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EuPTCVHe1646-69182013000200009

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variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN1646-6918
ano2013
Issue0002
Article number00009

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Carta ao Editor Carta ao Editor António Coutinho Investigador. Presidente do Conselho Nacional de Ciências e Tecnologia

Ao longo das últimas décadas, o acumular vertiginoso de conhecimentos na ciência biológica e na sua "extensão biomédica", trouxe a Medicina moderna a um novo período histórico. Desvendámos o "segredo da vida" e enterrámos o vitalismo, compreendemos como aqui chegámos ao longo de uns 3,5 mil milhões de anos, pelo acaso da variação e pela selecção evolutiva a partir de formas mais "simples" de vida. Conhecemos a fisiologia das nossas células e o desenvolvimento dos órgãos e sistemas, e ainda os mecanismos pelos quais o genoma determina tudo isto com, finalmente, poucos genes. Começamos a descobrir as variações alélicas de tais genes na população, que tornam cada indivíduo mais ou menos susceptível a influências ambientais que podem provocar disfunção e doença. E estamos cada dia mais próximos de inventar terapias racionais e curativas para uma grande variedade de patologias. Desde logo, usamos "racionalmente" anticorpos, receptores e ligandos de sinalização celular, obtidos por engenharia genética, no arsenal terapêutico corrente, e todos os meses aparecem mais possibilidades.

E também usamos terapias génicas e celulares numa enorme variedade de doenças hereditárias monogénicas. Muitos preparam bancos de células diferenciadas "à medida", a partir de "stem cells" obtidas por "indução génica" de células somáticas do adulto, destinadas à substituição de tecidos ou órgãos. Em resumo, como todas as outras tecnologias, que são hoje de base exclusivamente científica, a Medicina actual é "science-based". Está assim ultrapassado o breve período da chamada "evidence-based medicine", simples codificação de empiricismo colectivo, defensora de tal empiricismo antes da compreensão, pouco interessada nas bases genéticas, moleculares, celulares e sistémicas dos mecanismos de fisiologia e de doença. Se ao longo de quase um século receitámos aspirina sem saber como funcionava, apesar de conhecer todas as indicações e contraindicações, esta posição deixou de ser aceitável.

Aos avanços no conhecimento, juntou-se, de maneira inseparável, o progresso nas tecnologias, que nos permitem hoje "vêr" órgãos, células, mesmo moléculas, dentro de cada paciente, medir "biomarcadores" diagnósticos e prognósticos no sangue, analisar genes e variações alélicas associadas a doenças hereditárias ou a riscos aumentados de variadas patologias, mas ainda avanços tecnológicos nas terapêuticas, nomeadamente em cirurgia, em novos materiais, em radioterapia e na formulação dos medicamentos.

Assim, a cirurgia não pode ficar indiferente a esta "vaga de fundo" da Medicina moderna. Como toda a investigação médica, que deve ser, parece-me, "from the bed-side to the bench", as perguntas relevantes a serem investigadas devem ser aquelas às quais o clínico se confronta na sua prática.

Ou seja, a investigação clínica ou mesmo a de "translacção" é uma actividade normal e natural de qualquer médico, desde que pretenda melhorar a sua prática e o que pode fazer pelos seus doentes. Algumas perguntas não têm sequer de chegar à "bench" e podem ser resolvidas por comparação entre métodos alternativos ou pelo melhoramento dos existentes, sem por isso deixar de ser boa investigação clínica. Outras perguntas exigirão experimentação em modelos animais e muito laboratório, mas felizmente que os nossos hospitais estão hoje associados a centros de investigação biomédica de qualidade, onde tal se pode fazer. Outras ainda necessitarão de análises detalhadas de séries de casos comparáveis, à luz de novas propostas de diagnóstico ou terapêutica ou, simplesmente, no teste de novas hipóteses etiológicas. Este tipo de investigação clínica requer, naturalmente, o acesso a bases de dados com toda a informação relevante, em números de casos que não se compadecem com a experiência individual e exigem a contribuição de todos os centros no país, se não na Europa. Pode dizer-se com segurança que, enquanto tais bases de dados não estiveram disponíveis a todos os que pertinentemente as queiram utilizar, não é possível fazer boa investigação clínica em Portugal.

Esta é uma obra colectiva de extrema urgência, cujos frutos ficarão também à disposição de todos. Se muitos colegas hesitam antes de se lançarem em experiências complicadas no laboratório; se todos tivemos de esperar décadas até que centros de investigação biomédica fossem construidos e apetrechados, a construção de bases de dados de cada patologia depende quase de nós médicos.

Se não as temos disponíveis, se não podemos fazer investigação clínica quanto queríamos, a culpa é, portanto, quase nossa.

Lisboa, Maio de 2013.


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