Editorial Temático
EDITORIAL TEMÁTICO
Editorial Temático
Carlos Costa Almeida
Editor Científico da Revista Portuguesa de Cirurgia
e-mail: c.m.costa.almeida@gmail.com
A Cirurgia Geral e a Diabetes
A diabetes mellitus é uma doença eminentemente do foro médico, e ainda assim
tem uma ligação muito grande à cirurgia. Pode-se dizer que as duas estão presas
pelos pés, os pés dos diabéticos, e por eles os cirurgiões não podem ser
esquecidos no tratamento dessa patologia, nem dela se devem querer esquivar por
completo. Mais recentemente uma outra ligação da cirurgia geral à diabetes
surgiu, derivando do tratamento cirúrgico da obesidade mórbida, com melhoria
evidente do quadro da diabetes tipo 2 após intervenções cirúrgicas bariátricas.
Os cirurgiões gerais são sensíveis ao grave problema que o pé diabético
constitui, face à vivência activa que dele têm, na consulta externa dos
hospitais ou nos seus próprios consultórios, bem como nos longos períodos de
internamento cirúrgico a que estes doentes frequentemente são sujeitos. E têm
também a noção de que muitos destes casos poderiam ter sido evitados, ou
minimizados, tivesse havido profilaxia adequada, diagnóstico precoce e
tratamento eficaz atempado.
A primeira referência escrita que há na história da medicina feita à doença
conhecida hoje como diabetes mellitus está no papiro de Ebers, encontrado no
Egipto e dizendo respeito ao segundo milénio antes de Cristo, e nela se foca
sobretudo a poliúria que a caracteriza. Mas o nome diabetes veio-lhe muito mais
tarde, na Grécia antiga, no século II DC, posto por Areteu da Capadócia:
diabhthx significa "sifão" e alude claramente à polidipsia e poliúria
típicas da doença. No fim do século XVIII isolou-se a glicose na urina, e Frank
separou a diabetes vera (mellitus) da diabetes insípida (sem urina doce). No
século XIX os trabalhos fisiológicos experimentais de Claude Bernard
contribuíram muito para o estudo do metabolismo glucídico, e os conhecimentos
sobre a diabetes sacarina, ou açucarada, foram evoluindo, na base de uma doença
do metabolismo da glicose, envolvendo o pâncreas e tratando-se com medidas
dietéticas tendentes a baixar a ingestão de hidratos de carbono e de calorias.
Após a introdução terapêutica da insulina, a morte em coma diabético tornou-se
cada vez menos frequente, e a muito maior sobrevida destes doentes foi tornando
mais claras e importantes todas as complicações possíveis desta doença
metabólica. E tornou evidente que o seu tratamento tem de ir muito para além de
manter o mais equilibrada possível a taxa de glicémia.
Foi no final do século XVIII que pela primeira vez apareceram referidas queixas
dos membros inferiores no quadro semiológico da diabetes mellitus, com dores e
parestesias, e no fim do século seguinte reconhecia-se finalmente a gangrena
dos membros inferiores e a úlcera plantar nos doentes diabéticos como
"mais que uma coincidência". Em 1887 Pryce registou pela primeira vez
a associação entre úlceras dos pés, neuropatia e doença vascular na diabetes, e
na primeira metade do século XX a doença das artérias dos membros inferiores
supunha-se ser a causa única das lesões dos pés dos diabéticos, o que levava à
realização de amputações extensas mesmo em casos de pequenas zonas de gangrena.
Alguns cirurgiões relatavam ocasionalmente bons resultados com amputações mais
limitadas, mas não havia uma razão fisiopatológica clara para escolher umas ou
outras. Só a partir dos anos 50 se começou a dar importância às lesões
específicas dos pés dos diabéticos, no que foi depois chamado por Oakley de
"pé diabético". Em 1956 foi primariamente estabelecida a base
fisiopatológica deste quadro clínico, sendo-lhe atribuídas causas vasculares,
neurológicas e sépticas.
O componente macrovascular desta complicação da diabetes é aterosclerótico. Mas
a diabetes representa também a primeira causa de neuropatia periférica no
Ocidente, com diminuição das sensibilidades dolorosa, térmica e proprioceptiva,
o que constitui uma falta de protecção para o pé, passando assim despercebidos
traumatismos a que é sujeito, bem como as suas consequências. A não percepção
da própria dor isquémica, como pode suceder, é igualmente um senão importante.
Por outro lado, a neuropatia autonómica é um dos pilares da perda de
autorregulação vascular, com diminuição da capacidade de vasodilatação local e,
por isso, deficiente redistribuição de sangue para pontos do pé traumatizados
ou sob maior pressão. A propensão para a infecção nos diabéticos é conhecida, e
ela, juntamente com a deficiente irrigação distal, pela desadequada
autorregulação vascular local pós-traumática e pelas perturbações
microcirculatórias também presentes, conduzem às complicações sépticas do pé
diabético, muitas vezes agravadas e mantidas pela isquémia troncular.
São as infecções e a necrose que trazem os pés dos diabéticos até ao cirurgião
geral, tratando-se de uma patologia eminentemente multidisciplinar, cuja
vertente cirúrgica engloba também os ortopedistas e os cirurgiões vasculares.
As lesões estenótico-obliterantes dos troncos arteriais dos membros inferiores
ou mais proximais condicionam às vezes a necessidade de revascularização que,
quando possível, se pode fazer cirurgicamente ou por abordagem endovascular,
com angioplastia. Em casos em que essa revascularização falha, ou não é
possível, ainda se pode recorrer à simpaticectomia lombar, actualmente feita de
modo minimamente invasivo, mediante acesso endoscópico ao espaço
retroperitoneal. Os ortopedistas, pelo seu lado, encarregam-se das alterações
da arquitectura do pé e das lesões por apoio defeituoso, com intuito
terapêutico mas sobretudo profiláctico. No nosso Serviço, antes do Centro
Hospitalar de Coimbra agora do CHUC (Cirurgia C - Hospital Geral), temos uma
consulta específica de Pé Diabético Cirúrgico, em articulação com o Hospital de
Dia da Diabetes e integrando a consulta multidisciplinar de diabetes, onde os
doentes com lesões estabelecidas são seguidos e orientados num tratamento que
logo que possível passam a fazer no ambulatório da sua área de residência,
mantendo-se no entanto em contacto estreito connosco, com acesso fácil. A
preocupação sempre presente está em consonância com a Declaração de St.
Vincent, reafirmada pela nossa Direcção Geral de Saúde, de evitar todas as
amputações evitáveis em diabéticos.
Muitos dos doentes da Consulta Externa, e outros vindos ao Serviço de Urgência,
necessitam de internamento, até mesmo muito urgente, por lesões sépticas e/ou
necróticas, com ou sem lesões arteriais tronculares associadas, com as quais
também lidamos, e entre nós é no Serviço de Cirurgia Geral que ficam
internados. Este problema de internamento de pés diabéticos tem várias soluções
possíveis, mas é lógico e eficaz que, sendo fundamentalmente de natureza
cirúrgica, os doentes fiquem internados num serviço de cirurgia, com o apoio da
medicina interna/diabetologia. Vantajoso também tem sido termos a possibilidade
de resolver os problemas vasculares no mesmo serviço, aproveitando globalmente
toda a estrutura montada, com economia real de meios técnicos e humanos, por
mais intensa, completa e concomitante utilização dos que existem.
Também no nosso Serviço, e aproveitando do mesmo modo a capacidade global
instalada, existe uma unidade de tratamento cirúrgico da obesidade (UTCO),
dedicada à cirurgia bariátrica mas sem exclusividade dos seus elementos nesta
actividade
Este tipo de cirurgia derivou em grande medida da cirurgia geral nas áreas da
cirurgia gástrica e da cirurgia intestinal por razões variadas, com a
constatação do emagrecimento subsequente verificado. Têm sido progressivamente
estabelecidas intervenções cirúrgicas específicas para obter perda de peso, com
ampla aplicação da cirurgia laparoscópica, e esse tornou-se o mais eficaz
tratamento actual da obesidade mórbida (índice de massa corporal igual ou
superior a 40, ou 35 com comorbilidades, incluindo a diabetes tipo 2). Do
adequado e criterioso seguimento dos doentes operados tornou-se evidente o
efeito benéfico no equilíbrio da glicémia e na síndroma metabólica dos
diabéticos obesos operados, ainda antes de começarem a perder peso.
E foi esta, assim, mais uma ligação estabelecida entre a cirurgia geral e a
diabetes, através da cirurgia da obesidade, englobada na chamada cirurgia
metabólica. A qual integra o que se pode denominar de cirurgia fisiológica,
para a qual a cirurgia, inicialmente apenas mutiladora, de ressecção, evoluiu,
e em que se induzem alterações anatómicas para se recuperar uma função perdida
ou defeituosa, ou em que se obtém um efeito metabólico, o qual pode até vir a
ser o objectivo principal, quiçá único, da cirurgia. As intervenções
bariátricas, com os seus resultados, têm servido também para melhorar os nossos
conhecimentos de fisiologia e de fisiopatologia, mormente da diabetes mellitus,
pelo menos do tipo 2, e começam a surgir como uma verdadeira alternativa
terapêutica para esta doença.
A cirurgia geral tem, pois, ligações chegadas à diabetes, algumas delas
inesperadas, e faz parte integrante do seu tratamento. A verdade é que a
cirurgia geral, que deu origem às especialidades cirúrgicas, é uma fonte
inesgotável e transversal de novos gestos cirúrgicos, um terreno comum onde se
translacionam técnicas e experiências, de uns campos para outros, num convívio
verdadeiramente criador e promotor de mudança e progresso, ao mesmo tempo que
permite tirar o máximo rendimento dos meios disponíveis e da capacidade
instalada em cada hospital.