Diverticulite aguda cólica: qual o valor da ecografia abdominal?
INTRODUÇÃO
A diverticulose cólica afecta 30% da população com 60 anos de idade e 60% das
pessoas com idade superior a 80 anos nos países ocidentais1. Cerca de 10 a 25%
dos portadores de diverticulose cólica desenvolverão um episódio de inflamação
aguda - diverticulite aguda cólica (DAC)1,3,4. Embora os divertículos se
possam desenvolver em todo o intestino grosso, o cólon sigmóide é o segmento
mais frequentemente envolvido. Diverticulites agudas no cólon direito são pouco
comuns.
Os exames complementares de diagnóstico, em particular os imagiológicos, são
muito importantes para o diagnóstico da DAC. A tomografia computorizada
abdominal (TC) tem documentadas sensibilidade e especificidade próximas dos
100% no diagnóstico de DAC, motivo pelo qual é considerada actualmente o exame
gold standardpara o diagnóstico e caracterização desta
patologia2,5,6,7,8,18,22. A TC permite uma melhor avaliação de toda a cavidade
abdominal e tem uma capacidade superior à ecografia abdominal (EA) para
identificar diagnósticos diferenciais6,7. No entanto apresenta custos elevados,
não está sempre disponível e expõe o doente a radiações. Por isso a EA é com
frequência o primeiro exame complementar realizado nos doentes com suspeita de
DAC7. A EA fornece informações relativas à localização da doença, ao
envolvimento da parede intestinal e à presença de manifestações extraparietais
(ex: abcessos, fístulas). Contudo, apresenta uma sensibilidade e especificidade
inferiores às da TC, especialmente nas manifestações extraparietais10,18,20,22.
A EA tem dois grandes inconvenientes: é operador-dependente e está condicionada
pelas características do doente (avaliação difícil em doentes obesos ou com
distensão gasosa de ansas intestinais)20. Ainda assim, alguns autores defendem
a EA como uma alternativa válida na avaliação dos doentes com suspeita de DAC
pelo seu baixo custo, fácil acessibilidade e ausência de radiações7,12,17,20.
O objectivo do estudo retrospectivo presente foi investigar o valor da EA para
diagnóstico e caracterização da DAC assim como a sua eficácia na detecção de
doença complicada.
MATERIAL E MÉTODOS
Conduzimos um estudo retrospectivo de 153 doentes admitidos no nosso Serviço
entre Janeiro de 2007 e Dezembro de 2010 por suspeita de Diverticulite Aguda
Cólica (DAC). O diagnóstico foi estabelecido por um cirurgião sénior e baseou-
se em dados clínicos, analíticos e imagiológicos.
A EA foi realizada em todos os doentes, usando sondas de tempo real com
transductores matriz curvos de 3,5 MHz e 5 MHz. As imagens foram gravadas num
programa de processamento de imagem e foi redigido um relatório pelo
imagiologista. Nas EA realizadas avaliou-se a presença de espessamento parietal
do cólon, a extensão do segmento cólico envolvido, a visualização eventual de
divertículos e a presença de sinais ecográficos de alterações inflamatórias
pericólicas ou de abcessos. Consideraram-se sinais positivos de DAC: a
identificação de um segmento cólico com espessamento parietal hipoecogénico,
inflamação da gordura pericólica e dor abdominal na compressão instrumental.
O diagnóstico definitivo de DAC foi estabelecido mediante a realização da TC
(no Serviço de Urgência ou durante o internamento) e colonoscopia (realizada 8
semanas após o episódio agudo). Os achados em TC que confirmaram o diagnóstico
foram a presença de divertículos associada a espessamento parietal cólico (>
4mm) e a inflamação da gordura pericólica. A colonoscopia permitiu confirmar a
existência de diverticulose cólica e excluir a presença de lesões endoluminais,
em particular neoplasias cólicas.
Dos 153 doentes, 7 foram excluídos (em 3 casos não foi realizada EA na admissão
e em 4 casos não foi possível confirmar ou excluir o diagnóstico por não terem
realizado TC abdominal ou colonoscopia). Dos 146 doentes incluídos no estudo,
84 (57,5%) eram do sexo masculino e 62 (42,5%) eram do sexo feminino, com uma
idade média de 58,7 anos (faixa etária: 27-95 anos). O Índice de Masssa
Corporal Médio foi de 32,3 (min: 19; máx: 42). Tratou-se de um primeiro
episódio de DAC em 104 casos (84,5%) e de uma recorrência da doença em 19 casos
(15,5%). O tempo de internamento médio foi de 7,7 dias (min: 2; máx: 38). A
maioria dos doentes (131 casos - 89,7%) foi submetido a tratamento
conservador e em apenas 15 casos (10,3%) foi necessária uma intervenção
cirúrgica.
Os doentes foram divididos em dois grupos de acordo com a gravidade da
diverticulite: não complicada ou complicada. Considerou-se como DAC_não
complicadaa presença de dor abdominal localizada no quadrante inferior esquerdo
associada a leucocitose, elevação da proteína C reactiva e alterações
imagiológicas sugestivas de DAC reveladas pela EA ou pela TC. Definiu-se como
DAC_complicadaa presença associada de abcesso, perfuração, estenose ou fístula
documentadas na EA, na TC ou na intervenção cirúrgica. Os doentes com DAC
complicada foram estratificados aplicando a classificação de Hinchey.
Para determinar a acuidade diagnóstica da EA considerando o diagnóstico final
de diverticulite aguda cólica foram determinadas as seguintes fórmulas
estatísticas:
• Sensibilidade = Verdadeiros Positivos × 100 / (Verdadeiros Positivos + Falsos
Negativos);
• Especificidade = Verdadeiros Negativos × 100 / (Verdadeiros Negativos +
Falsos Positivos);
• Valor Preditivo Positivo = Verdadeiros Positivos × 100 / (Verdadeiros
Positivos + Falsos Positivos);
• Valor Preditivo Negativo = Verdadeiros Negativos × 100 / (Verdadeiros
Negativos + Falsos Negativos);
• Eficiência Global = (Verdadeiros Positivos + Verdadeiros Negativos) × 100 /
(Verdadeiros Positivos + Verdadeiros Negativos + Falsos Positivos + Falsos
Negativos).
Na análise dos valores estatísticos acima descritos, os autores consideraram
resultados [0-65%] fracos, [65-80%] moderados, [80-90%] bons e [90-100%]
excelentes.
Para avaliar a concordância dos achados verificados na EA, em relação com o
diagnóstico definitivo de DAC (determinada pelos achados verificados na TC
abdominal e colonoscopia), calculou-se o Índice de Kappa de Cohen,
interpretando-o segundo a escala de Fleiss (quadro_1).As diferenças foram
consideradas significativas para um valor de p < 0.05.
RESULTADOS
Dos 146 doentes incluídos estabeleceu-se o diagnóstico definitivo de DAC em 123
casos (84,2%). O cólon sigmóide foi o segmento cólico mais envolvido,
verificando-se apenas um caso de DAC no cólon direito. A DAC foi classificada
como "não complicada" em 97 casos (78,9%) e
"complicada" em 26 casos
(21,1%). O diagnóstico de DAC não foi confirmado em 23 casos (15,8%) e
estabeleceu-se um diagnóstico alternativo em 5 casos - 3 doentes com
carcinoma do cólon, 1 doente com colite isquémica e 1 doente com pielonefrite
aguda. Aos restantes 18 doentes atribuiu-se o diagnóstico de "dor
abdominal inespecífica", que incluiu a síndrome de cólon irritável,
patologia intestinal funcional ou obstipação. (esquema_1)
A EA foi sugestiva de DAC em 100 casos, contudo apenas se confirmou o
diagnóstico (por TC e colonoscopia) em 88 casos (verdadeiros positivos). Os
achados ecográficos mais comuns nos 88 casos confirmados foram
"espessamento parietal do cólon"(n = 68), "espessamento
parietal do cólon e derrame peritoneal"(n = 11) e a "presença de
abcesso abdominal e espessamento parietal do cólon" (n = 9). (quadro_2) A
EA mostrou achados sugestivos de DAC em 12 pacientes (8 casos com
"espessamento parietal do cólon" e 4 casos com "espessamento
parietal do cólon e derrame peritoneal") apesar da TC e da colonoscopia
não mostrarem alterações compatíveis com DAC (falsos positivos).
Em 46 casos a EA não mostrou alterações contudo em 35 destes casos acabou por
se estabelecer o diagnóstico de DAC através dos achados encontrados na TC e
colonoscopia (falsos negativos). (quadro_3)
De acordo com nossos dados a EA revelou uma sensibilidade de 71,5% e
especificidade de 47,8% no diagnóstico de DAC, com um valor preditivo positivo
de 88,0% e um valor preditivo negativo de 23,9%. A eficiência global da EA para
o diagnóstico de DAC foi de 67,8%. O Índice de Kappa de Cohen foi de 0.14 (p =
0.05) o que determina uma concordância fraca.
Dos 26 casos de DAC complicada, a EA identificou "espessamento parietal+
abcesso abdominal" em 9 casos. Em todos eles o diagnóstico de DAC
complicada foi confirmado por TC abdominal ou per-operatoriamente (3 casos), o
que justifica a ausência de falsos positivos. Contudo verificaram-se 17 casos
de DAC complicada em que a ecografia não mostrou alterações sugestivas disso
(falsos negativos). (quadro_4) Estes resultados determinaram uma sensibilidade
de 34,6%, uma especificidade de 100%, um valor preditivo positivo de 100% e
valor preditivo negativo de 85% da EA na diferenciação entre as formas simples
e complicada da DAC. O Índice de Kappa de Cohen, nestas circunstâncias, foi de
0,3 (p <0.05), o que determina uma concordância fraca.
DISCUSSÃO
A diverticulose cólica é uma entidade clínica muito frequente, sobretudo na
população idosa. Com o envelhecimento da população são cada vez mais os
episódios de diverticulite aguda cólica encontrados nos Serviços de Urgência.
Embora a TC seja actualmente considerada o meio auxiliar de diagnóstico gold
standardpara avaliar DAC2,5,6,7,8,9, muitos autores consideram que a EA deve
ser o primeiro exame de imagem a realizar em pacientes com dor abdominal
aguda10,12,13,16.
Alguns estudos publicados que defendem a TC abdominal como o exame de
referência no diagnóstico de DAC apresentam dados pouco consistentes, sobretudo
devido à falta de metodologias adequadas10,12. Apesar disso, a maioria dos
estudos defende a superioridade da TC sobre a EA por apresentar sensibilidade e
especificidade superiores (nem sempre com diferenças com significado
estatístico10) e por apresentar melhor acuidade na identificação de
diagnósticos diferenciais14,15. Por outro lado, a EA apresenta limitações por
ser um exame operador-dependente e por depender de condições relacionadas com o
doente (biótipo, distensão intestinal gasosa)20. Também se defende o uso da TC
de início em pacientes cujo estado clínico é grave, uma vez que as imagens da
TC são mais auxiliadoras aquando do planeamento de intervenções radiológicas ou
cirúrgicas, e ainda podem ser re-avaliadas a qualquer momento pelos
especialistas envolvidos no tratamento10,11.
Ainda assim, a EA tem um valor inegável quando se considera que não há
exposição a radiação, que tem uma maior disponibilidade e um baixo custo18,19.
Este último argumento pode ser muito importante no actual contexto económico
desde que não se comprometa a adequada avaliação e orientação dos doentes. Por
isso, o reconhecimento do valor dos exames complementares disponíveis através
da análise da nossa própria experiência poderá ser a melhor estratégia para
optimizar os recursos disponíveis.
Uma meta-análise10 publicada em 2008 comparou a acuidade diagnóstica da TC com
a da EA no diagnóstico DAC e não detectou diferenças significativas entre os
dois exames. Os dados analisados mostraram que tanto a EA como a TC podem ser
usadas como ferramenta diagnóstica inicial na avaliação de pacientes com
suspeita de DAC.
A sensibilidade geral reportada na literatura da EA no diagnóstico de DAC varia
entre 80 e 97%, e a especificidade varia entre 82 e 95%10,12. Os nossos
resultados são diferentes aos descritos na literatura, ao revelarem menor
sensibilidade (71.5%) e especificidade (47,8%). Na origem destas diferenças
poderão estar vários motivos. Por um lado os doentes obesos dificultam a
avaliação abdominal por ecografia e os indivíduos envolvidos no estudo
apresentavam um índice de massa corporal médio elevado. A distensão abdominal,
muito frequentemente observada nestes episódios agudos, também compromete a
avaliação ecográfica. Outra condicionante poderá estar relacionada com o facto
de os exames serem realizados e relatados por imagiologistas menos experientes:
estudos demonstram que a sensibilidade diminui para 50% quando o operador fez
menos de 500 EA em caso de suspeita de DAC19.
A especificidade determinada no nosso estudo é francamente inferior à
encontrada noutros estudos, facto que resulta de existência de 12 casos de
ecografias com alterações sugestivas de DAC que não se confirmaram
posteriormente - falsos positivos. Em quatro desses casos, o diagnóstico
estabelecido - 3 casos de neoplasia do colon e 1 caso de colite isquémica
- permite compreender o erro diagnóstico. Nos restantes casos, como não
foi possível estabelecer um diagnóstico definitivo claro, também não
encontramos uma justificação clara para os achados ecográficos (falsos
positivos) verificados.
O valor de VPP identificado nos nossos casos (88,0%) está de acordo com o
relatado noutros estudos que apresentam variações entre 57% e 98%10,12. Porém o
VPN que encontramos no nosso trabalho foi significativamente menor (23,9%) ao
de outros autores que apresentam o VPN entre 39% e 99%10,12. Estes resultados,
em especial o VPN, resultam do número elevado de falsos negativos verificados
na nossa casuística. A concordância dos achados verificados na EA em relação
com o diagnóstico definitivo de DAC, determinada pelo Índice Kappa de Cohen,
foi fraca.
Uma vez estabelecido o diagnóstico de DAC, há autores que defendem que a EA
poderá desempenhar um importante papel na avaliação das complicações16. No
entanto, nos casos de DAC complicada a maioria dos estudos demonstram uma
superioridade da TC em relação à EA10,21. Os nossos resultados coincidem com os
de outros estudos em relação a este ponto, mostrando uma fraca sensibilidade
(34,6%) da EA no diagnóstico de DAC complicada limitando assim o seu uso nestas
circunstâncias.
CONCLUSÃO
A ecografia abdominal apresenta uma especificidade e um valor preditivo
negativo fracos, o que compromete o seu valor no diagnóstico de diverticulite
aguda do cólon, especialmente na sua forma complicada. No entanto, a
sensibilidade moderada (71,5%) verificada conjuntamente com as suas vantagens
(baixo custo, sem exposição a radiação e maior disponibilidade), fazem da
ecografia abdominal uma escolha a considerar na abordagem imagiológica inicial
da dor abdominal aguda suspeita de diverticulite aguda.