Reflexões de um Cirurgião Semi-Retirado: Um dos Editores Eméritos tece
considerações sobre as vivências tidas durante a sua vida profissional
É A MEDICINA AINDA UMA BOA PROFISSÃO?
Um artigo recentemente publicado no Boletim do American College of Surgeons,
relata que 90% dos médicos que participaram num estudo organizado pela
"The Doctor's Company" não recomendariam a área dos cuidados
de saúde como uma profissão a escolher. Creio que entre nós haverá uma
percepção semelhante, se bem que também acredite que deverá ser muito diferente
da que existia quando entrei para a Universidade, altura em que havia grande
interesse em escolher e prosseguir esta profissão.
Mas, na verdade, a pergunta que se põe é: Será que a Medicina ainda é uma
"boa" profissão?
Parece-me que a questão é pertinente e terá sofrido variações no decorrer
destes tempos, desde que iniciei a actividade profissional.
As agressões a que a profissão e os profissionais estiveram sujeitos, as
mudanças de paradigmas, as profundas alterações das estruturas sociais e
económicas, a proliferação de informações, não filtradas nem validadas, feitas
em todos os canais de informação foram criando, progressivamente, mudanças na
percepção da população, em geral, quanto ao que é a actividade médica; algumas
- talvez a maior parte - injustas e mal direccionadas, mas outras
correctas e fruto da própria actuação das estruturas e dos profissionais.
Será que foi uma era especial aquela em que comecei e a que me estou a referir?
Quando a Medicina ainda era "uma boa e recomendada profissão"?
Houve, de facto, muito de bom durante aqueles tempos, mas outras eras e outras
gerações também viveram algo de semelhante e será estultícia e demasiado
orgulho crer que "aquela sim - a "minha" - foi
especial"!
Os actuais cirurgiões no activo também irão, seguramente, mais tarde, achar que
trabalharam numa "era especial", e o mesmo devem achar as gerações
que precederam.
A tudo isto acresce a grande alteração, científica e tecnológica, comprovativa,
cada vez mais, da obrigatoriedade da manutenção de conhecimentos
permanentemente actualizados, sobretudo tendo em consideração de que todo o
conhecimento de um médico profissionalmente activo se renova totalmente cada 5
a 10 anos.
Houve de facto alterações importantes nos paradigmas médico-cirúrgicos no
decorrer destes anos; mas será isso suficiente para alterar tão profundas
percepções? O que podemos dizer é que existe a sensação de que se deram, nas
últimas décadas, passos muito importantes para a evolução dos conhecimentos e
da actuação cirúrgica em geral. Alguns deles mudando por completo perspectivas
tidas por definitivas e antecipando mesmo algum afastamento da utilização de
técnicas cirúrgicas em determinadas situações. Não só a "agressão
mínima" impera, por vezes com exageros mal controlados, como algumas
abordagens que eram previamente cirúrgicas têm sido abandonados por força da
introdução de outras alternativas, muitas vezes apenas medicamentosas ou usando
muitas outras técnicas, algumas, até há pouco, do campo de outras
Especialidades; também aqui os limites e as fronteiras que se tinham traçado, e
eram perceptíveis como fixas e limitativas, se estão a esboroar.
Mesmo considerando que continua a haver uma certa procura do Curso de Medicina
pela parte de jovens Universitários que se iniciam nos estudos superiores, com
os problemas e constrangimentos que sabemos existir, a Cirurgia Geral, em
particular, mas não só, está longe de - mais tarde nas suas carreiras
- ser uma Especialidade atractiva, pelo menos para os que mais se
destacam. Isto, considerando que, nestes últimos tempos, por via de projectos
de educação em que estou envolvido, ter encontrado jovens entusiasmados com a
Especialidade e, mais importante ainda, parecendo muito bem preparados.
O IMPACTO DA TECNOLOGIA NA CIRURGIA DE HOJE EM DIA. A ESPECIALIZAÇÃO E A
"DEPARTAMENTAÇÃO"
A tecnologia foi uma das grandes protagonistas das alterações de paradigmas,
com inúmeras inovações técnicas, cujas vantagens se dividiram entre os
benefícios para os doentes e os benefícios para a indústria. Também a ciência
teve um papel marcante com relevo para a introdução de novas abordagens
técnicas, diagnósticas, e de estudos bem estruturados levando a conclusões que
modificaram orientações clínicas; a introdução da Medicina Baseada na Evidência
conduziu a uma visão diferente do manuseamento de certas situações e à
delineação de algoritmos de abordagem mais eficientes. Esta MBE tem, contudo,
pontos que necessitam de muita ponderação quanto à sua aplicação e quanto aos
resultados encontrados; em mãos menos orientadas para a progressão e mais para
o economicismo, pode ser uma terrível arma de marasmo, condicionando muitíssimo
a inovação e o avanço científico. Não se pode esquecer o desenvolvimento
constante da indústria farmacêutica com o aparecimento a ritmo marcante de
novos medicamentos que têm vindo a mudar as perspectivas de sobrevivência e
qualidade de vida de muitas doenças agudas e crónicas. É certo que há muito de
"investimento e recuperação", numa pura base de economia de capital
e ganhos mas, por detrás de muitas destas situações (sem dúvida que por vezes
levadas demasiado longe), as vantagens para os doentes não podem ser facilmente
postas de lado.
Outras áreas da actuação clínica da Cirurgia Geral sofreram mudanças, começando
por uma tendência, lógica e consonante com a actividade praticada em outros
lugares do mundo, em caminhar para especialização dos conhecimentos e das
abordagens efectuadas. Soma-se a esta tendência uma modificação de estruturas
institucionais e organizacionais, com a chamada "Departamentação"
ao abrigo da qual se criam grupos de trabalho dedicados a áreas específicas da
Cirurgia Geral.
Se estas modificações são positivas ou não é assunto que tem sido matéria de
profundas discussões. Julgo que as opiniões negativas mais não são do que fruto
de enorme equívoco, nalguns casos mesmo mistificação, quanto ao que
verdadeiramente deve ser a Departamentação.
Dentro das opções dadas por todas estas especializações, há ainda lugar para
uma chamada "Cirurgia Geral" que deverá cobrir um leque variado de
áreas menos especializadas e que poderão necessitar de abordagens e tratamentos
mais generalizados, em termos de cirurgiões e instituições; é o caso da
cirurgia "digestiva ou abdominal" numa perspectiva generalista, a
da parede abdominal, o trauma e mais algumas áreas, incluindo muita da chamada
"pequena cirurgia" actualmente muito disputada, sobretudo por
razões económicas, por outras especialidades.
A "Departamentação" não terá de ser generalizada, numa
implementação que é, sobretudo, usada para satisfazer egos e políticas locais,
mas deverá estar localizada em Instituições bem definidas e em número limitado
mas com boa distribuição territorial.
Sem esses requisitos, com "áreas especializadas" em todas as
instituições, das maiores às mais pequenas e das mais centralizadas às mais
remotas, o propósito principal da estrutura fica desvirtualizado e esvaziado;
do mesmo modo, por centralização não se deverá entender a escolha e decisão de
implementação de estruturas desse tipo em todos os Hospitais considerados de
"1ª linha".
Ainda dentro desta lógica, "especialização" é
"especialização" e a concentração de meios, pessoal e conhecimentos
deverá apenas e só ser dirigida à área em questão. Sem essa visão perde-se o
sentido da "especialização" e da "Departamentação"; a
ideia base é a de concentrar esforços, conhecimentos e equipamentos altamente
especializados em determinadas áreas, capazes de lidar com, e resolver, as
situações mais complexas e menos frequentes dentro de cada um dos campos a que
estas unidades se dedicam.
Ligado a este tipo de estruturação, encontramos também a necessidade de
implementar algo que está muito pouco enraizado entre nós: a referenciação.
Nada existe de menorização, sobretudo dentro de um sistema como o atrás
mencionado, desde que bem estruturado, em enviar os casos mais complexos para
as Unidades especializadas. Pelo contrário, uma vez que o pretendido é um
aumento de eficiência e, em particular, da qualidade e dos bons resultados
fornecidos aos doentes, da capacidade de lidar com os casos mais frequentes e
comuns e da referenciação dos outros, o que só traz valores acrescidos a todo o
sistema. Há benefício para todas as partes envolvidas e grande aumento da
capacidade de resposta e de obtenção de melhores resultados finais.
A CULTURA HOSPITALAR E AS CARREIRAS MÉDICAS
É evidente que tudo isto implica uma outra vivência que não tem (ou tem pouca)
tradição entre nós: a chamada "Vida" e "Cultura"
Hospitalar. Esta última, que já pouco impacto tem, fica ainda com menos
possibilidades de aparecer com a introdução "ad-hoc" de medidas,
pretensamente economicistas, apresentadas sob um manto diáfano de "passos
para uma maior eficiência" e que implicam redução de condições para que
se consiga reunir, ao mesmo tempo pelo menos, todo o corpo clínico de um
Serviço ou de um Departamento, em situações que permitam que seja possível ter
discussões de fundo, clínicas e de orientação e educação científica. Só assim
se conseguirá ter Reuniões Multidisciplinares, Reuniões Científicas, Reuniões
Clínicas e uma vida de discussão científica real, que permita avaliação
(auditorias internas) do trabalho feito, a sua análise crítica, a progressão da
prática clínica, educacional, assistencial e de investigação e as
possibilidades de evolução do que existe. São estes os esteios da "Vida
Hospitalar", criando as suas bases; mas a "Vida Hospitalar"
é, na realidade, bem mais do que isto e começa por ter de estar entrosada no
espírito dos profissionais que, infelizmente, mais e mais vemos com a atitude
de "empregado com horário fixo", sem entender que há
maleabilizações e mesmo pequenos sacrifícios necessários na vida profissional
do dia a dia para que se possa ter um funcionamento moderno e eficaz das
Instituições e dos Serviços ou Departamentos.
Desde há muito que a ideia de que "para resolver problemas há que
perguntar a quem faz", tem mostrado a sua eficácia e razão de ser; este
conceito iniciou-se no Japão e permitiu grandes progressos na indústria daquele
país. Afastar os profissionais dos problemas e das potenciais soluções e pô-los
perante factos consumados sem os ouvir leva, na maioria das vezes, a decisões
erradas, a dificuldades de aplicação por resistências passivas, em geral
fundamentadas e, a falta de envolvimento; por muito brio profissional que haja,
o afastamento dos que estão mais envolvidos e a arrogância associada ao
espírito de que "os que estão informados é que sabem", é sempre um
factor de desinteresse e de criação de obstáculos desnecessários, além de
levar, a maior parte das vezes, às soluções menos esclarecidas.
Aliás, um dos maiores problemas a cuja evolução, infelizmente, assistimos
durante o nosso período de actividade nos Hospitais do sector público, prende-
se com as Carreiras Médicas.
Depois de se ter conseguido impor em Portugal um sistema de Carreiras Médicas
que foi sofrendo uma evolução que permitiu que chegasse, em certo período da
sua existência, a ser considerado um modelo, mesmo a nível internacional,
daquilo que deveria ser uma forma de progressão numa profissão, de regulação
inter-pares de qualidade e de hierarquia, estas Carreiras Médicas acabaram por
ser completamente desvirtuadas primeiro e praticamente destruídas depois.
É certo que houve uma quota parte de responsabilidade dos próprios
profissionais, ajudados pelo espírito e modo de funcionar tipicamente
nacionais. A fase em que, quer os candidatos, ao fazerem impugnações
sistemáticas, quer os próprios júris, ao não cumprirem o estipulado na
legislação - legislação essa que, reconhecidamente e não inocentemente
foi preparada, avaliada e manipulada por obedientes legistas e burocratas, e
que subverte completamente o espírito das Carreiras, dos Concursos e da
Qualidade da medicina praticada - foram desacreditando progressivamente
essas Carreiras que deveríamos, todos, defender acerrimamente.
É certo, também que a destruição e a tal subversão das Carreiras, interessava a
muitos cuja progressão lhes parecia merecer mais, e ser mais propícia, sob a
dependência de outros factores que não os conhecimentos e a defesa da qualidade
conseguida pelos Concursos. Os Concursos de progressão nas Carreiras, mesmo
tendo, em situações pontuais algumas injustiças sempre foram, no essencial e na
sua enorme maioria, correctos e justos até chegarmos a esta fase de
desagregação.
Soma-se à desagregação das Carreiras, a destruição progressiva da hierarquia
hospitalar - à volta da qual ainda mais interesses existiam e existem
- com desautorização dos Directores de Serviços e Departamentos, que
passam a estar impossibilitados de coordenar todo o pessoal sob sua orientação
prática. Não devemos esquecer que todos os que trabalham numa estrutura
hospitalar estão, em última instância, a funcionar em conjunto, de acordo com
as coordenadas clínicas, por muito que isto custe a muitos administradores.
Primeiro os Enfermeiros, depois os Administrativos e o pessoal de serviço
geral, foram-se autonomizando, sob o beneplácito e interesse de uma casta
crescente e cada vez mais dominadora de Administradores Hospitalares. Ainda que
os Médicos tenham, desde há muito, mostrado que, na sua grande maioria, não
conseguem administrar bem as Instituições hospitalares, o poder, os cargos e as
responsabilidades dadas aos Administradores ultrapassam o bom senso e, em
muitos casos, a racionalidade ligada ao eventual bom funcionamento hospitalar,
que se deveria reger por ser administrado por gente da área, que saiba o que
está a fazer, por criar condições que garantam serviço de qualidade e por
gerir, conseguindo a maior eficiência ao menor custo.
Este facto prende-se com alguns dos anteriores. Hoje em dia, as escolhas de
profissionais médicos para cargos de Direcção, de Serviço, de Departamento, de
áreas de Responsabilidade Geral, de Direcção Clínica e outros não se faz como
há algum tempo atrás, por procura de colocação dos de grau hierárquico mais
elevado e, para além disso, dos de maior prestígio entre os seus pares. O
propósito destas escolhas era o de obter melhores consensos, trabalho mais
responsável, e prestigiar as Instituições. Hoje, as escolhas recaem,
frequentemente, entre os mais propensos a serem "Yes men" (ou
"Yes women"), independentemente da sua posição hierárquica,
apologistas de uma concordância absoluta com tudo o que venha de escalões
superiores desta nova pirâmide hierárquica, independentemente de fazer sentido
ou ser absurdo, e ainda defensores, não da qualidade e do prestígio, mas da
demonstração da "eficiência" pedida. Essa "eficiência"
é obtida, em grande parte, à custa de diminuição da qualidade em termos redução
da prática de cuidados de saúde complexos e de primeira linha para patologias
diferenciadas.
Mais ainda, alguns destes elementos esquecem, rápida e facilmente, que o seu
lugar deveria obrigar a uma actuação que conduzisse a um esforço concertado
pelo estabelecimento de equilíbrio entre a aplicação das políticas gerais de
saúde decididas pelo governo e pelas instituições e a defesa do corpo clínico
de cada uma das Unidades, corpo clínico que alguns deles representam e pelo
qual e para o qual deveriam promover a promoção das condições de trabalho,
prestígio e profissionalismo. Quem quer que queira ser respeitado tem de
respeitar os outros e "dar-se ao respeito".
Verdade se diga que, ainda que, infelizmente, este quadro seja comum e
recorrente, não é generalizado e, quer a nível de Instituições, quer a nível de
clínicos com lugares de direcção, quer a nível de administradores, há muitas
honrosas excepções actuando da forma mais correcta e defendendo a qualidade e a
aplicação das melhores políticas para implementação dos melhores cuidados de
saúde.
O que as Carreiras não contemplam, no entanto, mesmo que se estivessem
plenamente aceites e a ser aplicadas, é uma determinada flexibilidade que
permitisse às Instituições manterem nos seus quadros alguns elementos que, por
variadas razões, poderão ser do maior interesse para a prossecução de
determinadas linhas de trabalho ou de investigação; é certo que, pelas razões
acima aduzidas, isto poderia ser uma porta aberta ao nepotismo e à injustiça,
mas deveria ser considerado e regulamentado e há - entre outras
Instituições e outros países - mecanismos que permitem por em prática um
sistema destes.
O PÚBLICO E O PRIVADO
Contra toda a lógica, considerando os sistemas em que vivemos, verifica-se que
grande parte da problemática mencionada existe em ambos os sectores, público e
privado. A argumentação de que alguns destes problemas seriam minimizados pela
existência clara de uma separação entre o trabalho no sistema público e no
privado poderia ter algum fundamento mas há que atender à mais que possível
perversidade do que acontecerá quando essa imposição de exclusividade surgir:
Primeiro que tudo, irá sofrer, e não pouco, o ensino pós graduado (senão mesmo
o pré graduado); a divisão dos sistemas criará fossos difíceis de ultrapassar
em relação aos modos de cuidar da preparação dos internos das várias
especialidades. Não se consegue - apesar das ideias nesse sentido de
vários responsáveis - vislumbrar a forma de proporcionar ensino pós
graduado de qualidade e de acordo com as regras estabelecidas, nas instituições
privadas, isto por várias razões: autorizações dos doentes, integração dos
internos na vida da instituição, pagamentos de honorários aos internos e aos
responsáveis e outras mais.
Depois, seguir-se-á uma quase segura cartelização dos honorários e a previsível
exploração das condições de trabalho e horários, a serem, obviamente, nivelados
por baixo e em consonância entre os dois sistemas.
As Carreiras que deveriam, em nome de uma qualidade tanto apregoada, ser
consideradas e deveriam existir também nas Instituições privadas, sobretudo
naquelas que pretendem ser consideradas "Hospitais", ficarão, ainda
mais definitivamente, arrasadas uma vez que não sendo agora do seu interesse
aplicá-las, menos o será então.
Em relação a este tema, outro ponto retomou as "luzes da ribalta"
recentemente: a discussão sobre como gerir a dicotomia público/privado, com o
ressurgir de alguns proponentes da divisão total, de modo a que os médicos
sejam obrigados a fazer a escolha entre um ou outro sistema, numa base de
trabalho em exclusividade no mesmo.
O que se pode antever - e tem sido mencionado desde há muito - é
que, depois dessa definição imposta, haverá um consenso entre os empregadores
de ambos os sectores para nivelar salários (seguramente por baixo) na tal
lógica de "eficácia/poupança" e, agora também "tão na
berra", de equidade.
A verdade é que talvez esta solução devesse ser complementada pela prática, bem
regulamentada, da actividade privada nos hospitais públicos.
Se bem que, em teoria e no mundo ideal, esta solução (sem discutirmos os
problemas que adviriam dos ajustes da componente salarial) poderia ser a que
mais garantias de qualidade, competitividade e eficácia ofereceria, a verdade é
que nos parece estarmos longe das condições necessárias para a sua aplicação e
para a comparação de resultados e benefícios para a população.
Um dos argumentos usados pelos defensores desta solução (e falamos agora não
dos políticos ou gestores mas dos opinadores e do grande público) baseia grande
parte das considerações no facto de só assim se poder garantir a
"permanência dos melhores profissionais nos hospitais públicos",
evitando a criação de uma dualidade de práticas médicas: passaria, segundo
eles, a haver uma, elitista, nos hospitais privados com melhores profissionais
e mais bem pagos, e outra, de menor qualidade, nos hospitais públicos,
"para os pobres".
No entanto, este argumento, a que se soma a convicção de que mesmo a população
com boas condições financeiras preferirá - em caso de problemas graves de
saúde - recorrer aos hospitais públicos por "saberem que são os
locais com as melhores condições para se praticar uma adequada medicina"
parece-nos pecar por duas razões, de sinal contrário.
Só quando existirem entre nós hospitais privados que respondam verdadeira e
globalmente à designação de "Hospital" se poderá colocar a questão
da escolha em iguais termos. Quer grande parte dos médicos que aí trabalham,
quer os gestores e proprietários destas Instituições, continuam, ainda, a ter
como melhores indicadores de actividade profissional a existência da chamada
Medicina Liberal, pura e dura, individualista, baseada no profissional por si
próprio, com pouco mais controle de qualidade da prática clínica do que a usada
como trunfo de marketing (o mesmo acontece também nos hospitais públicos) e que
é a atribuição de Índices de Controle de Qualidade (as
"Certificações") por parte de Organizações Nacionais e
Internacionais cujo principal propósito é o negócio e que baseiam as suas
avaliações de Qualidade, na maior parte, em índices que pouco ou nada entram
directamente na actividade clínica.
Por mais verdadeira que possa ser a proclamada percepção da população de que os
hospitais públicos são onde se pratica a "boa medicina", a verdade
é que, mesmo que se considere que as condições hoteleiras das novas unidades
públicas tenham agora comparação com as que existem no privado, há uma certa
diferença quanto a outro nível de atenções; ainda que da parte da enfermagem
existam os melhores cuidados em ambos os sectores, a parcela burocrática e
administrativa é, sem dúvida, bem melhor no privado.
A afirmação justificativa da opção carece claramente de demonstração e é
duvidoso que haja tal percepção por parte da população. Apesar das limitações
mencionadas sobre as unidades privadas, pratica-se em muitas delas, Medicina da
melhor qualidade, para começar; por outro lado, o marketing da hospitalização
privada é eficaz e tem associada a ideia de que a sua utilização dá um estatuto
especial aos doentes.
Na verdade, só depois de ter verdadeiros Hospitais privados, se poderá então
fazer as considerações agora mencionadas e tentar nessa altura perceber se o
sistema privado, face a um sistema público que funcione como deve ser, estará
interessado em prosseguir as políticas de investimento e de concorrência que
agora são produtivas, ou se se remeterá para um papel secundário, tomando em
mãos áreas "menos nobres" mas eventualmente mais rentáveis.
Paradoxalmente, o que vemos acontecer em algumas unidades privadas, talvez pelo
progressivo aumento da dimensão e pelo aumento do volume de doentes, é o
início, ainda que moderado, do aparecimento no seu seio de "vícios"
do funcionalismo público.
ESTRUTURAÇÃO DE UMA VIDA PROFISSIONAL
Numa estrutura Hospitalar, aqueles que querem seguir a Cirurgia como
especialidade - e não só estes, claro - deverão considerar com
atenção, desde o início do seu treino, que rumos pretendem trilhar. A
preparação de toda a Carreira e do respectivo Currículo deve ser delineada
desde essa altura: locais por onde se pretende passar durante o treino, que
linhas de trabalho se querem seguir, com que tipo de Serviços, Cirurgiões e
Instituições se quer aprender e frequentar ou que áreas da Cirurgia parecem
mais apelativas (ainda que estas opções possam mudar durante o Internato).
Algumas das actividades que vamos vendo ser feitas, no sentido de escolhas dos
Internos para contribuição e pretensa valorização para o seu exame de saída do
Internato, mais do que uma preparação apropriada e ponderada de Carreira
futura, são inconsequentes e muito baseadas no cumprimento de alíneas da tal
legislação inapropriada; a frequência de grande número de Cursos e acções de
formação, sem linha de rumo, apenas para "fazer número", a execução
de trabalhos científicos de duvidosa qualidade, também "porque os
parâmetros dos Concursos assim exigem", um desacerto dos números de
operações efectuadas, com uma fixação nos "números", levando a
distorção do verdadeiro fito do treino e educação do Internato, são alguns
exemplos.
Não se vê, em geral, exceptuando alguns Centros Universitários com o sentido
académico, qualquer consistência e verdadeiro interesse numa política de
formação de Doutorados e Investigadores. O Doutoramento é um acto de Carreira a
fazer numa altura certa da vida, de preferência enquanto jovem, iniciando a sua
preparação no final do Internato ou imediatamente após, usando toda a
potenciação da soma da juventude, entusiasmo, frescura e abertura de espírito e
interesse por determinadas linhas de orientação científica, próprias ou
sugeridas, que possam dar os melhores frutos. É também nessa altura que os
conceitos da investigação - infelizmente bastante esquecidos no campo da
cirurgia - melhor se tornam intrínsecos à metodologia de actuação futura.
Os Doutoramentos mais tardios, quase sempre prémios de prestígio e honoríficos,
deveriam ser substituídos por outras formas de providenciar os mesmos
propósitos. Há necessidade de ter mais Doutorados, de forma a alimentar a
produção científica, o trabalho académico e o fomento das Instituições
Universitárias ainda que o ensino, quer pré quer pós graduado, mas sobretudo
este último, deva ser da responsabilidade de Instituições académicas e não
académicas, bem como das Sociedades Científicas.
A produção científica e a investigação cobrindo áreas da cirurgia geral, entre
nós, não tem muita expressão, salvaguardando os mesmos Centros Universitários
acima mencionados. Dois pontos há que frisar: não são áreas fáceis de abordar,
pelas especificidades da própria cirurgia e também o não são pelas
especificidades das técnicas ligadas à própria investigação (mesmo a
investigação clínica) cujo interesse desperta pouco entusiasmo nos nossos
cirurgiões e cujos ensinamentos são raramente abordados para que possa haver um
pouco mais de produção. O resultado, infelizmente, é a pouca produção e o facto
de, a maioria ser de baixa qualidade, até pela falta de orientação e de
espírito crítico dos possíveis mentores.
Ligado a tudo isto estará a forma de obter uma satisfação dos interesses
profissionais daqueles que querem ser cirurgiões, mais ou menos ligados a
qualquer das orientações mencionadas. Dentro de uma estrutura de Carreiras bem
aplicada, a mobilidade deverá ser incentivada, bem como intensificadas as
sinergias entre Hospitais, criando não os Megacentros hospitalares de que
ouvimos falar, mas grupos de Hospitais, maiores, menores, mais e menos
diferenciados que se completem e que entre si troquem profissionais, doentes,
tecnologia, conhecimentos e educação. Assim se conseguirá obter pontos de
equilíbrio satisfazendo os profissionais e providenciando melhores cuidados e
resultados.
A análise destes resultados - de todos - deve também ser foco de
atenção dos profissionais, médicos e não médicos envolvidos. Só os resultados,
analisados à luz dos parâmetros internacionalmente estabelecidos, considerando
os ajustes aos riscos do tipo de doentes tratados em cada uma das Unidades,
podem fornecer os critérios de avaliação de cada Unidade. As auditorias que
este trabalho implica devem ser internas - automaticamente e regularmente
efectuadas - e externas, de forma independente, para que os resultados
possam ser validados. Há ainda que estabelecer as rotinas de discussão dos
mesmos, entre profissionais, administradores e - se necessário -
políticos, mas de forma clara, aberta e baseada nas avaliações científicas dos
mesmos.
OS DIREITOS DOS DOENTES, AS OBRIGAÇÕES AS TENDÊNCIAS DE
"MODERNIZAÇÃO" E OS MERCADOS
A linha de defesa da Livre escolha dos doentes, por muito actual e
"democrática" ou "populista" que seja, deixa em aberto
as bases em que essas opções são exercidas e as formas práticas de providenciar
para a sua aplicação. Os doentes, de modo geral, têm pouco ou nenhum
conhecimento do "mercado" da saúde, das práticas e dos resultados;
preocupam-se mais e dão mais atenção às amenidades hoteleiras, e à simpatia com
que são tratados do que aos resultados e à verdadeira qualidade do tratamento
prestado. As auditorias externas podem fornecer os dados fiáveis de que
necessitamos. Os problemas de Ética e Deontologia que se encontram em todos os
ramos do sistema não são de agora, são muito pertinentes neste ponto mas não
serão aqui discutidos.
A relação médico doente foi irremediavelmente deteriorada depois de uma
Ministra da Saúde, ajudada pelo seu Secretário de Estado e pelo Director Geral
de Saúde de então, ter tomado medidas e atitudes demagógicas e populistas. Os
media passaram a fazer apreciações de todo o tipo, não baseadas em factos
concretos, sobre os profissionais e a fornecer informação deturpada e não
fundamentada na maior parte das vezes; a partir daí o mal estava feito não
sendo mais possível corrigir a situação. A febre do litígio e das queixas para
todas as entidades possíveis - as mais populares das quais são, à
partida, os vários meios de informação, de preferência as televisões e quanto
mais apelarem a e fornecerem "lixo" melhor - explodiu e os
processos são frequentes com divulgação ampla, dentro do expectável no nosso
sistema de "sigilo processual" da justiça. Mais uma vez, é certo
que há profissionais pouco cuidadosos, para dizer o menos, levando a que, por
haver fundamentação nalguns dos casos, se generalize a percepção do erro médico
e a confusão, mesmo dentro dos meios jurídicos, clínicos e das seguradoras,
entre o erro e a negligência.
Nestes últimos tempos tem-se dedicado grande atenção à "Cirurgia do
Ambulatório", cujo conceito passou - por conveniências de vários
sectores - do Ambulatório puro à "Cirurgia de um Dia" que
será mais "Cirurgia de Uma Noite", com o doente a passar a noite no
Hospital e a sair na manhã seguinte. No fundamental, nada de novo em relação ao
que já se fazia há muito, ainda que a diferença esteja nas razões. As opções de
causa económica e, pretensamente, de qualidade e defesa do interesse dos
doentes, esquecem - pelo menos no caso da Cirurgia Geral - que
apenas há uma transferência de custos de sector para sector, criando mesmo
maiores custos em certos casos em que há elementos do agregado familiar que
terão de suspender o trabalho no período imediato do pós operatório e, ainda,
em termos de vontade do doente; em grande número de casos, o doente sente-se
"obrigado" a dar a sua concordância, por não querer ir contra a
suposta vontade do cirurgião, pensando que o pode indispor e por não querer
perder a oportunidade de ser tratado.
No meio de tudo isto, para além das grandes mudanças científicas, técnicas e
tecnológicas, muita coisa positiva aconteceu. A introdução no armamentário
cirúrgico de todas as técnicas de abordagem minimamente invasiva trouxeram
novas e importantes abordagens em vários campos.
Deixando de parte as inovações técnicas e as alterações de alguns paradigmas de
manuseamento de determinadas patologias, cada vez mais alargadas, há que reter
duas áreas que foram influenciadas de maneira abrangente e importante:
A introdução e generalização do conceito de "Fast track", uma
transposição alargada, bem estudada e bem fundamentada, dos conceitos que
começaram a ter grande impacto com a Cirurgia Minimamente Invasiva e que se
mostraram capazes de ser aplicados a outras áreas da Cirurgia.
O alargar deste conceito ao período pré operatório e a outras fases do processo
cirúrgico, diagnóstico e terapêutico, (a mais conhecida abordagem é a do
"ERAS") veio melhorar ainda mais os resultados desta visão e todos
os envolvidos, doentes, cirurgiões e instituições beneficiam muitíssimo da sua
aplicação ainda que esteja a levar a grandes mudanças quanto ao que respeita a
educação dos internos, que terá que sofrer ajustes temporais por via destas
modalidades de abordagem dos doentes.
A EDUCAÇÃO E O TREINO
A Educação e o Treino da cirurgia também sofreram mudanças profundas, e
benéficas, sob o meu ponto de vista. Mais uma vez a influência da introdução da
Cirurgia Minimamente Invasiva foi crucial. As técnicas de treino que surgiram
com a "explosão" da Cirurgia Laparoscópica, em particular, vieram
influenciar toda a forma de encarar o Ensino da Cirurgia, quer beneficiando dos
Cursos práticos bem estruturados, que são muitos, alguns dos quais com
credenciais internacionais e reconhecimento e certificação de Corpos oficiais a
nível europeu, quer com a percepção dos modos de educar, cientificamente e em
competências manuais, cognitivas e de actuação, os treinandos, sejam eles
Internos em formação ou Cirurgiões já certificados, necessitando de formação
complementar ou treino específico em certas áreas. As tecnologias da educação,
com a introdução de programas informáticos específicos e com a Realidade
Virtual e a Telemedicina nas suas várias facetas vieram adicionar elementos
positivos a esta problemática.
Dentro das integrações das tecnologias da informação e da comunicação na
moderna sociedade, um dos pontos mais importantes - desde que
correctamente usado, caso contrário o perigo, no que se refere a Qualidade e
validação, é enorme - é o da utilização da Internet como base para a
implementação de acções de formação. Estas podem ser locais, nacionais ou
globais e permitem incorporar especialistas de qualquer parte do mundo e
fornecer informação permanentemente utilizada. Esperemos que as suas aplicações
futuras possam ser produtivas e auxiliar a formação, de modo relativamente
eficaz e económico, às novas gerações.
A tendência que hoje se vê é a de basear mais a Educação e treino, não nos
números e preenchimento de itens que façam parte de grelhas burocráticas, mas
na avaliação e demonstração da posse das várias competências necessárias para a
actividade cirúrgica e na capacidade da sua execução e aplicação sensata e
correcta.
O FUTURO
O Futuro da cirurgia é incerto, as tendências são indefinidas e é possível que
venha a ser, mesmo a curto prazo, totalmente diferente do que experimentei no
início da actividade. Já quase o é, se considerarmos todas as diferenças que
aconteceram entretanto; umas subtis, outras mais marcadas e mais repentinas no
seu aparecimento e implantação, mas todas elas profundas. Não quero aqui fazer
previsões do que creio vir a acontecer a médio e longo prazo.
Só espero poder ainda ver em que sentido essa evolução caminhará. Cabe aos
cirurgiões das gerações actuais e futuras usar o seu saber para manter a arte
de modo a que os cirurgiões, por mais algum tempo, sejam ainda os líderes de
equipas clínicas que providenciam todos os cuidados, de diagnóstico, tratamento
e seguimento dos doentes com patologias que ainda se mantenham cirúrgicas na
sua abordagem global.
Estas considerações ("Reflexões") não são, nem pretendem ser
exaustivas ou dogmáticas. Mais não são do que pontos de vista de quem, ainda
exercendo actividade profissional, educacional e científica, olha em seu redor
e, com o sabor de alguma experiência, se atreve a comentar o que vê, ciente de
que todos somos passíveis de crítica, mas também do direito de criticar, uma e
outra, de preferência, o mais construtivamente possível.
Sumariando, no entanto, pode-se dizer que, até aqui, apesar do balanço
positivo/negativo ser, de certo modo, indefinido, o exercício da arte da
cirurgia deu muita satisfação e pode-se bem dizer que, nesse aspecto,
"Valeu a pena!"
Correspondência:
J. MANUEL SCHIAPPA
e-mail: schiappa.lund@net.vodafone.pt
Data de recepção do artigo:
16-6-2013
Data de aceitação do artigo:
15-8-2013