Dos marcadores em cirurgia geral
Comecemos pelo princípio, e o princípio é a definição global de marcadores em
medicina: são substâncias ou situações no organismo, relacionadas com uma
determinada entidade nosológica e que chamam a atenção para ela ou ajudam ao
seu diagnóstico e avaliação.
Múltiplas situações clínicas e sinais e sintomas se configuram como marcador,
levando ao diagnóstico de algumas patologias ou levantando a hipótese da sua
existência, quiçá ainda assintomática. Daí a importância do seu conhecimento
enquanto tal, sobretudo quando enquadrados num doente pertencente a um grupo de
risco reconhecido para as ditas patologias. Como exemplo elucidativo do que se
fala, vejamos o índice de pressão tornozelo/braço (IPTB).
Este índice, ou simplesmente ITB (índice tornozelo/braço), estabelece a relação
entre a pressão distal nos membros inferiores e a pressão radial nos membros
superiores (esta como indicador da pressão arterial sistémica normal do
indivíduo), medidas com recurso a um aparelho de doppler e uma braçadeira
pneumática. Respeitando as particularidades dessa medição, considera-se que o
seu valor deve ser 1 ou um pouco mais, ou apenas ligeiramente inferior (0,97 é
o limite habitualmente usado). Um índice num membro inferior abaixo do limite
significa que o doente tem isquémia desse membro e é, pois, sinal de isquémia
dos membros inferiores. Mas, ao mesmo tempo, é um marcador de doença
aterosclerótica.
A aterosclerose é uma doença degenerativa das artérias, com maior incidência
nalguns segmentos da rede arterial, sobretudo aorta distal e artérias dos
membros inferiores, coronárias, circulação cervicocraniana (vertebrocarotídea),
e também, menos, artérias mesentéricas e renais. A existência de lesões num
segmento é marcador da possível existência de lesões da mesma doença noutros
pontos, sejam estenosantes sejam aneurismáticas. Por isso este índice deve ser
entendido como marcador de doença aterosclerótica.
Os doentes com queixas de isquémia crónica dos membros inferiores têm uma
primeira confirmação pelo ITB, mas este é também importante para fazer esse
diagnóstico quando a isquémia ainda não aflige o paciente, por exemplo por não
caminhar a distância suficiente para se manifestar claudicação intermitente,
num estádio II de Leriche-Fontaine. Este índice deve, pois, ser medido por
rotina mesmo na ausência de queixas isquémicas, em doentes do grupo de risco da
aterosclerose: idosos, diabéticos, obesos, sedentários, fumadores, hipertensos,
dislipidémicos, do sexo masculino. Se um neste universo de indivíduos, e que
não apresente sinais ou sintomas de tal patologia, necessitar de ser operado,
está indicado pesquisar-se nele a existência deste marcador aterosclerótico.
Que, além de marcar a presença da doença, tem uma boa relação com a sua
extensão e é, também, um factor preditivo independente de mortalidade
cardiovascular: o risco é tanto maior quanto menor for o seu valor.
A medição deste índice é, assim, um acto médico que deve estar sempre presente
na nossa mente, fácil, rápido, barato, anódino, e que pode concorrer de modo
muito importante para se tomarem medidas que ajudem o doente a suportar a nossa
intervenção cirúrgica nas melhores condições de segurança.
Outro exemplo importante a referir é a trombose venosa, como marcador da
possível existência de um tumor maligno, e como orientação, embora ténue, da
sua localização, e até do seu prognóstico. Desde Armand Trousseau, em 1865, que
as tromboflebites superficiais migratórias idiopáticas são reconhecidas como
marcador de cancro visceral (sobretudo gástrico ou pancreático). E hoje em dia
está bem estabelecida a ligação entre cancro e trombose venosa profunda (TVP),
ou antes, tromboembolismo venoso (TEV), isto é, TVP e tromboembolia pulmonar.
Calcula-se que doentes com TEV idiopático têm 10% de risco de lhes vir a ser
diagnosticado um tumor maligno nos dois anos seguintes. Estes factos traduzem,
ao fim e ao cabo, o actualmente conhecido efeito trombótico de alguns cancros,
como síndroma paraneoplásico ou integrando mesmo a sua fisiopatologia.
Há um aumento consistente de frequência de episódios tromboembólicos venosos (e
até na árvore arterial, em casos de comunicação interauricular) no decurso de
tumores malignos sólidos, sobretudo do pâncreas, estômago, esófago, cólon e
recto, bexiga, ovário e pulmão. Para além de factores protrombóticos
inespecíficos vários (imobilização no leito, caquexia, compressões venosas,
etc.), nestes casos a doença oncológica estimula a coagulação e inibe a
fibrinólise por mecanismos biológicos tumor-dependentes cada vez melhor
conhecidos.
De modo que a ocorrência de TEV idiopático (e ainda mais se repetido) pode ser
entendido como um possível marcador de tumor maligno. E, por outro lado, a
presença do tumor é um marcador duma tendência tromboembólica que deve ser tida
em conta, manifestando-se por tromboses venosas profundas e/ou embolias
pulmonares, clinicamente aparentes ou não (incidentais ou assintomáticas). Esta
tendência, no doente oncológico, pode ser objectivada por vários biomarcadores,
alguns em investigação ainda mas outros já com aplicação clínica, como d-
dímeros aumentados, trombocitose, leucocitose e baixa de hemoglobina.
Um outro aspecto da relação cancro-TEV é o de as alterações da coagulação
associadas à doença oncológica contribuírem para o agravamento da doença
localmente, e eventualmente para a sua metastização a distância, sobretudo se
traduzidas por episódios de TEV. Admite-se, até, que possam contribuir
directamente para reduzir o efeito da quimio e da radioterapia. Assim sendo, a
ocorrência de um episódio de TEV no curso de um dos cancros acima listados é um
marcador de pior prognóstico na sua evolução, o que não se deve ignorar nem
esquecer. A juntar a este efeito negativo, diga-se que o tromboembolismo venoso
é, nesses doentes, a segunda causa de morte a seguir ao próprio cancro.
Como corolário de tudo isto, no momento actual há já indicação para que os
doentes com um dos tumores malignos atrás indicados sejam sujeitos a
tromboprofilaxia logo desde o momento do diagnóstico, e não apenas na altura da
cirurgia, e por maioria de razão se os biomarcadores tromboembólicos referidos
estiverem presentes. Essa profilaxia - eficaz mesmo na presença da
disposição trombótica tumoral - deve ser levada a cabo com heparina de
baixo peso molecular (os anticoagulantes orais também parece serem eficazes mas
têm problemas vários que dificultam o seu uso), e maioritariamente em
ambulatório, quer antes do seu internamento para tratamento quer depois,
sabendo-se que o maior número de tromboembolismos venosos nestes doentes ocorre
depois da alta hospitalar. Existe a esperança de que os novos anticoagulantes
orais (NOAC) possam vir a ser usados nestas circunstâncias, com comodidade e
segurança. Resta ainda em aberto o estabelecimento da duração da profilaxia nos
casos de bom resultado oncológico com aparente cura.
Para finalizar, sendo um TEV idiopático marcador potencial de tumor maligno,
vale a pena pesquisar por rotina a sua existência, quando clinicamente
insuspeito? Parece que não, porque muitas vezes o tromboembolismo parece
preceder de muito tempo a possibilidade de diagnóstico do cancro com que está
eventualmente relacionado, e porque a sua incidência não é tão elevada que deva
ser origem de rastreio sistemático. O que com certeza vale a pena é manter um
elevado índice de suspeição para cancro nesses pacientes, pelo menos nos dois
anos que se seguem ao tromboembolismo venoso. Já no síndroma de Trousseau, como
marcador tumoral, parece se de aconselhar que se procure identificar um dos
cancros digestivos mais vezes com ele relacionados.
Quanto aos marcadores biológicos, ou biomarcadores, são substâncias, de
natureza bioquímica ou biomolecular, cuja presença, ou concentração, no
organismo tem relação com uma situação patológica específica, podendo servir
para o seu diagnóstico ou avaliação e dar informações quanto ao seu
prognóstico. Múltiplos e em variadas patologias são os correntemente
utilizados, muitos em patologia oncológica. Em sentido estrito, os
biomarcadores tumorais são substâncias produzidas e libertadas pelas células
neoplásicas ou pelo organismo em resposta ao cancro, podendo ser detectadas e
doseadas no próprio tecido tumoral, ou no sangue ou em outros líquidos
biológicos (urina, liquor, derrame pleural, derrame peritoneal, conteúdos
quísticos, etc.). Para a sua identificação utilizam-se técnicas de imuno-cito
ou histo-química.
Atendendo à sua natureza, os marcadores biológicos tumorais podem agrupar-se do
seguinte modo, com alguns exemplos mais usados de cada grupo: 1 -
Antigénios tumorais - anticorpos monoclonais (CA 19-9, CA 72-4, CA 125,
CA 15-3); 2 - Antigénios oncofetais - que existem na vida fetal mas
desaparecem depois, total ou parcialmente (AFP (α-fetoproteína), CEA); 3
- Hormonas - de produção habitual do epitélio sede do tumor, ou
como produção anómala (calcitonina, tireoglobulina); 4 - Enzimas -
resultantes da actividade enzimática intensa e alterada do tecido sede do tumor
(PSA); 5 - Outros produtos da actividade metabólica das células tumorais
(proteína de Bence-Jones); 6 - Biomoleculares e genéticos - genes
supressores tumorais (BRCA1, BRCA2, p53), oncogenes (K-ras, BRAF, PCA3), genes
de correcção de erros na reparação ou duplicação do DNA.
Os biomarcadores tumorais pretender-se-ia que: levassem ao diagnóstico precoce,
e ao rastreio, de tumores, e respectivo tipo; definissem o órgão, ou tecido, de
origem do tumor; fossem muito sensíveis - sem falsos negativos - e
muito específicos - sem falsos positivos; dessem informação sobre as
dimensões da massa tumoral e o grau de invasão do tumor (estadiamento);
orientassem o tratamento e avaliassem o seu efeito imediato; permitissem
reconhecer precocemente as recidivas e as metástases; tudo isto obtido por meio
duma análise ao sangue ou outro líquido biológico, barata, rápida e fácil de
fazer. Pois estas seriam as características de um marcador ideal mas,
infelizmente, no momento actual estão muito longe de ser alcançadas por
qualquer um dos existentes. Portanto é crucial que tenhamos a noção disso, e do
que podemos esperar, adequando à realidade o uso que fizermos destes
marcadores.
A sensibilidade é variável e nenhum é totalmente específico, de modo que é
completamente errado usá-los como meio de despiste tumoral. Mesmo o PSA, que
durante muito tempo foi largamente utilizado com esse fim no cancro da
próstata: depois de se constatar que a grande maioria dos doentes com valores
elevados não têm cancro e alguns têm-no com valores do marcador dentro da
normalidade, e que nalguns casos há uma sensibilidade exagerada que leva a
tratarem-se doentes sem necessidade com as consequências negativas respectivas,
houve uma limitação no seu uso como rastreio biológico, devendo agora ser feito
em concordância com a clínica e o grau de risco tumoral, atribuindo-se
recrudescida importância ao exame clínico com o mesmo fim. A calcitonina é
muito sensível no carcinoma medular da tiróide e, por isso, não sendo
totalmente específica, até é às vezes sugerida como rastreio, mas o que não se
justifica dada a pouca prevalência desses tumores.
Face a quadros clínicos sugestivos, o CA125, o PCA3 e a calcitonina podem
contribuir para o diagnóstico, e o BRAF promete na atribuição de malignidade a
nódulos tiroideus suspeitos estudados por punção com agulha fina. Mas,
globalmente, é errado pretender utilizar os biomarcadores como um meio para se
chegar a um diagnóstico de tumor, e à sua origem, ou mesmo orientar um estudo
nesse sentido, apesar de muitas vezes nos poderem dar uma impressão, irrealista
porque possivelmente falsa, de confirmação de diagnóstico. Consequentemente,
não é aceitável basear um diagnóstico apenas neles.
No que respeita aos outros objectivos pretendidos para um marcador biológico
tumoral (grau de invasão, volume da massa tumoral, presença ou ausência de
metástases, orientação e avaliação do tratamento, reconhecimento precoce de
recidivas e metástases), eles variam muito de uns para outros, e há, por isso,
que conhecer cada um muito bem, com todas as suas particularidades, vantagens
e, acima de tudo, insuficiências, e tirar partido prático desse conhecimento.
Ressalvando algumas características individuais, sobretudo no que respeita a
volume de tumor, prognóstico, orientação de tratamento e previsão do seu
resultado, o que os biomarcadores tumorais consistentemente nos dão é
informação sobre o resultado imediato do tratamento (nomeadamente a adequação
da nossa ressecção cirúrgica, ou de outra terapêutica instituída), e o
conhecimento precoce da ocorrência de recidiva ou de metastização tardia, no
seu "follow-up". Devem ser utilizados como referência para o futuro
e, por isso, logo após o diagnóstico de um tumor, e acompanhando o seu
estadiamento, é absolutamente mandatório fazer a avaliação quantitativa dos
biomarcadores com ele habitualmente relacionados, antes de qualquer tratamento.