Rastreio de trombofilia hereditária no contexto de trombose venosa profunda
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ACO Anticoncepcionais orais
AD Autossómica dominante
AT Antitrombina
FV Factor V
FVa Factor V activado
FVIII Factor VIII
FIX Factor IX
FVL Factor V Leiden
HC Homocisteína
HHC Hiperhomocisteínemia
MTHFR Metilenotetrahidrofolato Reductase
PC Proteína C
PS Proteína S
RPCa Resistência à Proteína C activada
TEP Tromboembolismo Pulmonar
TEV Tromboembolismo Venoso
TV Trombose Venosa
TVP Trombose Venosa Profunda
INTRODUÇÃO
A trombose venosa (TV) é uma doença frequente com uma incidência anual de 1 a 3
em 1000 por ano[1]. A sua frequência aumenta com a idade, atingindo 1% por ano
nos idosos; no entanto esta patologia representa a maior causa de morbilidade e
mortalidade durante a gravidez e o parto, e é uma causa frequente de doença em
mulheres jovens que tomam contraceptivos orais[1]. Pode ocorrer como trombose
venosa profunda (TVP), frequentemente nas veias das pernas (nomeadamente a veia
femoral ou a veia poplítea) ou nas veias pélvicas, ou como tromboembolismo
pulmonar (TEP).
As principais complicações da TV são uma síndrome pós-trombótica incapacitante
(20% dos indivíduos com TV) e morte súbita devido a TEP (1 a 2% dos indivíduos
com TV)[2].
A TVP dos membros inferiores é uma situação médica frequente e importante que
se manifesta em indivíduos com factores de risco conhecidos ou desconhecidos.
Mais de um milhão de casos de TVP são diagnosticados nos E.U.A anualmente,
podendo originar até 20000 mortes/ano por TEP.[3]
A etiopatogenia da TV é multifactorial incluindo factores adquiridos assim como
factores genéticos. Os factores de risco adquiridos para TV incluem
imobilização, cirurgias major e ortopédicas, traumatismo, gravidez, puerpério,
síndrome antifosfolipídeo, neoplasia e estrogenoterapia, entre outros[2].
Resultados de vários estudos genéticos estabeleceram que existem dois tipos de
defeitos genéticos que podem causar TV: mutações que resultam em deficiência
dos inibidores naturais da coagulação e mutações que levam ao aumento do nível/
função dos factores da coagulação[1]. O primeiro grupo de mutações aumenta o
risco para trombose quando afecta os inibidores naturais da coagulação,
nomeadamente a antitrombina (AT), a proteína C (PC) e a proteína S (PS)[4,5,6].
O segundo grupo de mutações afecta o factor V (FV), resultando num FV mutante
conhecido como Factor V Leiden (FVL), com aumento da resistência à inactivação
feita pela proteína C, e a protrombina (PT), levando a um aumento dos níveis
basais de PT (mutação G20210A do gene da PT)[1]. Estas duas mutações são as
mais frequentes entre a população caucasiana e têm prevalência quase nula entre
a população de raça negra e asiática[7]. As diversas trombofilias hereditárias
serão descritas em detalhe adiante.
No entanto, estas alterações muitas vezes não são investigadas ou documentadas.
Esta situação pode acontecer devido ao facto de a trombose ser frequentemente
resultado de uma combinação de causas, factores de risco e condições
predisponentes; assim, um doente portador do factor V Leiden (FVL) pode ser
assintomático até ser submetido a uma cirurgia e, posteriormente a um longo
período de imobilização, altura em que desenvolve uma TVP que, aparentemente,
tem uma causa óbvia, não se prosseguindo a avaliação do doente com um estudo de
trombofilia[8].
Para além disso, só recentemente foram identificadas as mutações do FVL e a
mutação G20210A do gene da PT ' 1993 e 1996, respectivamente[9,10].
Assim, apesar dos avanços no conhecimento sobre os factores de risco
hereditários que predispõem à TV, ainda não existe consenso sobre quem deve ser
estudado para a presença destas anomalias.
O objectivo deste trabalho é referir e discutir as situações em que se deve
rastrear a presença de trombofilia hereditária no contexto de um episódio de
TVP. As recomendações e evidências descritas ao longo deste trabalho são
baseadas nas guidelines lançadas em Janeiro de 2010 pelo British Committee for
Standards in Haematology, tal como sumarizado no | QUADRO 1 |[11].
| QUADRO 1 | Graus de evidência e qualidade da informação[11]
TROMBOFILIA HEREDITÁRIA (DEFINIÇÃO E DESCRIÇÃO)
Trombofilia hereditária é o conjunto de condições genéticas que aumentam o
risco de doença tromboembólica e que podem ser causadas por insuficiente
inibição da cascata de coagulação, quer por mutações que resultam em
deficiência dos inibidores naturais da coagulação, quer por mutações que levam
ao aumento do nível/função dos factores da coagulação[1]. O | QUADRO 2 |
[12]pretende comparar a prevalência de trombofilia hereditária na população
geral e em doentes com tromboembolismo venoso (TEV).
As principais trombofilias hereditárias serão abordadas de seguida.
| QUADRO_2 |Prevalência de trombofilia hereditária[12]
Resistência à proteína Cactivada e Factor V Leiden
A resistência à proteína C activada (RPCa) é a causa mais frequente de
trombofilia hereditária. Resulta, na maior parte das vezes, de uma mutação
pontual no gene do FV (mutação R506Q) com substituição da glutamina pela
arginina na posição 506 do factor V activado (FVa). O FVa mutante (FV R506Q),
comummente designado por FV Leiden (FVL) é resistente à inactivação pela PC
activada porque perde um dos locais de acção proteolítica desta enzima. O FVL é
o factor de risco para trombose mais prevalente na população caucasiana (3-7%);
no entanto é raro nas populações nativas de África ou da Ásia[12]. Nos
heterozigóticos representa um risco 3-8 vezes superior ao da população geral
para TVP, enquanto os homozigóticos têm um risco cerca de 80 vezes superior[8].
Este risco aumenta significativamente quando estão presentes outros factores de
risco como a gravidez, cirurgia, anticoncepcionais orais (ACO) ou outros[13].
Importa referir que a RPCa pode ocorrer, embora raramente, na ausência da
mutação do FVL, devido a outros factores genéticos (FV Hong Kong R306G e FV
Cambridge R306T) ou mesmo de forma não hereditária, mas associada a factores
adquiridos, como por exemplo utilização de ACO[12].
Mutação G20210A do gene da protrombina
Descrita pela primeira vez em 1996, esta mutação consiste na substituição da
guanina pela adenina na posição 20210 do gene da PT, numa região não transcrita
deste gene[10]. Essa mutação aumenta os níveis de protrombina em circulação e,
como a protrombina é um precursor da trombina, ocorrerá um aumento secundário
nos níveis de trombina e consequentemente um estado de hipercoagulabilidade. A
prevalência desta mutação é de 0,7-4% na população geral e resulta num risco
aumentado em cerca de 2-3 vezes para o desenvolvimento de TV [8,12,14,15]. Tal
como o FVL, é rara nos indivíduos de raça negra e nos asiáticos.
Deficiência de AT, PC e PS
Já foram descritas inúmeras mutações, de transmissão autossómica dominante
(AD), em doentes com défice de PC, PS ou AT.
A AT é um anticoagulante natural que inibe virtualmente todas as proteases da
coagulação, mas com maior potência o factor Xa e a trombina (IIa).
Estão definidos dois tipos de deficiência de AT [16,17]: o tipo I, deficiência
de AT clássica, é a mais comum e consiste numa deficiência quantitativa com
níveis de AT no plasma inferiores a metade do valor normal. Na deficiência de
AT tipo II, os níveis plasmáticos de AT estão dentro dos limites da
normalidade, mas a actividade da AT está diminuída devido à produção de uma
variante do normal. A sua deficiência tem uma prevalência de 0,02% na população
geral, e manifesta-se geralmente por TVP dos membros inferiores, EP ou trombose
das veias mesentéricas, em doentes com menos de 35 anos e sem outros factores
de risco. A deficiência de AT é a trombofilia hereditária mais grave e acarreta
um risco relativo para TV de 8,1 e uma incidência anual de trombose de 0,87-
1,6% em indivíduos heterozigóticos, a mais elevada entre todas as trombofilias
hereditárias[7,8].
A PC actua inactivando o FVa e o factor VIIIa; necessita da PS como cofactor e
é activada pela trombina quando esta se liga à trombomodulina endotelial. A PS
existe em duas formas: circula livre no plasma, com acção anticoagulante como
cofactor da PC ou ligada à proteína de fase aguda C4b-binding protein, não
tendo, nesta forma, actividade anticoagulante. No entanto as funções da PS não
se limitam à de cofactor da PC, a PS livre também inibe directamente os
complexos protrombinase e tenase. A síntese de PS e de PC dá-se no fígado e
depende da vitamina K.
Existem dois tipos de deficiência da PC. No tipo I há uma deficiência
quantitativa de PC no sangue, sendo esta a forma mais comum de deficiência da
PC, resultando de diminuição da síntese ou da estabilidade da PC. No tipo II, a
actividade da PC está mais reduzida que os níveis de antigénio o que revela a
ocorrência de síntese de moléculas de PC anormais. O gene da PC (PROC) pode
sofrer inúmeras mutações (são hoje conhecidas 160) com perda de função que
levam ao fenótipo de deficiência de PC[12].
Quanto à deficiência da PS, estão descritos três tipos. No tipo I, aparecem
diminuídos os níveis de PS total (deficiência quantitativa). No tipo II, a
actividade da PS como cofactor está diminuída, mas existem valores normais de
PS total e livre (deficiência qualitativa), sendo um distúrbio muito raro e
difícil de diagnosticar. No tipo III estão diminuídos os níveis de PS livre,
mas normais os níveis de PS total (deficiência quantitativa de PS livre).
Os défices de PC e de PS têm prevalências de cerca de 0,2-0,4% e de 0,03-0,13%,
respectivamente, na população geral[12], e manifestam-se geralmente da mesma
forma: TVP dos membros inferiores, TV mesentéricas, TV renais, tromboses dos
seios venosos cerebrais ou tromboflebites superficiais, em indivíduos com menos
de 25-30 anos[18]. A incidência anual de trombose é de 0,43-0,72% e de 0,5-
1,65% para os portadores de défices de PC e PS, respectivamente[7]. Os
portadores são quase sempre heterozigóticos. Nos portadores homozigóticos, a
deficiência apresenta-se precocemente como purpura fulminans neonatal ou
através de TV maciças, e é geralmente fatal. De referir ainda que a diminuição
dos níveis de PC e de PS pode ter uma causa adquirida[18].
Polimorfismo C677T do gene da metilenotetrahidrofolato reductase em homozigotia
ou heterozigotia e hiperhomocisteínemia
A Homocisteína (HC) é um aminoácido com um grupo sulfidril, derivado da
metionina, e é metabolizado através de uma reacção de remetilação ou de trans-
sulfuração. As formas adquiridas de hiperhomocisteínemia (HHC) causam elevação
leve a moderada dos níveis de HC e podem ser causadas por, entre outras: baixa
ingestão de piridoxina, cobalamina e folato. Elas podem produzir HHC ao
interagir com factores genéticos como o polimorfismo C677T do gene da
metilenotetrahidrofolato reductase (MTHFR), enzima importante no metabolismo da
HC, conhecido por variante termolábil (MTHFR C677T), o que leva a uma redução
de mais de 50% da actividade da enzima.
A prevalência, na população caucasiana, deste genótipo em heterozigotia é de
cerca de 34-37% e em homozigotia de 13,7%[19], sendo semelhante nos indivíduos
com eventos tromboembólicos. Assim, a sua associação com um risco aumentado
para o desenvolvimento de TV é ainda controversa e não parece muito útil o
rastreio deste polimorfismo como factor de risco para eventos tromboembólicos
[7,8,20].
Níveis elevados de factores VIII, IX, XI
A presença de níveis basais elevados de factor VIII (FVIII), assim como de
outros factores, tem provavelmente uma causa genética, embora ainda não tenha
sido identificado um polimorfismo ou mutação em concreto[8], e está associada a
um risco aumentado para o desenvolvimento de TV.
Tem uma elevada prevalência na população geral (cerca de 11% tem níveis
superiores a 150 UI/dL) sendo que o risco relativo para o desenvolvimento de TV
é cerca de 5 vezes superior ao daqueles que têm níveis inferiores a 100UI/dL, e
aumenta em 10% por cada 10UI/dL de aumento nos níveis de FVIII[21].
Importa salientar que em alguns laboratórios as baterias de testes para
trombofilia apenas incluem os níveis de FVIII e não os dos factores IX e XI
(FIX e FXI)[12].
TROMBOFILIA HEREDITÁRIA COMO FACTOR DE RISCO PARA TVP
O impacto de um factor de risco é uma função da sua prevalência e risco
relativo. Das várias trombofilias hereditárias descritas, as que foram
relatadas como factor de risco para TV foram, por ordem cronológica, a
deficiência de AT (4), deficiência de PC[5] e PS[6], FVL, mutação G20210A do
gene da PT[1] e os níveis elevados de FVIII[21].
As deficiências de PC, PS e AT são raras, mesmo entre os indivíduos com
trombose. Uma vez que estas deficiências são raras, o risco não é facil de
avaliar. Foi feita uma estimativa de que estes defeitos aumentam o risco de TVP
em, pelo menos, 10 vezes[2].
A RPCa, causada pelo FVL, ocorre em cerca de 5% da população caucasiana[22].
Entre os indivíduos com TV, a mutação do FVL está presente entre 17,6% e 19,5%
[22,23] e aumenta o risco de TV em cerca de 8 vezes entre os heterozigóticos
[22]. O rastreio para o FVL parece portanto ser pertinente em indivíduos com
uma primeira apresentação de TVP.
A mutação G20210A do gene da protrombina tem uma prevalência de cerca de 2,5%
na população geral. Entre os doentes com TV, esta mutação foi encontrada em 6%
e resulta num risco aumentado em cerca de 2-3 vezes para o desenvolvimento de
TV[10]. Esta mutação foi relatada principalmente em pessoas de raça caucasiana
[24].
A prevalência de altas concentrações do FVIII depende dos valores de cut-off
que são aplicados[2]. Concentrações do FVIII superiores a 150 IU/dL (150% do
normal) foram encontradas em 11% da população geral, e em 25% dos doentes com
trombose[25]. Tais concentrações estão associadas a um risco de trombose 6
vezes superior quando comparadas com concentrações inferiores a 100 IU/dL[25].
TROMBOFILIA HEREDITÁRIA E O RISCO DE TV RECORRENTE
Nas décadas de 1980 e 1990 os testes para trombofilia hereditária tornaram-se
comuns em doentes não seleccionados e nos seus familiares, apesar do facto de
não existir evidência da sua utilidade clínica[11]. A evolução sobre o
conhecimento dos factores protrombóticos e a sua associação com o primeiro
evento trombótico despoletou o entusiasmo no diagnóstico de trombofilias,
especialmente com o objectivo de definir o risco individual de recorrência de
TV.
Contudo, apesar de a associação entre factores protrombóticos e o risco de TV
estar bem documentada, o mesmo não ocorre em relação ao risco de recorrência
[26,27,28,29].
Alguns estudos demonstraram que o rastreio para trombofilia hereditária não
possui valor preditivo quanto à recorrência de um evento trombótico em doentes
não seleccionados com TV sintomática[26,27], assim como não reduz a recorrência
de TV[28].
Num estudo de corte prospectivo, verificou-se que o risco de recorrência de TVP
em pacientes jovens não está relacionado com a presença ou ausência de
evidência laboratorial da presença de trombofilia hereditária[29]. Nesse
estudo, o risco de recorrência em indivíduos com a mutação do FVL foi de 1,26 e
em indivíduos com a mutação G20210A do gene da protrombina foi de 0,81[29].
Num outro estudo, o risco de recorrência após um primeiro episódio de trombose
venosa foi avaliado prospectivamente em 474 indivíduos com idade inferior a 70
anos, sem doença oncológica (follow-up de 7,3 anos)[27]. Neste estudo,
globalmente, os factores pró-trombóticos considerados (FVL, mutação da PT,
deficiência em inibidores naturais da coagulação, FVIII, FIX, FXI e HHC) não
modificaram o risco de recorrência. A deficiência de inibidores naturais da
coagulação (AT, PC e PS) e a presença de outras trombofilias combinadas
induziram um aumento ligeiro do risco de recorrência (risco relativo 1,8 e 1,6,
respectivamente).
As trombofilias hereditárias mais frequentemente detectadas, o FVL na forma
heterozigótica e a mutação G20210A da PT na forma heterozigótica, têm um efeito
relativamente pequeno sobre o risco de recorrência. Revisões sistemáticas sobre
o risco de recorrência de TV em doentes com esses defeitos demonstraram um
risco de 1,4 para a mutação do FVL e de 1,2-1,7 para a mutação G20210A da PT
[30,31]. Os autores concluíram que o aumento do risco era modesto e que, por si
só, não justificaria um prolongamento da terapêutica anticoagulante.
Alguns estudos realizados contemplando as restantes trombofilias hereditárias
também demonstraram um efeito modesto sobre o risco de recorrência; em doentes
não seleccionados com deficiência das proteínas anticoagulantes (AT, PC e PS) o
risco relativo de recorrência foi inferior a 2,0[26,27].
Por outro lado, os doentes com história familiar de trombofilia e TV são
considerados como tendo um risco de recorrência superior[32,33]. Pensa-se que
na base desse maior risco esteja uma eventual transmissão hereditária de outros
factores trombofílicos não mensuráveis[32,33]. De facto, é consensual que o
risco de recorrência é superior em doentes que sejam portadores de mais de uma
trombofilia em comparação aos portadores de apenas uma[32,33].
Um estudo retrospectivo de um grupo de doentes com idade jovem na altura da
primeira TV e com história familiar de TV concluiu que a detecção de uma
deficiência num inibidor natural da coagulação (AT, PC, PS) comporta uma taxa
de recorrência anual de 6,23%, comparado com uma taxa de 2,25% em doentes com
as mutações do FVL, mutação G20210A da PT ou níveis elevados de FVIII[34]. Após
um período de 10 anos, a taxa de recorrência cumulativa atingia os 55% nos
doentes com deficiências de AT, PC ou PS enquanto para os doentes com a mutação
do FVL, a mutação G20210A da PT ou níveis elevados de FVIII essa taxa era de
25%[34]. Os autores concluem que, dadas as suas implicações clínicas, o
rastreio de trombofilia hereditária deveria ser realizado com o intuito de
detectar deficiência de AT, PC ou PS em doentes jovens com um primeiro episódio
de TV e/ou uma história familiar positiva para trombose venosa[34].
Um outro estudo prospectivo observacional, realizado em doentes com história
familiar de trombofilia, alertou para o maior risco de recorrência em doentes
do sexo masculino portadores de deficiências de inibidores naturais da
coagulação ou de trombofilias combinadas[35]. Nos indivíduos portadores de
deficiência de AT, a taxa de recorrência anual foi mais elevada (9,3%),
ocorrendo mesmo naqueles sob terapêutica anticoagulante de longa duração (2,7%)
[35]. O | QUADRO 3 |[35]pretende comparar a taxa anual de recorrência de TV em
doentes com diferentes trombofilias hereditárias. Os autores salientaram o
facto de a recorrência ocorrer em contextos de risco elevado e, por isso,
potencialmente evitáveis por uma estratégia adequada de prevenção secundária
[35].
| QUADRO 3 | Taxa anual de recorrência de trombose venosa[35]
RASTREIO DE TROMBOFILIA HEREDITÁRIA E TRATAMENTO DE TVP
Como já foi referido, apesar da associação entre factores protrombóticos e o
risco de TV estar bem documentada, o mesmo não ocorre em relação ao risco de
recorrência. A única situação em que o risco de recorrência foi documentado foi
em doentes jovens com deficiência de AT, PC ou PS no contexto de um primeiro
episódio de TV e/ou uma história familiar positiva para trombose venosa[34].
Num artigo de revisão em que foram analisados 70 eventos trombóticos em 57
indivíduos com deficiência de AT, a recorrência e extensão da trombose durante
o tratamento não se revelaram superiores ao observado em doentes tratados para
TV em que não tenha sido detectada essa deficiência[36].
A intensidade do tratamento de manutenção com anticoagulantes orais não deve
ser alterada por evidência laboratorial de trombofilia hereditária [11]. Não
existe evidência de que a recorrência de trombose após instituição de
tratamento com anticoagulante oral seja superior em doentes com trombofilia
hereditária comparativamente aos que não têm trombofilia[37].
As guidelines lançadas em Janeiro de 2010 pelo British Committee for Standards
in Haematology[11] fazem as seguintes recomendações em relação a este tópico:
> Após um diagnóstico de TV aguda, o início e a intensidade da terapêutica
anticoagulante devem ser os mesmos em doentes com ou sem trombofilia
hereditária (grau de evidência 1B)[11];
> Testar indiscriminadamente a presença de trombofilia hereditária em doentes
não seleccionados que se apresentem com um primeiro episódio de TV não está
indicado (grau de evidência 1B)[11];
> As decisões referentes à duração da anticoagulação (vitalícia ou não) em
doentes não seleccionados devem ser tomadas tendo em conta se um primeiro
episódio de TV foi provocado ou não, outros factores de risco, e o risco de
hemorragia relacionada com a terapêutica anticoagulante, independentemente de
existir ou não uma trombofilia hereditária (grau de evidência 1B)[11];
> Testar a presença de trombofilia hereditária em doentes seleccionados, como
aqueles com história familiar de TV recorrente não provocada, pode influenciar
decisões referentes à duração da terapia anticoagulante (grau de evidência C).
No entanto, não é possível dar uma recomendação validada em relação a como
esses doentes devem ser seleccionados[11].
RASTREIO DE TOMBOFILIA HEREDITÁRIA EM FAMILIARES DE DOENTES COM TVP
É importante perceber se o rastreio de trombofilia hereditária em familiares
assintomáticos de doentes com TVP tem, ou não, utilidade clínica. Utilidade
clínica é a probabilidade de um teste permitir um melhor resultado em termos de
saúde para o doente[38]. No caso do rastreio de trombofilia hereditária temos
de questionar se é provável que esse rastreio conduza a um melhor resultado em
termos de saúde e se vale a pena os custos, não só financeiros mas também
psicossociais[38].
Alguns argumentos a favor do rastreio são que ele pode permitir a evicção de
riscos adquiridos (como o uso de contraceptivos orais nas mulheres) e a
optimização da estratégia profiláctica em situações de alto risco (como
cirurgia, imobilização prolongada no leito por doença, viagens longas, etc.).
Este conhecimento poderia assim permitir elaborar uma estratégia com vista à
prevenção primária de trombose venosa, e contribuir para reduzir a incidência
de trombose venosa nas famílias e, consequentemente, na população em geral[32].
No caso específico da mulher, a identificação de trombofilia tem implicações na
selecção do método de planeamento familiar, já que contra-indica a contracepção
oral estroprogestativa (factor de risco independente de trombose venosa)[32].
Do mesmo modo, o tratamento hormonal de substituição (oral) está contra-
indicado[32].
No entanto, o risco individual é afectado por múltiplos factores genéticos e
ambientais, que variam mesmo entre parentes de primeiro grau[11].
Esta questão foi abordada objectivamente por uma série de estudos.
Um estudo prospectivo avaliou a incidência de TV em 470 portadores
assintomáticos da mutação do FVL[39]. Os portadores foram identificados através
do rastreio de parentes em primeiro grau de 247 doentes sintomáticos. A
incidência anual total de TV foi de 0,58% com uma incidência absoluta de
episódios espontâneos de apenas 0,26%[39]. Os autores concluíram que a
incidência anual absoluta de TV espontânea em portadores assintomáticos da
mutação do FVL é baixa e que não justifica o rastreio de rotina nas famílias de
doentes sintomáticos[39].
Um estudo prospectivo semelhante verificou que o risco anual total de TV em 313
portadores assintomáticos da mutação do FVL, aparentados de 131 doentes
sintomáticos, foi de 0,67%. Com um risco de TV espontânea de apenas 0,17%[40].
O valor preditivo parece ser maior para a deficiência de um inibidor natural da
coagulação. Um estudo de coorte prospectivo verificou que a incidência anual de
TV em portadores assintomáticos de deficiência de AT, PC ou PS foi de 1,5%,
tendo cerca de metade dos episódios sido provocados[41].
Um estudo retrospectivo avaliou o risco de TV em familiares assintomáticos de
doentes com trombofilia hereditária e uma história familiar ou pessoal de TV
[42]. O risco de TV foi 16 vezes superior nos familiares com trombofilia, tendo
o risco mais alto ocorrido nos familiares de doentes com uma deficiência de um
anticoagulante natural ou com defeitos múltiplos[42]. Foi realizado
posteriormente um estudo prospectivo a esses doentes, com um follow-up de cerca
de 6 anos, onde se verificou que 4,5% de 575 portadores assintomáticos de
trombofilia sofreram um primeiro episódio de TV, comparativamente a 0,6% de um
grupo controlo. Cerca de 60% dos episódios foram espontâneos[43]. A incidência
de TV foi de 0,8% por ano nos portadores e de 0,1% por ano nos controlos. A
incidência mais alta ocorreu nos portadores de deficiência de AT (1,7% por ano)
ou nos com defeitos combinados (1,6% por ano)[43].
Actualmente ainda não foi demonstrada uma relação custo-eficácia para o
rastreio de trombofilia hereditária em famílias com historial de trombose. Os
métodos simples para determinação de uma história familiar positiva não
discriminam a presença ou ausência de trombofilia e portanto a decisão de
realizar rastreio não pode ser baseada somente na existência ou inexistência de
uma história familiar[11].
As guidelines lançadas pelo British Committee for Standards in Haematology
[11]fazem as seguintes recomendações em relação a este tópico:
O rastreio de familiares assintomáticos para a presença de trombofilia
hereditária de baixo risco, tal como a mutação do FVL ou a mutação G20210A da
PT, não está indicado (grau de evidência 1B)[11];
O rastreio de familiares assintomáticos para a presença de trombofilia
hereditária de alto risco, tal como a deficiência de AT, PC ou PS, só deve ser
considerado em famílias com tendência trombótica (trombosis-prone families)
(grau de evidência 1B). Se o rastreio for efectuado, os riscos, os benefícios e
as limitações do rastreio devem ser discutidas juntamente com uma explicação da
hereditariedade e do risco da doença. No entanto, não é possível dar uma
recomendação em relação a como esses doentes e famílias devem ser seleccionados
[11];
O rastreio para a presença de trombofilias homozigóticas ou compostas raras não
está indicado pois estes defeitos são tão raros que não podem ser previstos por
história familiar, e o risco de trombose não provocada é baixo (grau de
evidência 2C)[11].
TIMING DO RASTREIO E METODOLOGIA LABORATORIAL
Na fase aguda da trombose venosa e nos indivíduos sob anticoagulação oral
alguns resultados laboratoriais podem ser falseados ou difíceis de interpretar.
Idealmente, o rastreio laboratorial de trombofilia deve ser efectuado fora da
fase aguda da trombose e no mínimo um mês após suspensão da anticoagulação oral
[45]. Por exemplo, a PC e PS, sendo dependentes da vitamina K, encontram-se
frequentemente diminuídas nos indivíduos sob terapêutica anticoagulante oral
[44].
É também desejável um intervalo mínimo de um mês entre o doseamento da PS e a
suspensão de tratamento hormonal ou o fim da gravidez[45]. A gravidez e as
terapêuticas com estrogénios (contracepção oral ou terapêutica hormonal de
substituição) diminuem a PS circulante[44].
O doseamento de AT na fase aguda da trombose venosa constitui uma excepção e
pode, em certos casos, ser importante. Quando há défice de AT, pode, por vezes,
haver indicação para a administração de concentrados de AT em associação à
heparina não fraccionada ou à heparina de baixo peso molecular[45].
A presença de défice de AT, PC e PS deve ser confirmada em várias ocasiões
(mínimo dois doseamentos, na ausência de interferência por factores externos)
[11].
Os testes genéticos podem ser realizados em qualquer altura, uma vez que os
seus resultados não são influenciados por factores externos.
As recomendações das guidelines lançadas pelo British Committee for Standards
in Haematology[11] quanto à realização dos testes laboratoriais para
identificação de trombofilia hereditária e sua interpretação são as seguintes:
A realização dos testes laboratoriais durante um episódio agudo de TV não está
indicada pois a utilidade e implicações desses testes devem ser antes
consideradas e o doente deve ser consultado antes da sua realização. Uma vez
que o tratamento da TV aguda não é influenciado pelos resultados dos testes,
estes podem ser efectuados posteriormente, se indicado[11];
O tempo de protrombina deve ser medido para detectar o efeito dos
anticoagulantes orais dependentes da vitamina K, que causam uma redução nos
níveis de PC e PS[11];
Estudos funcionais devem ser utilizados para determinar os níveis de AT e PC
[11];
Estudos cromogénicos para determinar a actividade da PC estão menos sujeitos a
interferência do que os estudos de coagulação, e são preferíveis[11];
Estudos imunorreactivos para quantificação do antigénio da PS livre são
preferíveis a estudos funcionais. Se for realizado um estudo da actividade da
PS como parte de um rastreio inicial, os resultados baixos devem ser
posteriormente investigados recorrendo a um estudo imunorreactivo da PS livre
[11];
Se for realizado um estudo de RPCa para detectar a mutação do FVL, então deve
ser efectuado o teste modificado de sensibilidade à PC activada (pré-diluição
da amostra teste em plasma deficiente em FV) por oposição ao teste original de
sensibilidade à PC activada. Se o teste for positivo a presença da mutação deve
ser confirmada por teste genético directo. A realização de um estudo de RPCa
não é necessária se um teste genético directo para a mutação do FVL for
realizado inicialmente[11];
Os testes para identificação de deficiência de AT, PC e PS devem ser repetidos
e os níveis baixos devem ser confirmados em uma ou mais amostras separadas. Um
único resultado anormal não é suficiente para fazer diagnóstico destas
deficiências[11];
Os testes para trombofilia hereditária devem ser supervisionados por
profissionais experientes, e os resultados bem como as suas implicações
clínicas devem ser interpretados por um clínico experiente que esteja ciente de
todos os factores que podem influenciar os resultados dos testes em cada caso
específico[11].
Os laboratórios que executam testes de trombofilia devem estar sujeitos a
controlos laboratoriais internos e externos rigorosos e acreditados por
entidades oficiais.
CONCLUSÃO
Actualmente ainda não existe consenso sobre o rastreio de trombofilia
hereditária no contexto de TVP. Se olharmos para as guidelines lançadas em
Janeiro de 2010 pelo British Committee for Standards in Haematology, podemos
verificar que nenhuma das recomendações feitas a este propósito possui grau de
evidência A, o que significa que essas recomendações não estão consistentemente
corroboradas por ensaios clínicos controlados e randomizados. Assim, é natural
que as opiniões continuem a divergir e que ainda haja espaço para a
investigação e para a obtenção de dados mais definitivos.
No entanto, se aplicadas, as guidelines actuais podem trazer benefícios não só
para o doente mas também para os seus familiares e os próprios profissionais de
saúde. Podem diminuir o número de testes para a detecção de trombofilia
hereditária realizados sem necessidade e que não apresentam utilidade clínica,
reduzindo assim os gastos dos serviços de saúde; podem melhorar a abordagem ao
doente após ser detectada uma trombofilia hereditária consoante o tipo de
trombofilia e assim optimizar o tratamento destes doentes; podem ajudar à
decisão de quando rastrear os familiares de um doente com uma trombofilia
hereditária e permitir um melhor aconselhamento do doente e dos familiares
quanto à sua doença (evicção de outros factores de risco para TVP, por
exemplo).
A interpretação dos resultados dos testes laboratoriais para trombofilia
hereditária é difícil porque:
A incidência de trombose em indivíduos portadores de trombofilia hereditária é
muito variável;
Muitos indivíduos com resultado laboratorial positivo nunca tiveram um evento
trombótico;
A ausência de identificação laboratorial não significa ausência de trombofilia;
Os clínicos podem sobrestimar a existência de trombofilia e menosprezar os
riscos da anticoagulação.
Parece consensual, perante os dados actuais, que o rastreio para as
trombofilias mais frequentes (aumento do nível/função dos factores da
coagulação) não terá utilidade clínica, pois não aumentam o risco de
recorrência de TVP e o tratamento não é influenciado pela sua detecção.
Mais controverso é o rastreio para trombofilias hereditárias raras (deficiência
de inibidores naturais da coagulação) que aumentam o risco de recorrência e
podem ter implicações na terapêutica. Serão necessários mais estudos para
definir claramente quais os doentes que devem ser submetidos a rastreio para
estas trombofilias hereditárias e quais as mudanças que a sua presença
implicará na terapêutica desses doentes.
É também necessário encontrar uma definição clara das famílias que terão
tendência aumentada para TVP e em que situações os integrantes dessas famílias
deverão ser submetidos a rastreio para trombofilia hereditária, nomeadamente
para a presença de mutações que afectem os inibidores naturais da coagulação,
pois parecem ser estas que justificam essa abordagem.
Serão, portanto, necessários estudos futuros com rigor metodológico que
permitam elaborar novas guidelines com recomendações baseadas em evidência de
elevada qualidade e que melhorem a abordagem aos doentes com TVP.