Isquémia Mesentérica Aguda: cinco anos de experiência institucional (2007-12)
Isquémia Mesentérica Aguda ' cinco anos de experiência institucional (2007-12)
Acute intestinal ischemia ' institutional experience of five years (2007-2012)
Pedro Martins, José Tiago, Augusto Ministro, José Silva Nunes, José Fernandes e
Fernandes
Clínica Universitária de Cirurgia Vascular, Hospital Santa Maria
Centro Hospitalar Lisboa Norte
Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa
Correspondência
|RESUMO|
A isquémia mesentérica aguda mantém uma elevada taxa de mortalidade, não
obstante o progresso científico e as novas metodologias de tratamento.
Os autores procederam a uma revisão da casuística do Serviço correspondente aos
doentes com isquémia mesentérica aguda (IMA) submetidos a cirurgia de
revascularização urgente por embolia ou trombose da artéria mesentérica
superior (AMS). A análise foi observacional e retrospectiva, durante um período
de 5 anos (2007-12).
Os objectivos foram a caracterização clínica e demográfica dos doentes com IMA,
estratégias diagnósticas e terapêuticas adoptadas, assim como factores
condicionantes da taxa de mortalidade.
14 doentes, 8 mulheres (57%) e 6 homens (43%), com idade média de 75 anos foram
analisados. A embolia da AMS foi a causa de IMA em 70% dos casos; disrítmia
cardíaca e hipertensão arterial foram as co-morbilidades mais frequentes.
O diagnóstico foi estabelecido após 24 horas de evolução clínica, na maioria
dos doentes. A dor abdominal foi o sintoma predominante, associado a elevação
dos d-dímeros, lactato desidrogenase e leucocitose.
Foram efectuadas dez embolectomias e quatro by pass para a AMS. 50% dos doentes
foram submetidos a ressecção intestinal e second look realizou-se em 14%. A
mortalidade aos 30 dias foi de 57% (embolia 60%; trombose 50%).
A idade avançada, as múltiplas co-morbilidades e o tempo prolongado de isquémia
contribuíram para a elevada mortalidade apresentada, apesar de comparável à de
séries internacionais.
Palavras-chave: Isquémia mesentérica aguda, Revascularização cirúrgica,
Embolia/Trombose da artéria mesentérica superior
|ABSTRACT|
Acute mesenteric ischemia (AMI) continues to be associated with a high
mortality rate over the last decades.
The purpose of the present report is to assess a cohort of 14 patients with AMI
undergoing emergent surgery due to either superior mesenteric artery (SMA)
embolism or thrombosis. This study is an observational and retrospective
analysis during a 5-year period (2007-12).
The main objective was to analyze clinical and demographic characteristics,
diagnostic and therapeutic approaches and factors that affected the AMI
mortality rate.
14 patients, 8 were women (57%) and 6 were men (43%) with a mean age of 75
years. SMA embolism was the cause o AMI in 70% of cases. Cardiac arrhythmias
and hypertension were the most common co-morbidities.
Most cases were diagnosed after 24 hours of clinical evolution and abdominal
pain was the predominant symptom. Leukocytosis, elevated blood level of lactate
dehydrogenase and positive d-dimers were also the most common biochemical
markers.
Ten patients were submitted to embolectomy and four to SMA bypass. 50%
underwent intestinal resection and a second look was carried out in 14%.
30-day mortality was 57% (60% in embolism and 50% in thrombosis). Advanced age,
multiple co-morbidities and prolonged ischemia were contributing factors to
this high mortality.
Key-words: Acute mesenteric ischemia, Surgical revascularization, Embolism/
Thrombosis of the superior mesenteric artery
INTRODUÇÃO
A IMA é uma entidade clínica rara responsável por apenas 0,1% das admissões
hospitalares[1], mas está associada a elevada taxa de mortalidade (30 a 65%)
[2]. O enorme progresso científico e o desenvolvimento das novas tecnologias
nas últimas décadas, não diminuíram de forma significativa a sua mortalidade
[3].
As técnicas cirúrgicas convencionais de revascularização intestinal mantêm-se
como gold standard, particularmente na doença oclusiva crónica onde apresentam
maior durabilidade que o tratamento endovascular. A generalização da angio-TC
facilitou o diagnóstico precoce e intervenção terapêutica mais rápida.
Tendo em consideração a elevada mortalidade da IMA, algumas estratégias de
prevenção têm sido adoptadas, nomeadamente a anti-coagulação de doentes com
disrítmia cardíaca e a revascularização agressiva de doentes com isquémia
mesentérica crónica ou mesmo assintomáticos com estenose significativa de três
vasos.
Os objectivos do presente estudo consistiram na caracterização clínica e
demográfica dos doentes com IMA, revisão da estratégia diagnóstica e
terapêutica adoptada, bem como a análise dos factores condicionantes da taxa de
mortalidade.
MATERIAL E MÉTODOS
Os processos hospitalares de todos os doentes submetidos a cirurgia de
revascularização urgente por IMA no Hospital de Santa Maria (Lisboa), de Abril
de 2007 a Maio de 2012 foram revistos.
Os doentes com IMA por embolia ou trombose da AMS foram selecionados, tendo
sido excluídos doentes com isquémia mesentérica não oclusiva, trombose venosa
mesentérica ou com isquémia intestinal associada a dissecção aórtica. A
etiologia da IMA foi estabelecida pelo cirurgião, através da interpretação da
apresentação clínica, exames complementares de diagnóstico e avaliação intra-
operatória. Foram utilizados os diagnósticos prévios referenciados nos
processos para confirmação de hipertensão arterial, cardiopatia isquémica e
fibrilhação auricular.
A cirurgia de revascularização consistiu em embolectomia ou by pass mesentérico
mediante laparotomia mediana e apreciação da viabilidade intestinal
condicionando a decisão de ressecção intestinal.
Ofollow up dos doentes foi realizado através de consulta médica regular e pela
análise dos registos hospitalares.
RESULTADOS
Demografia e apresentação clínica
Durante o período de estudo foram identificados 14 doentes (8 mulheres e 6
homens), de acordo com os critérios de selecção previamente definidos. A média
de idades foi de 75 anos, sendo os doentes com embolia mesentérica mais novos e
com maior incidência de fibrilhação auricular que os doentes com trombose
mesentérica. 70% dos doentes apresentaram isquémia mesentérica de etiologia
embólica, sendo o factor de risco predominante a fibrilhação auricular
associada a anti-coagulação em dose sub-terapêutica | FIGURAS 1 e 2 |
O quadro clínico mais comum foi o de dor abdominal intensa associada a vómitos,
sem alívio pela analgesia convencional. Num terço dos doentes (3/10) com
embolia mesentérica houve sintomas associados a embolia de outros territórios,
nomeadamente dos membros inferiores, renal e cerebral. Na maioria dos doentes o
quadro clínico tinha uma evolução superior a 24 horas, à data de observação
pela equipa de Cirurgia Vascular no Serviço de Urgência.
Avaliação laboratorial e imagiológica
Leucocitose com neutrofìlia e elevação da lactato desidrogenase estavam
presentes em 10/14 (71%) em 11/13 (85%), respectivamente. 4/14 doentes
evidenciaram compromisso da função renal (creatinémia superior a 1,5 mg/dL) e
6/12 doentes tinham acidémia láctica. O doseamento dos d-dímeros foi realizado
apenas em dois doentes, nos quais se revelaram francamente positivos.
As radiografias de abdómen foram inespecíficas, observando-se na maioria delas
distensão de ansas. Todos os doentes realizaram tomografia computorizada (TC)
com contraste o que contribuiu para o diagnóstico etiológico e para avaliar o
eventual compromisso da viabilidade intestinal através de sinais como o
espessamento parietal e distensão de ansas, pneumatose, aeroportia ou líquido
livre intra-peritoneal | FIGURAS 3, 4 e 5 |.
Nenhum dos doentes foi submetido a estudo por ecoDoppler ou angiografia
convencional.
Intervenção cirúrgica
A cirurgia de revascularização consistiu em embolectomia ou by pass para a AMS.
Foram realizadas dez embolectomias e quatro by pass | FIGURAS 6 e 7 |. Estes
últimos foram efectuados de forma retrógrada com influxo na aorta infra-renal
(2) ou nas artérias ilíacas primitivas (2). Foram utilizados conductos
sintéticos ou autólogos em igual proporção.
Foram submetidos a ressecção intestinal sete doentes (50%), tendo sido
realizadas duas enterectomias e cinco ressecções ileo-cólicas. Todos os doentes
com etiologia trombótica apresentavam compromisso intestinal com necessidade de
ressecção. Apenas um terço dos doentes com embolia da AMS necessitou de
resseção intestinal.
O “second-look” foi feito em dois doentes, num por laparotomia e no outro por
laparoscopia. Identificou-se progressão da necrose intestinal em um doente e um
hematoma adjacente à AMS no segundo doente. A decisão de realizar o “second-
look” foi estabelecida logo na primeira intervenção num doente e no outro por
agravamento clínico pós-operatório.
Mortalidade
A taxa de mortalidade aos 30 dias foi de 8/14 doentes (57%), sendo mais elevada
no grupo de etiologia embólica (6/10 doentes - 60%) do que no de etiologia
trombótica (2/4 doentes - 50%). Quatro doentes morreram na primeira semana de
pós-operatório, dos quais três por falência multi-orgânica e um por
tromboembolismo pulmonar. Após a primeira semana, três doentes morreram por
pneumonia e um por sépsis de causa abdominal.
DISCUSSÃO
A IMA é uma condição clínica rara e foi responsável por 14/1275 (1%) das
intervenções vasculares urgentes realizadas durante o período analisado.
Os doentes desta série tinham idade avançada e múltiplas co-morbilidades
cardiovasculares, aumentando de forma independente o risco operatório; a
evolução do quadro clínico foi frequentemente superior a 24 horas antes da
admissão no Serviço de Urgência e observação pela equipa vascular, o que
representou um factor de diagnóstico desfavorável neste grupo de doentes.
Na maioria das séries a patologia trombótica foi mais frequente e associada a
mortalidade mais elevada, provavelmente pela maior extensão de intestino em
sofrimento[4]. Na nossa série o grupo embólico apresentou mortalidade
ligeiramente superior ao trombótico (60% vs 50%), mas sem significado
estatístico.
O quadro clínico de dor abdominal e vómitos associado a leucocitose é
relativamente inespecífico. Alguns marcadores de isquémia intestinal como a
elevação da amílase e dos lactatos apenas foram positivos em metade dos casos,
o que confirma a importância da suspeição clínica para o diagnóstico precoce. A
análise de d-dímeros foi positiva nos dois doentes em que foi realizada e a sua
contribuição como biomarcador de isquémia IMA para o diagnóstico tem sido
sugerida em estudos experimentais[5].
Todos os doentes foram submetidos a estudo imagiológico por TC com contraste ou
angio-TC. Nenhum doente foi submetido a angiografia convencional ou a
ecoDoppler com côr para o diagnóstico. A TC é mais acessível e célere em
contexto de urgência do que a angiografia, além de permitir a apreciação da
viabilidade intestinal através da presença concomitante de sinais imagiológicos
como a distensão de ansas, aeroportia ou líquido livre intra-peritoneal.
Kougias propõe um algoritmo de intervenção precoce com realização de
angiografia mesentérica intra-operatória, para doentes com suspeita clínica ou
imagiológica de IMA, contribuindo para uma revascularização cirúrgica mais
selectiva ou para o início de um tratamento endovascular[2]. As modernas
técnicas endovasculares de stenting ou trombólise por catéter, podem vir a
alterar a abordagem desta patologia. De acordo com Arthurs[6], a utilização
preferencial da terapêutica endovascular com sucesso diminuiu a extensão de
intestino ressecado, as complicações pós-operatórias e a taxa de mortalidade
(de 50% para 36%), em comparação com a cirurgia convencional.
Todos os doentes da casuística foram submetidos a laparotomia mediana e a
cirurgia de revascularização convencional através de embolectomia ou by pass
para a AMS com conduto venoso ou protésico.
As embolectomias foram realizadas através da abordagem da AMS na raíz do
mesentério.
Todos os by pass foram realizados de forma retrógrada, com inflow ilíaco ou na
aorta abdominal infra-renal. Os by pass retrógrados são de execução técnica
mais fácil e rápida do que os bypass anterógrados, habitualmente efectuados a
partir da aorta supra-celíaca. Uma das vantagens de utilizar esta área da aorta
como influxo é o facto desta se encontrar relativamente livre de doença
parietal por oposição à aorta infra-renal e artérias ilíacas. No entanto, a
clampagem aórtica infra-renal tem menor impacto hemodinâmico que a clampagem
mais proximal, pelo que deve ser preferida nos doentes com frágil condição
cardiovascular, como se verifica na série apresentada.
O conduto venoso deve ser preferido quando existe necrose intestinal ou mesmo
na sua ausência quando se suspeita de importante contaminação abdominal, apesar
de apresentar maior risco de kinking e subsequente oclusão que o enxerto
sintético.
O uso sistemático da laparotomia a que a cirurgia de revascularização
convencional obrigou na nossa série, permitiu identificar necrose intestinal
com necessidade de ressecção em sete doentes (50%). Apenas foi realizada nova
exploração abdominal (second look) em dois doentes (14%). Esta baixa taxa de
re-intervenção pode ter sido relevante para a elevada mortalidade encontrada. A
liberalização do second look foi considerada contributo importante para a
diminuição da mortalidade, pois permitiu a reavaliação e ressecção adicional de
intestino nos doentes cuja necrose não estava ainda claramente demarcada na
primeira intervenção[7] e para o tratamento de eventual foco séptico associado.
Este estudo apresenta como limitações o seu carácter retrospectivo, a dimensão
reduzida da amostra e o viés de selecção do tratamento dos doentes por
diferentes cirurgiões. No entanto, permitiu caracterizar a amostra de doentes
referenciados ao Serviço de Urgência da instituição com IMA, rever estratégias
diagnósticas e terapêuticas adoptadas, assim como proceder a uma análise dos
resultados.
Importa referir que o primeiro contacto do doente com a equipa vascular ocorreu
na esmagadora maioria dos doentes 24 horas depois do início dos sintomas, facto
que vem acentuar a importância da suspeição clínica e a necessidade de melhorar
a referenciação encurtando esta demora, como passos essenciais para obtermos
melhores resultados terapêuticos.
CONCLUSÕES
A IMA é uma condição associada a elevada mortalidade, pelo que devem ser
estabelecidos algoritmos de diagnóstico e tratamento para aumentar a
sobrevivência dos doentes.
O sucesso terapêutico depende de um forte índice de suspeição diagnóstica
associada a atitude cirúrgica agressiva de revascularização e ressecção
intestinal.
Os cuidados pós-operatórios em Unidade diferenciada são fundamentais,
considerando a elevada mortalidade precoce por falência multi-orgânica
resultado de alterações fisiopatológicas associadas à IMA. A vigilância clínica
rigorosa da progressão/recorrência da isquémia após a intervenção, deve ser
suportada por taxas mais elevadas de second look. O recurso à intervenção
endovascular poderá contribuir para uma melhoria dos resultados, como recentes
publicações sugerem.
A idade avançada, as múltiplas co-morbilidades e o prolongado tempo de isquémia
contribuem para a elevada mortalidade apresentada, que no entanto é comparável
à de séries internacionais publicadas referentes a período de tempo similar.