Embolia aórtica, a importância do exame físico: A propósito de um caso clínico
INTRODUÇÃO
A oclusão aguda da aorta é uma situação rara mas com elevada morbi-mortalidade
' pode atingir os 62,5% dos casos [1, 2]. Desta forma, a anamnese e o exame
físico do doente tornam-se preponderantes para um diagnóstico rápido. Um
indivíduo com queixas súbitas de dor e parestesias/parésia dos membros
inferiores acompanhada de ausência de pulsos femorais deve suscitar forte
suspeita de oclusão aórtica [1]. O mixoma cardíaco ocorre em 75-80% dos casos
na aurícula esquerda e tem predominância no sexo feminino (com um ratio de 3:
2 e 2:1[3, 4]) e deve ser incluído no diagnóstico diferencial de um doente
jovem com sintomas de oclusão vascular aguda [3, 5]. A embolização pode ocorrer
espontaneamente ou associada a episódios de trauma ou actividade física intensa
[3, 6].
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 21 anos com episódio de queixas súbitas de parestesias
e dor em ambos os membros inferiores durante a prática de natação. Desde essa
altura refere claudicação nadegueira, da coxa e gemelar para perímetros de
marcha curtos. Tinha antecedentes de dislipidémia familiar e hipotiroidismo na
infância.
Foi admitida noutro hospital para estudo. Durante o internamento e seguimento
em consulta de Cardiologia realizou ecocardiograma transtorácico e ressonância
magnética cardíaca que mostraram espessamento da parede lateral com
envolvimento do músculo papilar compatível com inflamação endocárdica, eco-
doppler dos membros inferiores com oclusão do sector aorto-ilíaco | FIGURA 1 |,
estudo de trombofilia com heterozigotia para MTHFR 677C-T, e coronariografia e
angiografia aórtica com oclusão aórtica e recanalização ilíaca | FIGURA 2 |.
| FIGURA 1 | Eco-doppler: Fluxo monofásico em ambas as artérias ilíacas
externas
| FIGURA 2 | Angiografia aórtica
Por suspeita de doença de Takayasu iniciou terapêutica com Deflazacorte e
Bisoprolol, sendo referenciada ao nosso serviço cinco meses após o início das
queixas.
Observada inicialmente em consulta constatou-se ausência de pulsos femorais com
índice tornozelo-braço de 0,63 à direita e 0,72 à esquerda. Realizou Angio-TAC
Toraco-Abdominal que confirmou a oclusão aórtica de provável origem embólica,
excluindo alterações do calibre e espessura da aorta e dos seus ramos | FIGURA
3 |.
| FIGURA 3 | Angio-TAC (reconstrução)
Perante a situação clínica de uma oclusão aórtica com vários meses de evolução
e dado que a doente se mostrou renitente a uma abordagem por laparotomia xifo-
púbica (por motivos estéticos), foi proposta uma abordagem inicial por via
femoral e caso não se conseguisse extrair o conteúdo tromboembólico, optar-se-
ia para a laparotomia.
A doente foi submetida sob anestesia geral a tromboembolectomia aorto-ilíaca
por via femoral bilateral com recurso a balões de Fogarty, e anéis de Canon e
Volmar. Obteve-se recuperação do padrão hemodinâmico normal nos membros
inferiores e teve alta para o ambulatório ao 5º dia pós-operatório com
antiagregação plaquetar (Triflusal) e anticoagulação oral (Acenocumarol).
O estudo anatomopatológico mostrou trombo organizado com 8 cm de extensão,
constituído por tecido conjuntivo laxo com núcleos dispersos e alterações
inflamatórias traduzidas por tecido de granulação, em algumas áreas com fibrina
e granulócitos, e ainda infiltrado linfoplasmocitário e histiócitos com
pigmento de hemossiderina, compatível com mixoma auricular | FIGURA 4 |.
| FIGURA 4 | Trombo organizado e íntegro com 8 cm de extensão
Na consulta de follow-up a doente apresentava-se assintomática e com pulsos
distais. Mantém a antiagregação plaquetar e anticoagulação oral.
COMENTÁRIOS
A oclusão aórtica aguda é uma situação rara. Na maioria dos casos está
associada a fenómenos de embolia com origem cardíaca. Os mixomas cardíacos
ocorrem em 75-80% dos casos na aurícula esquerda, pelo que são susceptíveis de
embolização para qualquer território da circulação arterial, estando associadas
a episódios de isquemia aguda dos membros, viscerais ou cerebrais. A
degenerescência aneurismática das artérias também está descrita como possível
complicação da embolização. Sendo mais frequente nas artérias cerebrais e dos
membros inferiores, há descrição de um caso de pequeno aneurisma aórtico
secundário à invasão e destruição da lâmina elástica aórtica pelo tecido
mixomatoso [5]. A embolização periférica pode ocorrer espontaneamente ou
associada a episódios de trauma ou actividade física intensa [3, 6].
O diagnóstico desta situação é essencialmente clínico através da história e
exame físico. A oclusão aórtica deve ser colocada sempre que um doente
apresente queixas de isquémia aguda dos membros inferiores e ausência de pulsos
femorais. Algumas vezes a oclusão aguda da aorta não se apresenta sob a forma
de uma isquémia grave que compromete a viabilidade imediata do membro, pelo que
pode ser interpretada como queixas relacionadas com patologia da coluna lombo-
sagrada. Nesta situação o exame físico é fundamental, pois a ausência de pulsos
femorais favorece um quadro de oclusão vascular e não de compressão
neurológica.
A angiografia continua a ser o exame imagiológico “gold standard” no
diagnóstico da oclusão aórtica. Analiticamente podem ser encontrados sinais de
insuficiência renal aguda, hipercaliémia, elevação dos marcadores de destruição
celular e mioglobinúria, pelo que é fundamental o restabelecimento precoce do
fluxo sanguíneo [1].
O tratamento da oclusão aórtica deve efectuar-se o mais precocemente possível
através de uma tromboembolectomia aorto-ilíaca por via femoral bilateral. Em
algumas situações, esta poderá ser efectuada sob anestesia local. O sucesso
deste procedimento é tanto maior quanto mais precoce for efectuado. Em doentes
jovens nos quais não houve sucesso com a técnica anterior, é preferível
efectuar uma tromboendarteriectomia aórtica por laparotomia do que realizar um
bypass aorto-bifemoral. Nesta doente apesar dos vários meses de evolução da
doença, e consequentemente com elevado risco de insucesso terapêutico, optou-se
por uma abordagem femoral inicial, dada a idade e o facto de se ter mostrado
renitente a qualquer tipo de cirurgia abdominal devido a questões estéticas.
Informada da eventual impossibilidade de desobstrução por via femoral, a doente
aceitou uma abordagem abdominal caso necessário.
Para além do tratamento cirúrgico é fundamental uma boa hidratação e correcção
electrolítica. O doente deve manter-se em vigilância devido ao risco de poder
desenvolver um síndrome compartimental e um síndrome de revascularização
sistémico.
O estudo anatomopatológico do êmbolo é fundamental. Tal como se verificou nesta
doente, na literatura há descrição de casos em que o estudo ecocardiográfico
não detectou imagens de massas intracardíacas e em que o resultado histológico
foi compatível com mixoma auricular [3]. A explicação estará na embolização
total do mixoma. As imagens de inflamação endocárdica no ecocardiograma e
ressonância magnética cardíaca poderão estar relacionadas com uma massa
cardíaca prévia.
No follow up destes doentes é fundamental a realização de ecocardiogramas
regulares para detectar o aparecimento de novas massas intracardíacas, pois há
risco de recidiva. Na literatura estão descritas embolizações mixomatosas
vários anos após a ressecção cirúrgica de tumores cardíacos [6]. Sempre que
possível, os doentes devem iniciar anticoagulação para diminuir o risco de
novos fenómenos de embolização.
CONCLUSÕES
A embolia aórtica é uma situação rara mas associada a elevada morbi-mortalidade
pelo que um diagnóstico e terapêutica precoces são fundamentais para melhorar o
prognóstico. Na presença de alterações súbitas da sensibilidade e motilidade
dos membros inferiores, um simples exame físico vascular (ausência de pulsos
femorais) pode fazer o diagnóstico. Um ecocardiograma normal não exclui uma
possível origem cardíaca para a embolia aórtica, pelo que o estudo
anatomopatológico do êmbolo deve ser mandatório. A tromboembolectomia femoral
bilateral é a abordagem preferencial nestas situações e o sucesso é maior
quanto mais precocemente for realizada. O follow-up dos doentes com história de
mixoma auricular deve incluir estudo ecocardiográfico periódico.