Evisceração vaginal com isquémia intestinal sem antecedentes de cirurgia
pélvica: caso clínico e breve revisão da literatura
INTRODUÇÃO
A evisceração vaginal define-se como a extrusão de estruturas intraperitoneais
através de um defeito da parede da vagina e foi inicialmente descrito em 1864
por Hyernaux1. É uma situação muito rara, encontrando-se pouco mais de 100
casos publicados na literatura em língua inglesa no último século e a grande
maioria associada a cirurgia pélvica prévia2,3. Num artigo de 2009 em que se
realizou uma pesquisa em língua inglesa na MEDLINE®, são referidos apenas 12
casos de evisceração vaginal sem antecedentes de cirurgia pélvica2.
A evisceração vaginal é uma emergência cirúrgica com uma taxa de mortalidade
estimada em 5,6%, sendo sempre uma experiência aterradora para a doente e
inesquecível para o cirurgião1,4.
Este artigo relata um novo caso clínico de evisceração vaginal sem antecedentes
de cirurgia pélvica, fazendo-se uma breve revisão bibliográfica sobre o tema.
CASO CLÍNICO
Uma doente de 72 anos de idade recorreu ao Serviço de Urgência do Hospital de
Portalegre referindo dor abdominopélvica e saída de vísceras pela vagina desde
há cerca de 12 horas, após redução manual de histerocistocelo. Negou outros
factores traumáticos associados ou quaisquer antecedentes cirúrgicos, referindo
história obstétrica de 2 partos eutócicos. Tinha antecedentes pessoais de
Diabetes mellitustipo 2,hipertensão arterial e dislipidémia.
Na anamnese, a doente referiu queixas sugestivas de histerocistocelo com
recurso frequente a redução manual do prolapso após as micções e dejecções, sem
nunca ter procurado orientação médica em relação a esta situação. Tratava-se de
uma doente com biótipo normolíneo, apresentando-se consciente e orientada,
apirética e hemodinamicamente estável. O exame físico revelou prolapso vaginal
completo e parcial do útero, com extrusão e estrangulamento de ansas de
intestino delgado através de um defeito na cúpula e parede posterior da vagina
(fig._1).
Iniciou-se fluidoterapia e antibioterapia de largo espectro, confirmou-se a
vacinação antitetânica e envolveram-se as ansas intestinais exteriorizadas em
compressas humedecidas. A doente foi submetida a cirurgia urgente com abordagem
combinada por via vaginal e laparotomia mediana infraumbilical. Procedeu-se à
redução das ansas intestinais para a cavidade abdominal (parecendo estar em
causa um enterocelo), identificando-se um defeito na cúpula e parede posterior
da vagina com cerca de 4 cm (fig._2A) que se corrigiu com desbridamento dos
bordos e sutura contínua em dois planos (fig._2C). Houve necessidade de
ressecar cerca de 110 cm de intestino isquémico não viável, incluindo o íleo
terminal e cego (fig._2B), com anastomose ileocólica latero-lateral mecânica.
Realizou-se seguidamente a histeropexia (com pontos entre a face posterior do
corpo do útero e o promontório) e o encerramento do fundo de saco de Douglas
com "cerclage" de fio absorvível.
A doente evoluiu favoravelmente no pós-operatório, tendo alta ao 10º dia. Após
mais de 4 anos de seguimento em consulta, a doente mantém-se sem queixas
significativas e sem recidiva do prolapso pélvico.
DISCUSSÃO
A evisceração vaginal é mais frequente em mulheres pós-menopáusicas, cuja
parede vaginal é tipicamente mais fina, hipovascularizada e atrófica, sendo
mais susceptível à rotura espontânea ou provocada por aumento da pressão
abdominal. A localização mais frequente da rotura da parede vaginal nestas
doentes é no fórnix posterior. Kowalski et alreviram 60 casos de evisceração
vaginal após cirurgia ginecológica por via vaginal e abdominal e descrevem a
existência de uma tríade frequente de hipoestrogenismo, cirurgia vaginal prévia
(73% dos casos) e distúrbios do pavimento pélvico3. Os mesmos autores descrevem
a existência de enterocelo associado em 63% dos casos, situação que origina
maior tensão sobre a parede atrófica da vagina e aumenta o risco de rotura.
Estes factores, sendo de natureza crónica, predispõem para o acontecimento
agudo da evisceração. No caso clínico apresentado, a atrofia vaginal, o
distúrbio evidente do pavimento pélvico e o traumatismo frequente pelas
reduções manuais do histerocistocelo, estiveram certamente na origem da
evisceração.
Nas mulheres pré-menopáusicas, a evisceração vaginal é geralmente de origem
traumática, nomeadamente durante o coito, instrumentação obstétrica ou por
corpos estranhos. Para além dos factores de risco já referidos, outros têm sido
associados à evisceração vaginal como as neoplasias da vagina, a obesidade, o
alcoolismo crónico e o uso prolongado de esteróides1,2. Em relação à rotura da
cúpula vaginal após histerectomia vaginal ou abdominal, vários factores de
risco têm sido apontados como a infecção ou hematoma no pós-operatório,
corticoterapia, radioterapia, trauma, coito antes da cicatrização completa ou
má técnica cirúrgica, reforçando-se a importância da sutura e suspensão
adequadas da cúpula vaginal.
O intestino delgado, nomeadamente o íleo terminal, é o órgão mais
frequentemente eviscerado, seguido do grande epíplon, sendo de extrema
importância a abordagem cirúrgica precoce para preservação do intestino viável.
A abordagem das doentes deve incluir a estabilização hemodinâmica, preservação
do intestino eviscerado com compressas humedecidas em soro fisiológico morno,
administração de antibióticos de largo espectro com cobertura da flora
gastrointestinal, administração da vacina anti-tetânica quando indicado e a
reparação cirúrgica imediata1.
A abordagem cirúrgica dos casos de evisceração vaginal pode ser realizada por
via vaginal, abdominal pura (laparotómica ou laparoscópica) ou combinação de
ambas, dependendo da situação em causa. Quando há evisceração de intestino
delgado, recomenda-se a realização de laparotomia (ou laparoscopia, consoante a
disponibilidade de recursos e experiência do cirurgião) para inspecção de todo
o intestino, com ressecção de eventuais segmentos inviáveis e reparação do
defeito vaginal e do pavimento pélvico. A abordagem complementar por via
vaginal facilita a redução da evisceração com leve tracção e manipulação
bimanuais e a reparação do defeito, como ilustra o caso clínico apresentado.
Nestes casos, não se deve tentar a redução manual ou postural por via vaginal
exclusiva, havendo o sério risco de segmentos necrosados de intestino não serem
detectados e tratados atempadamente com aumento significativo das taxas de
morbilidade e mortalidade5.
Em relação às técnicas de reparação do pavimento pélvico nestas situações há
alguns aspectos controversos, havendo autores que defendem uma reparação tardia
após cicatrização dos tecidos1. A aplicação de próteses está, a nosso ver,
contraindicada quando há necrose intestinal com necessidade de ressecção e
anastomose. Para além do encerramento do orifício vaginal, várias técnicas têm
sido aplicadas e descritas na literatura, como sejam a colpoclese, a
colpectomia, a sacropexia, a obliteração do fundo de saco de Douglas, a
aplicação de retalhos de grande epíplon ou ainda a utilização de material
biológico para reforço do pavimento pélvico. Em alguns casos, poderá ser
considerada a realização da histerectomia. No caso clínico por nós apresentado,
a histeropexia sem utilização de prótese, associada ao encerramento do fundo de
saco de Douglas, revelou-se uma técnica simples, rápida e eficaz na prevenção
da recidiva do prolapso pélvico.
A evisceração vaginal de intestino delgado é uma situação muito rara mas
potencialmente letal, exigindo uma correcção cirúrgica imediata e
preferencialmente combinando as abordagens vaginal e abdominal. Esta situação
deve ser considerada e prevenida, sobretudo em doentes pós-menopáusicas com
história de cirurgia pélvica e/ou prolapso pélvico crónico.