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EuPTCVHe1646-69182013000300007

EuPTCVHe1646-69182013000300007

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN1646-6918
ano2013
Issue0003
Article number00007

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Reflexões de um Cirurgião Semi-Retirado: Um dos Editores Eméritos tece considerações sobre as vivências tidas durante a sua vida profissional

É A MEDICINA AINDA UMA BOA PROFISSÃO? Um artigo recentemente publicado no Boletim do American College of Surgeons, relata que 90% dos médicos que participaram num estudo organizado pela "The Doctor's Company" não recomendariam a área dos cuidados de saúde como uma profissão a escolher. Creio que entre nós haverá uma percepção semelhante, se bem que também acredite que deverá ser muito diferente da que existia quando entrei para a Universidade, altura em que havia grande interesse em escolher e prosseguir esta profissão.

Mas, na verdade, a pergunta que se põe é: Será que a Medicina ainda é uma "boa" profissão? Parece-me que a questão é pertinente e terá sofrido variações no decorrer destes tempos, desde que iniciei a actividade profissional.

As agressões a que a profissão e os profissionais estiveram sujeitos, as mudanças de paradigmas, as profundas alterações das estruturas sociais e económicas, a proliferação de informações, não filtradas nem validadas, feitas em todos os canais de informação foram criando, progressivamente, mudanças na percepção da população, em geral, quanto ao que é a actividade médica; algumas - talvez a maior parte - injustas e mal direccionadas, mas outras correctas e fruto da própria actuação das estruturas e dos profissionais.

Será que foi uma era especial aquela em que comecei e a que me estou a referir? Quando a Medicina ainda era "uma boa e recomendada profissão"? Houve, de facto, muito de bom durante aqueles tempos, mas outras eras e outras gerações também viveram algo de semelhante e será estultícia e demasiado orgulho crer que "aquela sim - a "minha" - foi especial"! Os actuais cirurgiões no activo também irão, seguramente, mais tarde, achar que trabalharam numa "era especial", e o mesmo devem achar as gerações que precederam.

A tudo isto acresce a grande alteração, científica e tecnológica, comprovativa, cada vez mais, da obrigatoriedade da manutenção de conhecimentos permanentemente actualizados, sobretudo tendo em consideração de que todo o conhecimento de um médico profissionalmente activo se renova totalmente cada 5 a 10 anos.

Houve de facto alterações importantes nos paradigmas médico-cirúrgicos no decorrer destes anos; mas será isso suficiente para alterar tão profundas percepções? O que podemos dizer é que existe a sensação de que se deram, nas últimas décadas, passos muito importantes para a evolução dos conhecimentos e da actuação cirúrgica em geral. Alguns deles mudando por completo perspectivas tidas por definitivas e antecipando mesmo algum afastamento da utilização de técnicas cirúrgicas em determinadas situações. Não a "agressão mínima" impera, por vezes com exageros mal controlados, como algumas abordagens que eram previamente cirúrgicas têm sido abandonados por força da introdução de outras alternativas, muitas vezes apenas medicamentosas ou usando muitas outras técnicas, algumas, até pouco, do campo de outras Especialidades; também aqui os limites e as fronteiras que se tinham traçado, e eram perceptíveis como fixas e limitativas, se estão a esboroar.

Mesmo considerando que continua a haver uma certa procura do Curso de Medicina pela parte de jovens Universitários que se iniciam nos estudos superiores, com os problemas e constrangimentos que sabemos existir, a Cirurgia Geral, em particular, mas não , está longe de - mais tarde nas suas carreiras - ser uma Especialidade atractiva, pelo menos para os que mais se destacam. Isto, considerando que, nestes últimos tempos, por via de projectos de educação em que estou envolvido, ter encontrado jovens entusiasmados com a Especialidade e, mais importante ainda, parecendo muito bem preparados.

O IMPACTO DA TECNOLOGIA NA CIRURGIA DE HOJE EM DIA. A ESPECIALIZAÇÃO E A "DEPARTAMENTAÇÃO" A tecnologia foi uma das grandes protagonistas das alterações de paradigmas, com inúmeras inovações técnicas, cujas vantagens se dividiram entre os benefícios para os doentes e os benefícios para a indústria. Também a ciência teve um papel marcante com relevo para a introdução de novas abordagens técnicas, diagnósticas, e de estudos bem estruturados levando a conclusões que modificaram orientações clínicas; a introdução da Medicina Baseada na Evidência conduziu a uma visão diferente do manuseamento de certas situações e à delineação de algoritmos de abordagem mais eficientes. Esta MBE tem, contudo, pontos que necessitam de muita ponderação quanto à sua aplicação e quanto aos resultados encontrados; em mãos menos orientadas para a progressão e mais para o economicismo, pode ser uma terrível arma de marasmo, condicionando muitíssimo a inovação e o avanço científico. Não se pode esquecer o desenvolvimento constante da indústria farmacêutica com o aparecimento a ritmo marcante de novos medicamentos que têm vindo a mudar as perspectivas de sobrevivência e qualidade de vida de muitas doenças agudas e crónicas. É certo que muito de "investimento e recuperação", numa pura base de economia de capital e ganhos mas, por detrás de muitas destas situações (sem dúvida que por vezes levadas demasiado longe), as vantagens para os doentes não podem ser facilmente postas de lado.

Outras áreas da actuação clínica da Cirurgia Geral sofreram mudanças, começando por uma tendência, lógica e consonante com a actividade praticada em outros lugares do mundo, em caminhar para especialização dos conhecimentos e das abordagens efectuadas. Soma-se a esta tendência uma modificação de estruturas institucionais e organizacionais, com a chamada "Departamentação" ao abrigo da qual se criam grupos de trabalho dedicados a áreas específicas da Cirurgia Geral.

Se estas modificações são positivas ou não é assunto que tem sido matéria de profundas discussões. Julgo que as opiniões negativas mais não são do que fruto de enorme equívoco, nalguns casos mesmo mistificação, quanto ao que verdadeiramente deve ser a Departamentação.

Dentro das opções dadas por todas estas especializações, ainda lugar para uma chamada "Cirurgia Geral" que deverá cobrir um leque variado de áreas menos especializadas e que poderão necessitar de abordagens e tratamentos mais generalizados, em termos de cirurgiões e instituições; é o caso da cirurgia "digestiva ou abdominal" numa perspectiva generalista, a da parede abdominal, o trauma e mais algumas áreas, incluindo muita da chamada "pequena cirurgia" actualmente muito disputada, sobretudo por razões económicas, por outras especialidades.

A "Departamentação" não terá de ser generalizada, numa implementação que é, sobretudo, usada para satisfazer egos e políticas locais, mas deverá estar localizada em Instituições bem definidas e em número limitado mas com boa distribuição territorial.

Sem esses requisitos, com "áreas especializadas" em todas as instituições, das maiores às mais pequenas e das mais centralizadas às mais remotas, o propósito principal da estrutura fica desvirtualizado e esvaziado; do mesmo modo, por centralização não se deverá entender a escolha e decisão de implementação de estruturas desse tipo em todos os Hospitais considerados de " linha".

Ainda dentro desta lógica, "especialização" é "especialização" e a concentração de meios, pessoal e conhecimentos deverá apenas e ser dirigida à área em questão. Sem essa visão perde-se o sentido da "especialização" e da "Departamentação"; a ideia base é a de concentrar esforços, conhecimentos e equipamentos altamente especializados em determinadas áreas, capazes de lidar com, e resolver, as situações mais complexas e menos frequentes dentro de cada um dos campos a que estas unidades se dedicam.

Ligado a este tipo de estruturação, encontramos também a necessidade de implementar algo que está muito pouco enraizado entre nós: a referenciação.

Nada existe de menorização, sobretudo dentro de um sistema como o atrás mencionado, desde que bem estruturado, em enviar os casos mais complexos para as Unidades especializadas. Pelo contrário, uma vez que o pretendido é um aumento de eficiência e, em particular, da qualidade e dos bons resultados fornecidos aos doentes, da capacidade de lidar com os casos mais frequentes e comuns e da referenciação dos outros, o que traz valores acrescidos a todo o sistema. benefício para todas as partes envolvidas e grande aumento da capacidade de resposta e de obtenção de melhores resultados finais.

A CULTURA HOSPITALAR E AS CARREIRAS MÉDICAS É evidente que tudo isto implica uma outra vivência que não tem (ou tem pouca) tradição entre nós: a chamada "Vida" e "Cultura" Hospitalar. Esta última, que pouco impacto tem, fica ainda com menos possibilidades de aparecer com a introdução "ad-hoc" de medidas, pretensamente economicistas, apresentadas sob um manto diáfano de "passos para uma maior eficiência" e que implicam redução de condições para que se consiga reunir, ao mesmo tempo pelo menos, todo o corpo clínico de um Serviço ou de um Departamento, em situações que permitam que seja possível ter discussões de fundo, clínicas e de orientação e educação científica. assim se conseguirá ter Reuniões Multidisciplinares, Reuniões Científicas, Reuniões Clínicas e uma vida de discussão científica real, que permita avaliação (auditorias internas) do trabalho feito, a sua análise crítica, a progressão da prática clínica, educacional, assistencial e de investigação e as possibilidades de evolução do que existe. São estes os esteios da "Vida Hospitalar", criando as suas bases; mas a "Vida Hospitalar" é, na realidade, bem mais do que isto e começa por ter de estar entrosada no espírito dos profissionais que, infelizmente, mais e mais vemos com a atitude de "empregado com horário fixo", sem entender que maleabilizações e mesmo pequenos sacrifícios necessários na vida profissional do dia a dia para que se possa ter um funcionamento moderno e eficaz das Instituições e dos Serviços ou Departamentos.

Desde muito que a ideia de que "para resolver problemas que perguntar a quem faz", tem mostrado a sua eficácia e razão de ser; este conceito iniciou-se no Japão e permitiu grandes progressos na indústria daquele país. Afastar os profissionais dos problemas e das potenciais soluções e pô-los perante factos consumados sem os ouvir leva, na maioria das vezes, a decisões erradas, a dificuldades de aplicação por resistências passivas, em geral fundamentadas e, a falta de envolvimento; por muito brio profissional que haja, o afastamento dos que estão mais envolvidos e a arrogância associada ao espírito de que "os que estão informados é que sabem", é sempre um factor de desinteresse e de criação de obstáculos desnecessários, além de levar, a maior parte das vezes, às soluções menos esclarecidas.

Aliás, um dos maiores problemas a cuja evolução, infelizmente, assistimos durante o nosso período de actividade nos Hospitais do sector público, prende- se com as Carreiras Médicas.

Depois de se ter conseguido impor em Portugal um sistema de Carreiras Médicas que foi sofrendo uma evolução que permitiu que chegasse, em certo período da sua existência, a ser considerado um modelo, mesmo a nível internacional, daquilo que deveria ser uma forma de progressão numa profissão, de regulação inter-pares de qualidade e de hierarquia, estas Carreiras Médicas acabaram por ser completamente desvirtuadas primeiro e praticamente destruídas depois.

É certo que houve uma quota parte de responsabilidade dos próprios profissionais, ajudados pelo espírito e modo de funcionar tipicamente nacionais. A fase em que, quer os candidatos, ao fazerem impugnações sistemáticas, quer os próprios júris, ao não cumprirem o estipulado na legislação - legislação essa que, reconhecidamente e não inocentemente foi preparada, avaliada e manipulada por obedientes legistas e burocratas, e que subverte completamente o espírito das Carreiras, dos Concursos e da Qualidade da medicina praticada - foram desacreditando progressivamente essas Carreiras que deveríamos, todos, defender acerrimamente.

É certo, também que a destruição e a tal subversão das Carreiras, interessava a muitos cuja progressão lhes parecia merecer mais, e ser mais propícia, sob a dependência de outros factores que não os conhecimentos e a defesa da qualidade conseguida pelos Concursos. Os Concursos de progressão nas Carreiras, mesmo tendo, em situações pontuais algumas injustiças sempre foram, no essencial e na sua enorme maioria, correctos e justos até chegarmos a esta fase de desagregação.

Soma-se à desagregação das Carreiras, a destruição progressiva da hierarquia hospitalar - à volta da qual ainda mais interesses existiam e existem - com desautorização dos Directores de Serviços e Departamentos, que passam a estar impossibilitados de coordenar todo o pessoal sob sua orientação prática. Não devemos esquecer que todos os que trabalham numa estrutura hospitalar estão, em última instância, a funcionar em conjunto, de acordo com as coordenadas clínicas, por muito que isto custe a muitos administradores.

Primeiro os Enfermeiros, depois os Administrativos e o pessoal de serviço geral, foram-se autonomizando, sob o beneplácito e interesse de uma casta crescente e cada vez mais dominadora de Administradores Hospitalares. Ainda que os Médicos tenham, desde muito, mostrado que, na sua grande maioria, não conseguem administrar bem as Instituições hospitalares, o poder, os cargos e as responsabilidades dadas aos Administradores ultrapassam o bom senso e, em muitos casos, a racionalidade ligada ao eventual bom funcionamento hospitalar, que se deveria reger por ser administrado por gente da área, que saiba o que está a fazer, por criar condições que garantam serviço de qualidade e por gerir, conseguindo a maior eficiência ao menor custo.

Este facto prende-se com alguns dos anteriores. Hoje em dia, as escolhas de profissionais médicos para cargos de Direcção, de Serviço, de Departamento, de áreas de Responsabilidade Geral, de Direcção Clínica e outros não se faz como algum tempo atrás, por procura de colocação dos de grau hierárquico mais elevado e, para além disso, dos de maior prestígio entre os seus pares. O propósito destas escolhas era o de obter melhores consensos, trabalho mais responsável, e prestigiar as Instituições. Hoje, as escolhas recaem, frequentemente, entre os mais propensos a serem "Yes men" (ou "Yes women"), independentemente da sua posição hierárquica, apologistas de uma concordância absoluta com tudo o que venha de escalões superiores desta nova pirâmide hierárquica, independentemente de fazer sentido ou ser absurdo, e ainda defensores, não da qualidade e do prestígio, mas da demonstração da "eficiência" pedida. Essa "eficiência" é obtida, em grande parte, à custa de diminuição da qualidade em termos redução da prática de cuidados de saúde complexos e de primeira linha para patologias diferenciadas.

Mais ainda, alguns destes elementos esquecem, rápida e facilmente, que o seu lugar deveria obrigar a uma actuação que conduzisse a um esforço concertado pelo estabelecimento de equilíbrio entre a aplicação das políticas gerais de saúde decididas pelo governo e pelas instituições e a defesa do corpo clínico de cada uma das Unidades, corpo clínico que alguns deles representam e pelo qual e para o qual deveriam promover a promoção das condições de trabalho, prestígio e profissionalismo. Quem quer que queira ser respeitado tem de respeitar os outros e "dar-se ao respeito".

Verdade se diga que, ainda que, infelizmente, este quadro seja comum e recorrente, não é generalizado e, quer a nível de Instituições, quer a nível de clínicos com lugares de direcção, quer a nível de administradores, muitas honrosas excepções actuando da forma mais correcta e defendendo a qualidade e a aplicação das melhores políticas para implementação dos melhores cuidados de saúde.

O que as Carreiras não contemplam, no entanto, mesmo que se estivessem plenamente aceites e a ser aplicadas, é uma determinada flexibilidade que permitisse às Instituições manterem nos seus quadros alguns elementos que, por variadas razões, poderão ser do maior interesse para a prossecução de determinadas linhas de trabalho ou de investigação; é certo que, pelas razões acima aduzidas, isto poderia ser uma porta aberta ao nepotismo e à injustiça, mas deveria ser considerado e regulamentado e - entre outras Instituições e outros países - mecanismos que permitem por em prática um sistema destes.

O PÚBLICO E O PRIVADO Contra toda a lógica, considerando os sistemas em que vivemos, verifica-se que grande parte da problemática mencionada existe em ambos os sectores, público e privado. A argumentação de que alguns destes problemas seriam minimizados pela existência clara de uma separação entre o trabalho no sistema público e no privado poderia ter algum fundamento mas que atender à mais que possível perversidade do que acontecerá quando essa imposição de exclusividade surgir: Primeiro que tudo, irá sofrer, e não pouco, o ensino pós graduado (senão mesmo o pré graduado); a divisão dos sistemas criará fossos difíceis de ultrapassar em relação aos modos de cuidar da preparação dos internos das várias especialidades. Não se consegue - apesar das ideias nesse sentido de vários responsáveis - vislumbrar a forma de proporcionar ensino pós graduado de qualidade e de acordo com as regras estabelecidas, nas instituições privadas, isto por várias razões: autorizações dos doentes, integração dos internos na vida da instituição, pagamentos de honorários aos internos e aos responsáveis e outras mais.

Depois, seguir-se-á uma quase segura cartelização dos honorários e a previsível exploração das condições de trabalho e horários, a serem, obviamente, nivelados por baixo e em consonância entre os dois sistemas.

As Carreiras que deveriam, em nome de uma qualidade tanto apregoada, ser consideradas e deveriam existir também nas Instituições privadas, sobretudo naquelas que pretendem ser consideradas "Hospitais", ficarão, ainda mais definitivamente, arrasadas uma vez que não sendo agora do seu interesse aplicá-las, menos o será então.

Em relação a este tema, outro ponto retomou as "luzes da ribalta" recentemente: a discussão sobre como gerir a dicotomia público/privado, com o ressurgir de alguns proponentes da divisão total, de modo a que os médicos sejam obrigados a fazer a escolha entre um ou outro sistema, numa base de trabalho em exclusividade no mesmo.

O que se pode antever - e tem sido mencionado desde muito - é que, depois dessa definição imposta, haverá um consenso entre os empregadores de ambos os sectores para nivelar salários (seguramente por baixo) na tal lógica de "eficácia/poupança" e, agora também "tão na berra", de equidade.

A verdade é que talvez esta solução devesse ser complementada pela prática, bem regulamentada, da actividade privada nos hospitais públicos.

Se bem que, em teoria e no mundo ideal, esta solução (sem discutirmos os problemas que adviriam dos ajustes da componente salarial) poderia ser a que mais garantias de qualidade, competitividade e eficácia ofereceria, a verdade é que nos parece estarmos longe das condições necessárias para a sua aplicação e para a comparação de resultados e benefícios para a população.

Um dos argumentos usados pelos defensores desta solução (e falamos agora não dos políticos ou gestores mas dos opinadores e do grande público) baseia grande parte das considerações no facto de assim se poder garantir a "permanência dos melhores profissionais nos hospitais públicos", evitando a criação de uma dualidade de práticas médicas: passaria, segundo eles, a haver uma, elitista, nos hospitais privados com melhores profissionais e mais bem pagos, e outra, de menor qualidade, nos hospitais públicos, "para os pobres".

No entanto, este argumento, a que se soma a convicção de que mesmo a população com boas condições financeiras preferirá - em caso de problemas graves de saúde - recorrer aos hospitais públicos por "saberem que são os locais com as melhores condições para se praticar uma adequada medicina" parece-nos pecar por duas razões, de sinal contrário.

quando existirem entre nós hospitais privados que respondam verdadeira e globalmente à designação de "Hospital" se poderá colocar a questão da escolha em iguais termos. Quer grande parte dos médicos que trabalham, quer os gestores e proprietários destas Instituições, continuam, ainda, a ter como melhores indicadores de actividade profissional a existência da chamada Medicina Liberal, pura e dura, individualista, baseada no profissional por si próprio, com pouco mais controle de qualidade da prática clínica do que a usada como trunfo de marketing (o mesmo acontece também nos hospitais públicos) e que é a atribuição de Índices de Controle de Qualidade (as "Certificações") por parte de Organizações Nacionais e Internacionais cujo principal propósito é o negócio e que baseiam as suas avaliações de Qualidade, na maior parte, em índices que pouco ou nada entram directamente na actividade clínica.

Por mais verdadeira que possa ser a proclamada percepção da população de que os hospitais públicos são onde se pratica a "boa medicina", a verdade é que, mesmo que se considere que as condições hoteleiras das novas unidades públicas tenham agora comparação com as que existem no privado, uma certa diferença quanto a outro nível de atenções; ainda que da parte da enfermagem existam os melhores cuidados em ambos os sectores, a parcela burocrática e administrativa é, sem dúvida, bem melhor no privado.

A afirmação justificativa da opção carece claramente de demonstração e é duvidoso que haja tal percepção por parte da população. Apesar das limitações mencionadas sobre as unidades privadas, pratica-se em muitas delas, Medicina da melhor qualidade, para começar; por outro lado, o marketing da hospitalização privada é eficaz e tem associada a ideia de que a sua utilização um estatuto especial aos doentes.

Na verdade, depois de ter verdadeiros Hospitais privados, se poderá então fazer as considerações agora mencionadas e tentar nessa altura perceber se o sistema privado, face a um sistema público que funcione como deve ser, estará interessado em prosseguir as políticas de investimento e de concorrência que agora são produtivas, ou se se remeterá para um papel secundário, tomando em mãos áreas "menos nobres" mas eventualmente mais rentáveis.

Paradoxalmente, o que vemos acontecer em algumas unidades privadas, talvez pelo progressivo aumento da dimensão e pelo aumento do volume de doentes, é o início, ainda que moderado, do aparecimento no seu seio de "vícios" do funcionalismo público.

ESTRUTURAÇÃO DE UMA VIDA PROFISSIONAL Numa estrutura Hospitalar, aqueles que querem seguir a Cirurgia como especialidade - e não estes, claro - deverão considerar com atenção, desde o início do seu treino, que rumos pretendem trilhar. A preparação de toda a Carreira e do respectivo Currículo deve ser delineada desde essa altura: locais por onde se pretende passar durante o treino, que linhas de trabalho se querem seguir, com que tipo de Serviços, Cirurgiões e Instituições se quer aprender e frequentar ou que áreas da Cirurgia parecem mais apelativas (ainda que estas opções possam mudar durante o Internato).

Algumas das actividades que vamos vendo ser feitas, no sentido de escolhas dos Internos para contribuição e pretensa valorização para o seu exame de saída do Internato, mais do que uma preparação apropriada e ponderada de Carreira futura, são inconsequentes e muito baseadas no cumprimento de alíneas da tal legislação inapropriada; a frequência de grande número de Cursos e acções de formação, sem linha de rumo, apenas para "fazer número", a execução de trabalhos científicos de duvidosa qualidade, também "porque os parâmetros dos Concursos assim exigem", um desacerto dos números de operações efectuadas, com uma fixação nos "números", levando a distorção do verdadeiro fito do treino e educação do Internato, são alguns exemplos.

Não se , em geral, exceptuando alguns Centros Universitários com o sentido académico, qualquer consistência e verdadeiro interesse numa política de formação de Doutorados e Investigadores. O Doutoramento é um acto de Carreira a fazer numa altura certa da vida, de preferência enquanto jovem, iniciando a sua preparação no final do Internato ou imediatamente após, usando toda a potenciação da soma da juventude, entusiasmo, frescura e abertura de espírito e interesse por determinadas linhas de orientação científica, próprias ou sugeridas, que possam dar os melhores frutos. É também nessa altura que os conceitos da investigação - infelizmente bastante esquecidos no campo da cirurgia - melhor se tornam intrínsecos à metodologia de actuação futura.

Os Doutoramentos mais tardios, quase sempre prémios de prestígio e honoríficos, deveriam ser substituídos por outras formas de providenciar os mesmos propósitos. necessidade de ter mais Doutorados, de forma a alimentar a produção científica, o trabalho académico e o fomento das Instituições Universitárias ainda que o ensino, quer pré quer pós graduado, mas sobretudo este último, deva ser da responsabilidade de Instituições académicas e não académicas, bem como das Sociedades Científicas.

A produção científica e a investigação cobrindo áreas da cirurgia geral, entre nós, não tem muita expressão, salvaguardando os mesmos Centros Universitários acima mencionados. Dois pontos que frisar: não são áreas fáceis de abordar, pelas especificidades da própria cirurgia e também o não são pelas especificidades das técnicas ligadas à própria investigação (mesmo a investigação clínica) cujo interesse desperta pouco entusiasmo nos nossos cirurgiões e cujos ensinamentos são raramente abordados para que possa haver um pouco mais de produção. O resultado, infelizmente, é a pouca produção e o facto de, a maioria ser de baixa qualidade, até pela falta de orientação e de espírito crítico dos possíveis mentores.

Ligado a tudo isto estará a forma de obter uma satisfação dos interesses profissionais daqueles que querem ser cirurgiões, mais ou menos ligados a qualquer das orientações mencionadas. Dentro de uma estrutura de Carreiras bem aplicada, a mobilidade deverá ser incentivada, bem como intensificadas as sinergias entre Hospitais, criando não os Megacentros hospitalares de que ouvimos falar, mas grupos de Hospitais, maiores, menores, mais e menos diferenciados que se completem e que entre si troquem profissionais, doentes, tecnologia, conhecimentos e educação. Assim se conseguirá obter pontos de equilíbrio satisfazendo os profissionais e providenciando melhores cuidados e resultados.

A análise destes resultados - de todos - deve também ser foco de atenção dos profissionais, médicos e não médicos envolvidos. os resultados, analisados à luz dos parâmetros internacionalmente estabelecidos, considerando os ajustes aos riscos do tipo de doentes tratados em cada uma das Unidades, podem fornecer os critérios de avaliação de cada Unidade. As auditorias que este trabalho implica devem ser internas - automaticamente e regularmente efectuadas - e externas, de forma independente, para que os resultados possam ser validados. ainda que estabelecer as rotinas de discussão dos mesmos, entre profissionais, administradores e - se necessário - políticos, mas de forma clara, aberta e baseada nas avaliações científicas dos mesmos.

OS DIREITOS DOS DOENTES, AS OBRIGAÇÕES AS TENDÊNCIAS DE "MODERNIZAÇÃO" E OS MERCADOS A linha de defesa da Livre escolha dos doentes, por muito actual e "democrática" ou "populista" que seja, deixa em aberto as bases em que essas opções são exercidas e as formas práticas de providenciar para a sua aplicação. Os doentes, de modo geral, têm pouco ou nenhum conhecimento do "mercado" da saúde, das práticas e dos resultados; preocupam-se mais e dão mais atenção às amenidades hoteleiras, e à simpatia com que são tratados do que aos resultados e à verdadeira qualidade do tratamento prestado. As auditorias externas podem fornecer os dados fiáveis de que necessitamos. Os problemas de Ética e Deontologia que se encontram em todos os ramos do sistema não são de agora, são muito pertinentes neste ponto mas não serão aqui discutidos.

A relação médico doente foi irremediavelmente deteriorada depois de uma Ministra da Saúde, ajudada pelo seu Secretário de Estado e pelo Director Geral de Saúde de então, ter tomado medidas e atitudes demagógicas e populistas. Os media passaram a fazer apreciações de todo o tipo, não baseadas em factos concretos, sobre os profissionais e a fornecer informação deturpada e não fundamentada na maior parte das vezes; a partir daí o mal estava feito não sendo mais possível corrigir a situação. A febre do litígio e das queixas para todas as entidades possíveis - as mais populares das quais são, à partida, os vários meios de informação, de preferência as televisões e quanto mais apelarem a e fornecerem "lixo" melhor - explodiu e os processos são frequentes com divulgação ampla, dentro do expectável no nosso sistema de "sigilo processual" da justiça. Mais uma vez, é certo que profissionais pouco cuidadosos, para dizer o menos, levando a que, por haver fundamentação nalguns dos casos, se generalize a percepção do erro médico e a confusão, mesmo dentro dos meios jurídicos, clínicos e das seguradoras, entre o erro e a negligência.

Nestes últimos tempos tem-se dedicado grande atenção à "Cirurgia do Ambulatório", cujo conceito passou - por conveniências de vários sectores - do Ambulatório puro à "Cirurgia de um Dia" que será mais "Cirurgia de Uma Noite", com o doente a passar a noite no Hospital e a sair na manhã seguinte. No fundamental, nada de novo em relação ao que se fazia muito, ainda que a diferença esteja nas razões. As opções de causa económica e, pretensamente, de qualidade e defesa do interesse dos doentes, esquecem - pelo menos no caso da Cirurgia Geral - que apenas uma transferência de custos de sector para sector, criando mesmo maiores custos em certos casos em que elementos do agregado familiar que terão de suspender o trabalho no período imediato do pós operatório e, ainda, em termos de vontade do doente; em grande número de casos, o doente sente-se "obrigado" a dar a sua concordância, por não querer ir contra a suposta vontade do cirurgião, pensando que o pode indispor e por não querer perder a oportunidade de ser tratado.

No meio de tudo isto, para além das grandes mudanças científicas, técnicas e tecnológicas, muita coisa positiva aconteceu. A introdução no armamentário cirúrgico de todas as técnicas de abordagem minimamente invasiva trouxeram novas e importantes abordagens em vários campos.

Deixando de parte as inovações técnicas e as alterações de alguns paradigmas de manuseamento de determinadas patologias, cada vez mais alargadas, que reter duas áreas que foram influenciadas de maneira abrangente e importante: A introdução e generalização do conceito de "Fast track", uma transposição alargada, bem estudada e bem fundamentada, dos conceitos que começaram a ter grande impacto com a Cirurgia Minimamente Invasiva e que se mostraram capazes de ser aplicados a outras áreas da Cirurgia.

O alargar deste conceito ao período pré operatório e a outras fases do processo cirúrgico, diagnóstico e terapêutico, (a mais conhecida abordagem é a do "ERAS") veio melhorar ainda mais os resultados desta visão e todos os envolvidos, doentes, cirurgiões e instituições beneficiam muitíssimo da sua aplicação ainda que esteja a levar a grandes mudanças quanto ao que respeita a educação dos internos, que terá que sofrer ajustes temporais por via destas modalidades de abordagem dos doentes.

A EDUCAÇÃO E O TREINO A Educação e o Treino da cirurgia também sofreram mudanças profundas, e benéficas, sob o meu ponto de vista. Mais uma vez a influência da introdução da Cirurgia Minimamente Invasiva foi crucial. As técnicas de treino que surgiram com a "explosão" da Cirurgia Laparoscópica, em particular, vieram influenciar toda a forma de encarar o Ensino da Cirurgia, quer beneficiando dos Cursos práticos bem estruturados, que são muitos, alguns dos quais com credenciais internacionais e reconhecimento e certificação de Corpos oficiais a nível europeu, quer com a percepção dos modos de educar, cientificamente e em competências manuais, cognitivas e de actuação, os treinandos, sejam eles Internos em formação ou Cirurgiões certificados, necessitando de formação complementar ou treino específico em certas áreas. As tecnologias da educação, com a introdução de programas informáticos específicos e com a Realidade Virtual e a Telemedicina nas suas várias facetas vieram adicionar elementos positivos a esta problemática.

Dentro das integrações das tecnologias da informação e da comunicação na moderna sociedade, um dos pontos mais importantes - desde que correctamente usado, caso contrário o perigo, no que se refere a Qualidade e validação, é enorme - é o da utilização da Internet como base para a implementação de acções de formação. Estas podem ser locais, nacionais ou globais e permitem incorporar especialistas de qualquer parte do mundo e fornecer informação permanentemente utilizada. Esperemos que as suas aplicações futuras possam ser produtivas e auxiliar a formação, de modo relativamente eficaz e económico, às novas gerações.

A tendência que hoje se é a de basear mais a Educação e treino, não nos números e preenchimento de itens que façam parte de grelhas burocráticas, mas na avaliação e demonstração da posse das várias competências necessárias para a actividade cirúrgica e na capacidade da sua execução e aplicação sensata e correcta.

O FUTURO O Futuro da cirurgia é incerto, as tendências são indefinidas e é possível que venha a ser, mesmo a curto prazo, totalmente diferente do que experimentei no início da actividade. quase o é, se considerarmos todas as diferenças que aconteceram entretanto; umas subtis, outras mais marcadas e mais repentinas no seu aparecimento e implantação, mas todas elas profundas. Não quero aqui fazer previsões do que creio vir a acontecer a médio e longo prazo.

espero poder ainda ver em que sentido essa evolução caminhará. Cabe aos cirurgiões das gerações actuais e futuras usar o seu saber para manter a arte de modo a que os cirurgiões, por mais algum tempo, sejam ainda os líderes de equipas clínicas que providenciam todos os cuidados, de diagnóstico, tratamento e seguimento dos doentes com patologias que ainda se mantenham cirúrgicas na sua abordagem global.

Estas considerações ("Reflexões") não são, nem pretendem ser exaustivas ou dogmáticas. Mais não são do que pontos de vista de quem, ainda exercendo actividade profissional, educacional e científica, olha em seu redor e, com o sabor de alguma experiência, se atreve a comentar o que , ciente de que todos somos passíveis de crítica, mas também do direito de criticar, uma e outra, de preferência, o mais construtivamente possível.

Sumariando, no entanto, pode-se dizer que, até aqui, apesar do balanço positivo/negativo ser, de certo modo, indefinido, o exercício da arte da cirurgia deu muita satisfação e pode-se bem dizer que, nesse aspecto, "Valeu a pena!"

Correspondência: J. MANUEL SCHIAPPA e-mail: schiappa.lund@net.vodafone.pt

Data de recepção do artigo: 16-6-2013 Data de aceitação do artigo: 15-8-2013


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