Síndrome da veia cava superior: caso clínico
Introdução
A Síndrome da Veia Cava Superior (SVCS) surge quando há diminuição ou obstrução
do fluxo venoso da cabeça, pescoço e extremidades superiores através da veia
cava superior (VCS), por trombose ou compressão extrínseca desta1,2.
A primeira descrição de SVCS foi publicada por William Hunter em 1757, que
descreveu o caso clínico de um doente com obstrução da VCS associada a
aneurisma aórtico sifilítico1,3. Os aneurismas da aorta mantiveram-se como a
segunda causa de SVCS, depois das neoplasias torácicas malignas primárias, até
19001. A incidência de mediastinite sifilítica e tuberculosa diminuiu
drasticamente a partir do início do século XX1,3,4. As neoplasias pulmonares e
os tumores mediastínicos primários tornaram-se as causas mais frequentes1.
Entre as causas malignas encontram-se a neoplasia do pulmão (50% dos casos), os
mesoteliomas, os linfomas, os timomas, a metastização mediastínica (tumores da
mama e tumores das células germinativas), tumores da tireóide (medulares e
foliculares), teratomas e angiossarcomas1,4. Nas últimas duas décadas, o
aumento exponencial de procedimentos endovenosos (cateteres venosos centrais,
pacemakers, cardio-desfibriladores implantados) fez disparar os casos de SVCS
de etiologia benigna, que actualmente correspondem a 40%1,4,5. As causas
benignas mais frequentes são: procedimento endovenoso prévio (a principal
causa), fibrose mediastínica, doença granulomatosa fúngica como a histoplasmose
e tumores benignos1,4. A prevalência de SVCS devido a pacemaker está descrita
entre 1:40000 a 1:2505,6. A SVCS nesses doentes começa inicialmente com um
processo de trombose, com sintomatologia mínima. O stress mecânico induzido
pelos fios de pacemaker leva a inflamação da parede da veia6. A lesão
endotelial permanente inicia uma reacção fibrótica que, eventualmente, leva à
redução significativa do lúmen da VCS e suas tributárias, com o desenvolvimento
da SVCS5. Os factores predisponentes para o desenvolvimento de SVCS são a
trombofilia, terapêutica hormonal e a infecção1,6. O intervalo médio entre a
inserção de pacemaker e o desenvolvimento de sintomatologia é de 48 meses5. Os
sintomas, que podem ser muito debilitantes, geralmente começam com sensação de
«preenchimento» da cabeça ou do pescoço (81%), ortopneia (72%), lipotímia (34%)
e problemas visuais1-3,5,7(25%). As cefaleias intensas com compromisso da
qualidade de vida também são características5. Outros sintomas como dispneia,
disfagia, disfunção cognitiva, disfonia e edema da glote com risco de asfixia
também podem ocorrer4. Os sinais apresentados são edema da face e do pescoço
(97%), desenvolvimento de circulação colateral no tórax (91%), cianose facial
(56%) e edema do membro superior1,3,5 (53%). A gravidade da síndrome da VCS
depende da velocidade de progressão da obstrução e do grau de desenvolvimento
de colateralização3,5,6.
Caso clínico
Doente de sexo masculino, 65 anos, com antecedentes de DM, HTA, dislipidemia,
tromboses venosas superficiais (TVS) e tromboses venosas profundas (TVP) de
repetição do membro superior direito após colocação de pace-maker ipsilateral
em 2010 por Doença do Nó Sinusal. O estudo protrombótico demonstrou um défice
de proteína S. Foi seguido em Consulta externa e hipocoagulado cronicamente
desde 2011. Em 2012, iniciou quadro de edema progressivo da face e do pescoço,
com posterior desenvolvimento de circulação colateral no tórax, alterações
visuais, cefaleias intensas, apneia do sono, disfagia e ortopneia (fig._1A).
Realizou angioTC que demonstrou trombose das veias subclávia e jugular direitas
e oclusão com atrofia da VCS e das veias braquiocefálicas. O restante estudo
imagiológico e analítico excluiu malignidade. O doente foi submetido a
tentativa de tratamento endovascular, sem sucesso, por incapacidade de transpor
quer a oclusão braquiocefálica esquerda por abordagem braquial ipsilateral,
quer a oclusão da VCS por abordagem femoral direita (figs._1B_e_C). Constatou-
se um padrão venográfico Tipo III de Stanford e Doty. Por apresentar
sintomatologia extremamente limitante, foi decidida intervenção cirúrgica. O
doente realizou estudo pre-operatório (ecocardiograma de sobrecarga e
coronariografia) que revelou estenose > 70% do terço proximal da artéria
descendente anterior (DA), com bom leito distal. Foi submetido a cirurgia, sob
anestesia geral e heparinização sistémica (100 IU/kg de peso corporal), por
esternotomia mediana, sem necessidade de hipotermia e sem circulação extra-
corporal. Procedeu-se inicialmente a revascularização miocárdica, através de
bypass da aorta ascendente para a DA, com veia grande safena. Seguidamente,
foram isoladas as veias jugular e subclávia esquerdas e constatou-se
permeabilidade do início da veia braquicefálica esquerda, imediatamente após a
confluência das veias jugular e subclávia, por um trajecto com cerca de 1 cm.
Observou-se completa fibrose do restante trajecto da veia braquiocefálica
esquerda, de toda a veia braquicefálica direita e da VCS. Realizou-se bypass da
confluência das veias jugular e subclávia esquerdas para o apêndice auricular
direito, clampado tangencialmente e após exérese de trabéculas. As anastomoses
foram realizadas com prolene 4/0 e o conduto usado foi uma prótese de ePTFE
reforçado externamente de 14 mm de diâmetro. O pós-operatório decorreu sem
complicações e o doente teve alta ao 7º dia, com melhoria franca e gradual da
sintomatologia (fig._2). Aos 3 meses de pós-operatório apresenta bypass
permeável na angio-TC de controlo, sem recorrência dos sintomas, mantendo
hipocoagulação crónica (fig._3).
Discussão
O diagnóstico imagiológico da SVCS é vital para confirmar a suspeita clínica e
na avaliação e planeamento do tratamento4. Os métodos imagiológicos não
invasivos possíveis são a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância
magnética nuclear4,7 (MRN). Como métodos invasivos e permanecendo como o
«goldstandard» no diagnóstico desta patologia está a venografia, que permite a
visualização directa da obstrução venosa e o padrão de colateralização4. Foram
descritos quatro padrões de SVCS, segundo a classificação venográfica de
Stanford e Doty1,4. No Tipo 1 observa-se obstrução parcial da VCS, mantendo-se
fluxo anterógrado na VCS e na veia ázigos1,4. No Tipo 2 há estenose >90% da SVC
com fluxo anterógrado na veia ázigos1,4. O Tipo 3 corresponde a oclusão da VCS
com inversão do fluxo através da veia ázigos1,4. O Tipo 4 representa oclusão da
VCS e da veia ázigos, com desenvolvimento de circulação venosa colateral na
parede torácica1,4. Nos tipos 1 e 2 advoga-se o tratamento endovascular e nos
tipos 3 e 4 o tratamento cirúrgico1. Os sintomas tendem a ser mais graves
quando a VCS está ocluída inferiormente à confluência da veia ázigos4.
No passado, a SVCS era considerada uma emergência médica4. Para a maioria dos
doentes actualmente isso já não se verifica, sobretudo pelo estabelecimento
mais indolente do quadro4. O risco de morte na SVCS está associado a obstrução
da via aérea (edema da laringe, traqueia ou brônquios) e edema cerebral e
coma4.
O tratamento é puramente sintomático e dependente da causa subjacente2,4.
Tradicionalmente, o tratamento médico inicial incluiu restrição de fluidos,
evitar posições de pendência da cabeça, esteróides sistémicos (prednisolona ou
dexametasona), radioterapia (carcinoma do pulmão de células não pequenas) ou
quimioterapia4 (carcinoma do pulmão de pequenas células). Os diuréticos também
foram utilizados no passado, com escasso benefício4. A maioria dos doentes não
responde à hipocoagulação isolada, que parece ser eficaz apenas nos casos de
menor gravidade6. O objectivo do tratamento médico é reduzir a pressão
hidrostática na parte superior do tronco e na cabeça. No entanto, essas
terapias podem levar 2-4 semanas para demonstrar alguma eficácia, com altos
índices de complicações e taxas de recorrência de sintomas relatadas entre 20%
e 50%4.
O tratamento endovascular pode proporcionar um alívio rápido dos sintomas,
restaurando o retorno venoso, independentemente da etiologia, e é considerada
frequentemente como opção de primeira linha2. As opções de tratamento
disponíveis são múltiplas, incluindo a angioplastia transluminal percutânea, a
colocação de stents metálicos e a trombólise farmacológica ou mecânica6,8,9. As
opções mais utilizadas, com boas taxas de permeabilidade são a angioplastia e o
stenting8-12. Complicações graves tais como tamponamento (1,4%) e hemotórax
(0,3%) podem ocorrer durante o procedimento endovascular4,5,9,10. As
complicações tardias da colocação de stent são a migração e fractura do stent,
com risco hemorrágico acrescido, sobretudo em doentes hipocoagulados5,11,12.
Decorrem estudos para avaliar a permeabilidade a longo prazo e a necessidade de
reintervenção condicionada pela terapêutica endovascular, mas os resultados de
permeabilidade a curto e médio prazo são favoráveis2,4,5,8-13.
Quando o tratamento endovascular não é exequível e em casos seleccionados, como
na SVCS associada a pacemaker, cirurgia assume um papel fulcral1. Os doentes
devem ter reserva cardiopulmonar adequada para a cirurgia, que geralmente
obriga a esternotomia mediana7. A preparação anestésica também tem algumas
particularidades: a via aérea deve ser assegurada por tubo endotraqueal de
duplo lúmen, para permitir selectivação de ventilação pulmonar se necessário7.
O acesso venoso central deve ser colocado na veia femoral e removido em 48-72
h7. A fluidoterapia deve ser administrada judiciosamente, para minimizar o
risco de edema intracraniano7. A primeira reconstrução cirúrgica da VCS ocorreu
em 1951 e desde então tem sido realizada no contexto de SVCS de etiologia
benigna ou maligna, mesmo quando há invasão tumoral directa da VCS3,5,7,14. A
cirurgia pode ser realizada com baixo risco, excelente alívio sintomático e boa
permeabilidade a longo prazo7. Actualmente, a opção mais em voga consiste em
Síndrome da veia cava superior: caso clínico ignorar a oclusão e realizar um
bypass venoso entre uma veia, mais frequentemente a jugular ou a
braquiocefálica, e a VCS ou o apêndice auricular direito1,4. A cirurgia
tecnicamente mais fácil e com melhores resultados é o bypass da veia
braquicefálica direita ao apêndice auricular direito1,7,15. O bypass direito é
preferencial pois tem um trajecto mais rectilíneo, com menor angulação e mais
curto do que o esquerdo1,5,7,15. A veia braquiocefálica direita, se disponível,
deve ser escolhida em detrimento da jugular por apresentar maior calibre e
maior débito (1000 mL/min), com menor risco de trombose do bypass1,5. O outflow
no apêndice auricular direito implica menor dissecção, com consequente menor
risco de lesão, e apenas clampagem tangencial, ao contrário da VCS1. Os
enxertos rectos são preferenciais aos enxertos bifurcados, pois além da maior
simplicidade técnica, têm taxas de permeabilidade superiores e a
colateralização existente entre ambos os lados garante que a reconstrução
unilateral é suficiente para aliviar os sintomas na generalidade dos
doentes1,5,14,15. As opções de conduto autólogo são o enxerto espiralado de
veia grande safena (EEVGS) e a veia femoral1,5. O EEVGS mostrou excelentes
resultados a longo prazo, com relatos de permeabilidade de 88% aos 10 anos1,5.
Contudo, o procedimento para obtenção do conduto é moroso e obriga a segmentos
longos e adequados de veia grande safena, nem sempre disponíveis1,5. A veia
femoral também demostrou ser um bom conduto, mas a utilização de uma veia
profunda associa-se à ocorrência de trombose venosa e de síndrome pos-
trombótica em até 50% dos casos, sobretudo em doentes com trombofilia1,5. Os
alo-enxertos e os enxertos criopreservados são usados raramente, em casos de
imunossupressão em doentes transplantados1. A prótese de ePTFE externamente
reforçada é o material protésico preferencial e deve ser de grande diâmetro
(12-16 mm) e o mais curto possível1,4,5,14,15.
Quando o conduto utilizado é autólogo preconiza-se hipocoagulação para manter
um INR entre 2-3 durante 3 meses1. Os enxertos protésicos requerem
hipocoagulação oral crónica1,5,14,15. Estas próteses estão facilmente
disponíveis para utilização imediata e apresentam boas taxas de permeabilidade
(70% aos 2 anos), constituindo a primeira opção de conduto em vários centros de
referência1,5,7,14,15.
Conclusão
O melhor tratamento para a SVCS de longa duração devido a pacemaker ainda é a
cirurgia5. A utilização de próteses de ePTFE representa uma boa opção de
conduto, desde que com um tamanho adequado1,5,7,14,15. Estas próteses estão
facilmente disponíveis para utilização «off-the-shelf», em comparação com
enxertos criados a partir de veia grande safena, enxertos criopreservados ou
veia femoral7,15. A cirurgia pode ser realizada com baixo risco, excelente
alívio sintomático e boa permeabilidade a longo prazo7.
Vários estudos confirmam que a maioria dos doentes com SVCS, quer de etiologia
benigna, quer de etiologia maligna, apresenta boas taxas de permeabilidade de
bypass, o que justifica uma abordagem cirúrgica agressiva, mesmo nos casos de
malignidade5,7,14,15.
A hipocoagulação crónica promove a permeabilidade a longo prazo e deve ser
rotineiramente instituída5,14.