Aneurisma umeral em doentes com transplante renal
Introdução
A arteriomegalia proximal a FAVs pode ser uma adaptação frequente ao alto
débito e stress hemodinâmico1, mas a degenerescência aneurismática focal é
muito rara. A primeira descrição de aneurisma proximal a uma FAV, de etiologia
traumática, foi realizada por Hunter há mais de 200 anos2.
Os doentes com insuficiência renal crónica em programa de hemodiálise dependem
da criação e manutenção de um acesso vascular, preferencialmente uma FAV pela
sua maior permeabilidade e menor taxa de complicações a longo prazo. Nestes
doentes, a maioria dos aneurismas periféricos são pseudo-aneurismas
anastomóticos do acesso ou aneurismas venosos decorrentes da punção repetida de
FAV. Nos doentes com transplante renal frequentemente a primeira técnica de
substituição renal utilizada é a hemodiálise através de FAV durante um período
limitado de tempo. Estes últimos doentes pela sua maior sobrevida associada à
longa persistência no tempo de um acesso vascular podem constituir um grupo
particularmente susceptível à degenerescência aneurismática da artéria dadora.
Os objectivos do presente estudo consistiram na caracterização clínica e
demográfica dos doentes com transplante renal e aneurisma umeral associado a
fístula rádio-cefálica laqueada/ocluída, na análise da estratégia diagnóstica e
dos resultados da terapêutica cirúrgica adoptada.
Material e métodos
Os processos hospitalares de todos os doentes submetidos a cirurgia de
reconstrução da artéria umeral no Hospital de Santa Maria (Lisboa), de Novembro
de 2002 a Dezembro de 2012 foram revistos. Os doentes com transplante renal e
aneurisma umeral associado a fístula rádio-cefálica laqueada/ocluída foram
selecionados, tendo sido excluídos doentes com pseudo-aneurismas anastomóticos
do acesso vascular ou com aneurismas venosos de FAV.
Definiu-se como aneurisma uma dilatação da artéria umeral superior a 50% do
diâmetro normal esperado3. A etiologia do aneurisma foi estabelecida através da
interpretação da apresentação clínica e dos exames complementares de
diagnóstico nomeadamente, o estudo anatomo-patológico.
Foi registada a informação referente ao tipo de acessos vasculares,
intervenções subsequentes, sintomatologia e cirurgia de reconstrução arterial
através da análise dos processos hospitalares e de entrevista. Foram utilizados
os diagnósticos prévios referenciados para confirmação de hipertensão arterial,
dislipidémia, diabetes e tabagismo.
A cirurgia de reconstrução arterial consistiu em ressecção do aneurisma umeral
e anastomose topo a topo ou interposição de enxerto venoso/protésico.
O follow updos doentes foi realizado através de consulta médica regular e pela
análise dos registos hospitalares. Foi realizada uma consulta extraordinária
para obter uma avaliação actualizada através da clínica e do estudo por
ecodoppler dos procedimentos de reconstrução realizados.
Resultados
Demografia, apresentação clínica e factores de risco
Durante o período de estudo foram identificados 6 doentes (1 mulher e 5
homens), de acordo com os critérios de selecção previamente definidos. À data
da cirurgia de reconstrução arterial, a média de idades dos doentes foi de 54
anos. O quadro clínico mais comum foi o de massa pulsátil indolor no escavado
ante-cubital (4 doentes -66%).
A isquémia aguda do membro superior por trombose do aneurisma ocorreu em 1
doente (17%) e a massa pulsátil associada a dor local verificou-se em 1 doente
(17%).
Todos os doentes eram hipertensos com dislipidémia. Nenhum dos doentes era
diabético e 3 doentes (50%) eram fumadores ou ex-fumadores.
Acesso vascular e transplante renal
Todos os doentes apresentavam uma fístula rádio-cefálica distal ao aneurisma
umeral, que à data da intervenção cirúrgica de reconstrução arterial não se
encontrava permeável. Em metade dos doentes (3/6 doentes) a fístula foi
laqueada previamente por dilatação aneurismática e/ ou motivos estéticos e nos
outros 3/6 doentes verificou-se trombose espontânea. O tempo médio de
permeabilidade dos acessos foi de 159 meses.
Todos os doentes estavam em terapêutica de substituição renal através de
transplante renal e sob imunossupressão (prednisolona e ciclosporina e/ou
outros), em média há 168 meses.
Aneurisma umeral e estudo complementar
O estudo por ecoDoppler foi o exame complementar inicial em todos os doentes e
mostrou-se suficiente para a realização da intervenção cirúrgica de
reconstrução arterial em 5 doentes (83%). Este exame permitiu avaliar o
diâmetro do aneurisma umeral (32,5 mm em média), a presença de trombo mural, a
permeabilidade das artérias de antebraço e seleccionar um conduto venoso
adequado. Um doente (17%) cuja clínica de apresentação foi a de isquémia aguda
do membro por trombose do aneurisma e embolização periférica, foi submetido a
estudo complementar por angiografia (fig._1).
O estudo anatomo-patológico da parede arterial foi realizado em 5 doentes (83%)
e evidenciou fragmentação elástica, atrofia muscular e espessamento fibrótico
da íntima, aspectos similares aos da parede dos aneurismas degenerativos
associados a aterosclerose.
Intervenção cirúrgica e complicações
A cirurgia de reconstrução umeral consistiu em ressecção aneurismática e
anastomose topo-a-topo (1 doente ' 17%) ou interposição de enxerto venoso/
protésico em posição umero-umeral (5 doentes ' 83%). Utilizou-se como enxerto a
veia basílica em 2 doentes, a veia safena interna invertida em 2 doentes (fig.
2) e prótese de politetrafluoretileno de 6mm em 1 doente. Não se verificaram
complicações pós-operatórias imediatas, à excepção de um hematoma do escavado
ante-cubital que necessitou de drenagem e revisão da hemóstase.
No follow-up até Dezembro de 2012, em média de 35 meses (1 a 77 meses), não
houve casos de perda de membro ou de mortalidade mas registaram-se re-
intervenções em 3 doentes (50%).
Um doente apresentou-se com isquémia aguda do membro superior por trombose de
enxerto protésico aos 2 meses pelo que foi submetido a ressecção da
revascularização prévia e interposição de prótese de politetrafluoretileno de
8mm em posição umero-umeral. Este enxerto sofreu oclusão precoce (24 horas) mas
foi possível preservar o membro superior após terapêutica médica prolongada
(alprostadilo e anti-coagulação). Aos 15 meses de vigilância não apresenta
limitação funcional relevante ou isquémia crítica do membro e a avaliação por
ecoDoppler mostra a artéria umeral profunda vicariante e amplo fluxo de
reabitação distal.
No follow-upde 53 meses verificou-se degenerescência aneurismática da artéria
umeral proximal (35 mm) num doente submetido previamente a ressecção
aneurismática e reconstrução topo-a-topo umeral. Foi submetido a laqueação/
exclusão aneurismática e interposição umero-umeral com prótese de
politetrafluoretileno de 8 mm, permeável e sem complicações aos 24 meses de
vigilância.
No período de seguimento assistiu-se a um aumento progressivo do diâmetro em 3
dos 4 enxertos venosos implantados (75%) com ou sem envolvimento da artéria
nativa proximal. Os dois doentes com enxerto de veia basílica (100%) apresentam
18 mm e 20 mm de maior diâmetro, respectivamente aos 52 e 13 meses de follow-up
(figs._3_e_4). Um doente com degenerescência aneurismática de enxerto de veia
safena interna invertida (40 mm) e artéria umeral proximal aos 60 meses foi
submetido a by passaxilo-umeral distal com prótese de politetrafluoretileno de
8 mm. Aos 13 meses de vigilância o by passencontra-se permeável e sem defeitos
anastomóticos, na avaliação por ecoDoppler.
Discussão
O padrão de fluxo hiperdinâmico ao qual o território arterial proximal a uma
FAV é submetido induz uma susceptibilidade à degenerescência aneurismática
associada a alterações ateroscleróticas4. Esta dilatação arterial proximal foi
observada em fístulas permeáveis mas também após a sua oclusão, inferindo-se
que o estímulo hemodinâmico inicial terá desencadeado um conjunto de alterações
morfológicas que perduraram no tempo, independentemente da permeabilidade da
fístula5-7.
Os mecanismos subjacentes a esta remodelação arterial foram sujeitos a estudo
por diversos autores. Foi proposto inicialmente um modelo hemodinâmico e
morfológico por Sako e Varko1, mais tarde complementado com a análise da
influência de factores endoteliais8,9. Todos os doentes da nossa série
submetidos a estudo anatomo-patológico da parede arterial umeral apresentavam
alterações estruturais relevantes como fragmentação elástica, atrofia muscular
e espessamento fibrótico da íntima.
Na nossa série todos os doentes com aneurisma umeral associado a fístula rádio-
cefálica laqueada/ocluída eram portadores de transplante renal e sob
terapêutica imunossupressora. Esta eventual associação entre FAV/ transplante
renal e o aumento de diâmetro da artéria umeral foi analisada por Eugster10,
verificando que a dilatação da artéria umeral era dependente do tempo e em
média superior ao grupo de controlo sem transplante renal (7,4 mm versus 5,7
mm), apesar de não ter encontrado significado estatístico. Na nossa instituição
durante o período de 10 anos não foi submetido a cirurgia reconstrutiva nenhum
doente com aneurisma umeral associado a FAV sem ser portador de transplante
renal.
A corticoterapia à qual os doentes do nosso grupo estão sujeitos pode ter
influência no ritmo da degenerescência aneurismática umeral, à semelhança do
verificado em estudos prévios relativos ao aneurisma da aorta11,12.
As principais complicações do aneurisma umeral devem-se à presença de trombo no
seu interior (fig._5) que pode condicionar embolização periférica associada a
progressiva oclusão das artérias distais (complicação mais frequente e por
vezes assintomática) ou de trombose aguda do aneurisma com eventual risco de
perda de membro. A ruptura é rara e menos frequente que a sintomatologia
compressiva do aneurisma sobre as estruturas vizinhas, nomeadamente o nervo
umeral. A artéria umeral é funcionalmente semelhante à artéria popliteia, pelo
que provavelmente a história natural dos aneurismas destas artérias é
semelhante e a indicação operatória comum13.
Na nossa série 1 doente (17%) foi admitido por isquémia aguda por trombose do
aneurisma com embolização distal associada e 1 doente (17%) apresentava dor
local por compressão nervosa. Nenhum doente sofreu ruptura do aneurisma e 4
doentes (83%) foram diagnosticados e submetidos a tratamento sem sintomas
associados, além da presença de massa pulsátil no escavado ante-cubital, o que
expressa a importância de um programa de monotorização pós-cirurgia de
construção de acessos vasculares para hemodiálise.
A análise dos nossos resultados mostraram que existe uma tendência para a
progressiva dilatação dos enxertos venosos (3/4 doentes ' 75%) quer de safena
interna (em 50% dos doentes) quer de basílica (em 100% dos doentes), sobretudo
após o primeiro ano, o que motivou intervenção cirúrgica em 1/4 doentes (25%) e
reforçou a necessidade de follow-upregular com estudo ecográfico. Nenhum doente
com enxerto venoso sofreu oclusão precoce ou tardia (follow upmáximo de 52
meses), mostrando excelente permeabilidade a longo termo. Provavelmente estes
resultados reflectem a noção prévia obtida na cirurgia de revascularização
infra-inguinal por doença aterosclerótica, onde o enxerto venoso é o conduto de
eleição pelo seu melhor comportamento e permeabilidade em locais de flexão/
extensão associado a baixo risco de infecção14.
Na nossa série foi utilizado como enxerto, na primeira intervenção, prótese de
politetrafluoretileno em apenas 17% dos doentes (1 doente) por ausência de
conduto venoso adequado e esteve associado a oclusão precoce aos 2 meses. No
entanto, os 2 doentes em quem foi utilizado conduto protésico na segunda
intervenção, por degenerescência aneurismática da reconstrução prévia, estão
assintomáticos e com os enxertos permeáveis (follow-up máximo de 24 meses).
Apesar de case reports isolados de aneurismas umerais em contexto de FAVs
estarem publicados internacionalmente5,6,13, após uma revisão da literatura
através da base de dados PubMedem Abril de 2013 apenas destacamos três séries
de características similares à que apresentamos no presente artigo (tabela_1).
Estas séries foram publicadas por Chemla et al.15(13 doentes), por Marzelle et
al.14(10 doentes) e por Eugster et al.10 (2 doentes).
Chemla et al.15identificou de forma retrospectiva, entre Janeiro de 2006 e
Julho de 2009, 13 doentes (93% homens) com média de 51 anos de idade e
aneurisma da artéria umeral (tempo médio de formação 40 ± 35,8 meses) associado
a FAV umero-cefálica. Todos os doentes foram submetidos a intervenção
cirúrgica, com ressecção do aneurisma e reconstrução topo-a-topo (7/13 doentes)
ou interposição de enxerto venoso (6/13 doentes). Aos 14 meses todos os doentes
estavam assintomáticos e com a reconstrução arterial permeável.
Marzelle et al.14apresentou uma série retrospectiva, entre Janeiro de 2006 e
Maio de 2011, de 10 doentes com aneurisma da artéria dadora de acesso vascular.
Foram identificados 7 aneurismas umerais, 1 axilar, 1 radial e 1 cubital. O
acesso vascular inicial foi radio-cefálico em 6 doentes. O diâmetro médio dos
aneurismas foi de 44,5mm e foram diagnosticados em média após 117,5 ± 53,8
meses. Oito/dez doentes foram submetidos a intervenção cirúrgica com ressecção
do aneurisma e interposição de enxerto (3 venosos, 4 protésicos e 1 alo-
enxerto). Dois doentes foram submetidos a segunda intervenção com by
passprotésico por aneurisma dos enxertos venosos e artéria proximal. No follow-
upde 20,3 ± 17 meses todos os bypass estavam permeáveis, à excepção de um.
Concluiu-se que o aneurisma da artéria dadora era uma complicação rara mas
relevante associada ao acesso vascular, com necessidade de tratamento cirúrgico
pelas suas potenciais complicações mas que o conduto de eleição para a
reconstrução arterial não estava bem definido.
Eugster et al.10apresentou um estudo prospectivo, de 1991 a 2001, de análise
por ecoDoppler da dilatação arterial da artéria umeral associado a FAV em 29
doentes com transplante renal. No decurso do estudo 2 doentes foram submetidos
a ressecção de aneurismas umerais sintomáticos e interposição de enxerto com
veia safena interna, não sendo mencionados dados adicionais.
A nossa série é constituída exclusivamente por doentes insuficientes renais
crónicos com transplante renal e aneurismas umerais em membros com fístula
rádio-cefálica laqueada/ocluída e tem o maior período de follow-up. Foi
possível analisar o comportamento particular das diferentes formas de
reconstrução arterial a longo prazo, sendo os nossos resultados comparáveis aos
das séries previamente mencionadas.
Conclusões
O desenvolvimento do aneurisma umeral pode ser consequência do remodeling
expansivo provocado pelo alto débito e shearstress proximal à FAV. A maior
sobrevida dos doentes com transplante renal em relação aos doentes em
hemodiálise e o eventual efeito da terapêutica imunossupressora, permitiram
observar este efeito degenerativo dependente do tempo. Os nossos resultados
sugerem que a cirurgia de revascularização é tecnicamente exigente mas com
resultados favoráveis. O conduto de eleição deve ser o venoso pela sua maior
permeabilidade a longo prazo mas exige vigilância rigorosa e intervenção
precoce pela potencial degenerescência aneurismática tardia.