador, teve a grande antevisão de montar nove
cátedras de disciplinas cirúrgicas, muitas delas pioneiras na África do Sul.
Estabeleceu a investigação clínica e experimental, com fundamentações
científicas sãs em toda a África do Sul. Foi o "pivot" central do
estabelecimento da Reunião Bienal da Associação de Cirurgiões da África do Sul,
da fundação do South African Journal of Surgery e foi um membro fundador e
Presidente da Sociedade de Investigação Cirúrgica da África Austral.3
Recebeu muitos prémios e "Fellowships" , incluindo os do American
College of Surgeons , da Association of Surgeons of Great Britain and Ireland e
da American Surgical Association2.
Em 1978 passou a Vice-Chanceller da Universidade. Foi substituído na chefia do
Departamento pelo Professor J.A. Myburgh.
Johannes Albertus (Bert) Myburgh,4-5 Licenciado na Universidade do Cabo em 1930
com honras de 1.ª classe e Medalha de Ouro para o mais distinto graduado do
ano. Em 1932 foi passar 3 anos no New College em Oxford onde se tornou F.R.C.S.
(Engl.). Em 1937 foi nomeado Professor de Cirurgia na Wits e, mais tarde,
distinguido como Professor Emérito de Cirurgia. Durante 17 anos como Professor
de Cirurgia foi premiado com muitos títulos nacionais e internacionais. Foi
Professor convidado em 21 Universidades diferentes. Foi Presidente de várias
Sociedades, das quais destaco as de Investigação Cirúrgica e da Sociedade de
Transplantação da África Austral. Em toda a sua carreira a investigação foi a
sua maior paixão. A sua maior contribuição a nível internacional foi na área da
transplantação renal e hepática.
Bert foi sem dúvida um ícone e será recordado nas comunidades nacional e
internacional de transplantação como um proeminente cirurgião clínico, um
professor e um investigador respeitado e, acima de tudo, pelo seu
extraordinário intelecto.
Director do Serviço de Cirurgia no J. G. Strydom Hospital e supervisor da minha
investigação
Professor Carl Johannes Mieny6 - trabalhou muitos anos em diferentes
hospitais de Londres, terminando como F.R.C.S. (Engl.) e Edimburgh. Em 1933
atingiu o grau de Professor. Nesse mesmo ano partiu para Lexington, Kentucky
(U.S.A.) para realizar uma investigação sobre perfusão hepática, sob a
orientação do Professor Ben Eiseman com quem teve a sorte de partilhar o
primeiro transplante hepático com sucesso executado pelo Professor Thomas
Starzl em Denver, Colorado. No retorno ao seu País foi nomeado Professor de
Cirurgia da Wits e Cirurgião Principal do J.G. Strydom Hospital. Era um
excelente cirurgião em todas as áreas da cirurgia geral mas com uma grande
paixão pela cirurgia vascular. Daí me nasceu o "vício". Orientou a
minha tese com muita exigência mas com compreensão, amizade e carinho. Entendeu
que devia apresentar vários aspectos e resultados do meu trabalho em vários
Congressos Internacionais para os quais foi convidado, como por exemplo, no
Congresso da Sociedade Europeia de Investigação Cirúrgica em Dublin (1976) e no
Congresso Americano sobre Hiperlipidémia Familiar, em Washington (1977). Em
Abril de 1978 foi "pressionado" para ir chefiar o Departamento de
Cirurgia da Universidade de Pretória que atravessava momentos difíceis. Com a
sua capacidade de administração e o poder que o seu enorme prestígio lhe
conferia, em pouco tempo tudo resolveu. Sucedeu aos Professores Du Plessis e
Bert Myburgh na presidências das mesmas Sociedades. Entre as numerosas
publicações destaco um livro para estudantes "General Surgery" e,
em 1989, o livro "Principles of Surgical Patients Care" destinado
aos Internos da Especialidade em todas as áreas ou divisões da cirurgia.
Terminada a resumida homenagem aos mestres que formataram a minha experiência e
personalidade humana e profissional, vou descrever com o máximo de brevidade a
constituição e o funcionamento do Departamento.
Menciono apenas os Serviços de Cirurgia Geral dos Hospitais Escolares:
Johannesburgh, Coronation, J. G. Strijdom, Non-European e o Baragwanath
Hospital. Mais de 750 camas de cirurgia. O Baragwanath tinha cerca de 3000
camas, sendo 500 de cirurgia divididas por 5 Serviços. Este hospital, era um
dos mais úteis e prestigiados do grupo hospitalar da Universidade. Era um ponto
de passagem obrigatório para todos os candidatos às diferentes especialidades,
médicas e cirúrgicas, dadas as suas características reconhecidas
internacionalmente. Dava assistência a mais de um milhão de africanos, sendo a
sua actividade dominada pela urgência e emergência, na maioria dos casos de
causa traumática. Com regras de internamento muito específicas e restritas, a
média de internamentos de urgência em cirurgia era de 30 doentes por dia. Para
além do trabalho clínico tínhamos que dar aulas teórico-práticas aos alunos de
Medicina do 4.º Ano. Tive medo mas correu bem.
O trabalho neste hospital concedia a todos os jovens aprendizes três enormes
vantagens: avaliação rápida da situação clínica, aquisição de experiência em
cirurgia de urgência e o desenvolvimento do espírito de operar com rapidez e
eficácia, porque era frequente telefonarem para o Bloco Operatório dizendo que
estava a caminho mais uma situação grave. O Baragwanath também servia de
"filtro", para eliminar do restante percurso, todos os que não
demonstrassem capacidades físicas e técnicas bem como a impulsão interior para
enfrentar a carreira de cirurgião.
Ultrapassado este impiedoso "filtro", o Professor Du Plessis
entendeu ser altura de iniciar a investigação. Tirou-me do Baragwanath e
passou-me para a Faculdade. Não tinha horário mas sim objectivos. O tempo era
passado nos diferentes laboratórios e no curso pós-graduado. O Dr. Thomas
Starzl, na reunião da Sociedade de Investigação Cirúrgica em Cape Town, relatou
preliminarmente um caso clínico para o qual não tinha explicação. Tratava-se de
uma criança de 12 anos com hipercolesterolémia familiar que vinha a ter
enfartes do miocárdio desde os 7 anos. Dado o agravamento da situação e em
desespero de causa, fez-lhe uma anastomose porto-cava e os níveis de colesterol
baixaram de modo notável. Este seria o meu tema de investigação: "Os
efeitos da anastomose porto-cava no metabolismo hepático do colesterol".
7-11
PROGRAMA DE ENSINO PÓS-GRADUADO SEMANAL
2.ª feira - 17:15 - Journal Club(dois especialistas em
áreas diferentes da cirurgia), moderado pelo Professor Myburgh.
3.ª feira - 17:15 - Surgical Forum- consistia numa
palestra por um Professor estrangeiro.
4.ª feira - 17:00 - Tutorial- uma lição aprofundada
por um Professor da Faculdade de Medicina
5.ª feira - 17:00 - Research Forum- Reunião
restrita ao grupo de investigadores. Objectivos: apreciação de
projectos e apresentação regular da sua evolução.
6.ª feira - 17:00 - Seminário:prelecção de um Professor
com um moderador e um comentador. Na discussão entravam sempre os
Internos, o que os obrigava a estudar previamente o tema anunciado.
Sábado:
08:15 - Reunião das especialidades cirúrgicas
09:15 - Discussão de um caso clínico de cirurgia
geral
Presididas pelo Chefe de Departamento, Professor Du Plessis. Aproveito o
prestígio e a tradição destas reuniões de sábado para prestar a minha última
homenagem a este gigante da cirurgia, do ensino e da liderança, citando de novo
o Professor Henry Rode3: "A sua imponente estatura e a aura de excelência
cativaram as nossas jovens mentes e ele tornou-se um ícone cirúrgico para nós
durante os nossos anos de formação. Ele lançou as sementes e regou os campos
para a investigação científica para todos os que tiveram o privilégio de
trabalhar à sua sombra. As reuniões de sábado formavam uma plataforma para um
ensino excelente. Os Internos faziam grandes esforços para estarem presentes.
Viajámos grandes distâncias mas regressávamos inspirados pelo que tínhamos
aprendido. Na verdade ele acendeu em nós um grande fogo para nos tornarmos como
ele."
MEIOS DE SUPORTE PARA A PRÁTICA CLÍNICA
Meios de diagnóstico
Para além dos habituais laboratórios, dispúnhamos de um Serviço de Imagiologia
onde se processavam angiografias de grande qualidade, estudos bilio-
pancreáticos (colangio-pancreatografia retrógrada endoscópica) e ecografia. A
endoscopia digestiva alta era feita pelos cirurgiões. Estamos a falar do meio
da década de 70. Para outros meios de diagnóstico como a TAC, manometria e pH
esofágicos, estudos de manometria rectal e dosagens hormonais, por exemplo,
recorria-se ao Hospital Central de Joanesburgo, ao laboratório da Faculdade de
Medicina e ao Instituto Sul-Africano de Investigação Médica.
Tratamentos especiais para os doentes de todos os hospitais:
Radioterapia no Hospital de Joanesburgo. A quimioterapia era orientada numa
unidade central especializada que emitia os protocolos de tratamento e recolhia
os resultados.
A concentração dos serviços especiais de diagnóstico e terapêutica tinha como
objectivo não multiplicar recursos. Eram, portanto, multi-raciais.
Meios de suporte para investigação
- Quinta para alojamento e criação de animais de experiência sob a
supervisão de médicos veterinários
Na Faculdade de Medicina existia um verdadeiro hospital para investigação em
animais de experiência, com todos os sectores, equipamentos e laboratórios que
existiam para a medicina humana, incluindo o terminal do computador da
Universidade
Todos os investigadores tinham acesso livre a estas instalações, mediante
prévio estabelecimento de horários.
O acesso era também livre aos laboratórios de ciências básicas da Faculdade de
Medicina e do South African Institute For Medical Research.
Os recursos para o ensino pós-graduado e para a investigação, eram reforçados
pela quase contínua presença de Professores convidados. Vou rapidamente citar
apenas aqueles com quem tive o privilégio de discutir diferentes fases da minha
investigação:
1973
Seymour Shwartz da Rochester University, NY
Lloyd Nyhus, Universidade de Chicago, Ill. Presidente do American Board of
Surgeons e várias Sociedades Internacionais. Autor e co-autor de mais de 100
livros. Destaques para: Maestria da Cirurgia e Hérnia.
1974
Stig Bengmark, Lund, Suécia, escreveu mais de 1000 artigos e muitos capítulos
de livros.
Lloyd MacLean, Royal Victoria Hospital, Montreal, Can.
William Longmire, Universidade de LA, California, Presidente do American
College of Surgeons,
H.L. Duthie, Departamento de Cirurgia da Royal Infarmary, Shefield, Engl
1975
Theodore Drapanas, Tulane, New Orleans (Faleceu em desastre aéreo) Grande
especialista em Hipertensão Portal
René Menguy, Rochester, NY
1976
Boeckle, Salzburg, Áustria
"Nicky" Kock, Suécia (válvula em colostomia - "Koch
pouch")
Goulematis, Atenas
Oliver Beahrs, Mayo Clinic, Presidente do AmericanCollege of Surgeons -
(Atlas deTécnicas Cirúrgicas)
Leslie Blumgart , Glasgow U.K.. (hepato-biliar e pancreática)
Robert Shields, Liverpool (Chefe do Departamento)
John Ludbrook, Adelaide, Austrália - Royal Melbourne Hospital
(estatística em ciências biológicas)
1976/77
Ivan Johnston, Royal Victoria Infarmary (Newcastle Upon Tyne, Deu um grande
contributo internacional à cirurgia endócrina
1977
Sir Rodney Smith (Lord Smith of Marlow), St. Georges' Hospital,
Londres- Reputação mundial em cirurgia hepato-bilio-pancreática.
1978
Maurice Mercadier, Professor da Universidade de Paris e Cirurgião Principal do
Hospital de la Pitié.
Antes de chegar a Viseu, impõem-se recordar num breve resumo, os factores que
geravam os ambientes em que os médicos evoluíam na África do Sul: a excelência
dos Chefes dos Departamentos, organização do trabalho, a dedicação exigida, a
motivação inculcada nas pessoas para atingirem, pelo menos, a qualidade dos
seus superiores, a solidariedade, a ética, a lealdade e a seriedade
profissionais, eram factores determinantes para a formação da personalidade. A
existência do programa semanal de ensino pós graduado, a presença continuada de
Professores visitantes de alto prestígio internacional, as reuniões inter-
hospitalares muito regulares, as inter-universitárias anuais, e as
internacionais, nomeadamente as das várias Associações de investigação em
Cirurgia, providenciavam meios notáveis para a progressão do conhecimento. Por
fim, a existência de meios de diagnóstico e tratamento e investigação
experimental, de equipamentos iguais aos existentes nas melhores Universidades
da Europa e da América, permitiam que nos mantivéssemos sempre actualizados
VISEU, JANEIRO DE 1979
Pequena cidade do interior centro-norte, bloqueada por cadeias de montanhas e
isolada por falta de meios de comunicação adequados. Tudo na cidade, incluindo
o Hospital, reflectia bem essa situação de isolamento, como, aliás, sucedia em
muitos outros hospitais distritais, quer fossem do interior quer tivessem vista
para o mar. O problema não estava apenas nas montanhas...
Quem teve a paciência de ouvir a descrição dos ambientes de Moçambique e da
África do Sul, poderá pensar que me senti frustrado com as condições tão
básicas de que iria dispor e que a minha adaptação se antevia difícil. Pelo
contrário, foi muito fácil, graças à gentileza, carinho e enorme colaboração
que obtive de todos os colegas e restante pessoal deste Hospital. Neste bom
ambiente humano, o meu objectivo foi o de, aos 39 anos, aceitar o grande
desafio e começar a fazer a tal transferência dos ficheiros que trazia, como
disse no início. Gradualmente foi-se conseguindo melhorar o ambiente
científico, com a aquisição de tecnologias de diagnóstico e tratamento, com a
modificação do espírito de trabalho, a motivação dos Colegas de outras
especialidades (laboratórios e imagiologia), o estabelecimento das visitas
gerais, a instituição da reunião "Revista das Revistas" (Journal
Club), das reuniões de sábado, de reuniões inter-hospitalares regionais e com
Colegas de hospitais centrais que graciosamente colaboravam e, para não me
alongar, com o estabelecimento do interesse pela investigação clínica e
apresentações de trabalhos. Vivia-se no binómio "Aprender-Ensinar"
em todos os escalões do Serviço. No que respeita à evolução das técnicas
cirúrgicas, nomeadamente cirurgia vascular, grande cirurgia geral e tratamento
de doentes de risco, só foi possível, graças à preciosa e indispensável
colaboração de uma Anestesiologista de alto nível, com treino muito especial em
cuidados intensivos, cirurgia geral, vascular, cardio-torácica, pediátrica e
outras, obtido nos hospitais escolares da Universidade de Joanesburgo durante o
tempo que eu lá estive. Coincidência? Não. Casamento. Refiro-me à Senhora Drª
Maria Armanda que criou em Viseu uma verdadeira Escola de Anestesiologia que
permite aos cirurgiões actuais prosseguir com confiança e segurança a sua
evolução.
Para terminar, devo fervorosos agradecimentos a todos os Serviços e Hospitais
que têm organizado Cursos, Congressos, Jornadas, Reuniões Internacionais de
várias áreas da cirurgia. Essas reuniões resultam de uma grande motivação dos
cirurgiões portugueses que, apesar do pesado e desinteressado trabalho,
continuam a apostar na formação. A Sociedade Portuguesa de Cirurgia, com enorme
prestígio internacional, é o grande exemplo de uma organização que se dá ao
trabalho duro derealizar vários eventos de formação com elevadíssimo nível
educativo, dando aos mais novos a oportunidade de mostrarem os seus trabalhos e
de receberem as críticas construtivas, comentários e conselhos dos mais
experientes.
Peço desculpa por não ter conseguido contrariar o Barão de la Brede et de
Montesquieu quando dizia:" Os oradores dão-nos em comprimento aquilo que
lhes falta em profundidade.
Tenho dito.
Lisboa, 4 de Março de 2013