Abordagem cirúrgica multidisciplinar como melhor opção terapêutica no carcinoma
de células renais com envolvimento vascular
Introdução
O carcinoma de células renais (CCR) representa 2-3% de todos os tumores
sólidoseéo terceiro tipo de tumor mais comum do sistema urinário
representando 90-95% de todos os tumores renais1. Tem uma incidência estimada
de 6-12 casos por cada 100.000 habitantes nos paÃses ocidentais, sendo mais
frequente nos homens do que nas mulheres (ratio 1,5:1); o seu pico de
incidência ocorre entre os 60 e os 70 anos2,3. São fatores etiológicos o
tabagismo, a obesidade e a hipertensão. Ter um familiar em primeiro grau com
CCR também está associado a um risco aumentado4.
O CCR pode permanecer clinicamente oculto até um estádio avançado, uma vez
que apenas 10% dos doentes apresentam a trÃade clássica composta por dor no
ï¬anco, hematúria e massa palpável3,5.
O tamanho do tumor, a invasão da gordura perirrenal, a invasão ganglionar e
as metástases à distância são fatores de prognóstico importantes e
independentes no CCR. A invasão da veia cava inferior (VCI) a qualquer nÃvel
diminui signiï¬cativamente e de forma independente o prognóstico de sobrevida
dos doentes com CCR8. A cirurgia agressiva, constituÃda pela nefrectomia
radical e trombectomia cirúrgica do trombo tumoral, parece ser a única forma
de alterar o prognóstico clÃnico na ausência de metástases ou invasão
ganglionar.
Caso clÃnico
Os autores apresentam o caso de um doente de 57 anos, sexo masculino, sem
patologia conhecida, com antecedentes de tuberculose pulmonar na adolescência,
assintomático até 6 meses antes do internamento, quando inicia queixas de
cansaço e perda ponderal signiï¬cativa (mais de 10% do peso corporal). Duas
semanas antes do internamento refere o aparecimento súbito de dor lombar
esquerda acompanhada de hematúria macroscópica, pelo que recorre ao serviço
de urgência do hospital da área de residência.
à observação apresentava-se emagrecido, com massa abdominal palpável nos
quadrantes esquerdos, indolor, de consistência dura, limites mal deï¬nidos,
contornos irregulares e bosselados, aderente aos planos profundos e com cerca
de 20 cm de maior diâmetro.
Para esclarecimento da clÃnica e por suspeita de massa tumoral realizou
inicialmente ecograï¬a abdominal e posteriormente TC toraco-abdominal e
pélvica que revelou a presença de volumosa massa renal esquerda (ï¬g._1),
com trombo tumoral preenchendo a veia renal esquerda e a VCI até à aurÃcula,
sem preenchimento da mesma (ï¬g._2), visualizável por ecograï¬a
transesofágica. O doente foi transferido para a nossa instituição e
preparado para abordagem cirúrgica multidisciplinar envolvendo as equipas de
urologia, cirurgia vascular, cirurgia cardiotorácica e anestesiologia.
Em contexto eletivo foi submetido a nefrectomia radical esquerda/tumorectomia,
efetuada por laparotomia de chevron. Durante a nefrectomia e por necessidade de
mar-gens cirúrgicas alargadas ocorreu lesão iatrogénica da aorta
infrarrenal, com necessidade de reparação da mesma com interposição de
prótese de Dacron de 18 mm em posição aorto-aórtica (ï¬g._3).
Após a nefrectomia procedeu-se ao rebatimento do colon direito e por abordagem
de Kocher isolou-se a VCI e a conï¬uência das 2 veias renais, seguiu-se o
tempo cardÃaco com a esternotomia, seguida de canulação da veia cava
superior e aorta ascendente, entrada em circulação extracorporal e exérese
do trombo tumoral por venotomia da VCI e atriotomia direita. Terminada a
trombectomia procedeu-se ao encerramento da venotomia (ï¬g._4) e atriotomia,
assim como revisão da hemóstase, saÃda de circulação extracorporal e, por
ï¬m, encerramento das feridas cirúrgicas (ï¬g._5).
O pós-operatório decorreu sem intercorrências, o exame anatomopatológico da
peça cirúrgica (ï¬g._6) conï¬rmou tratar-se de um tumor de células renais
variante células claras grau III (Fuhrman), constatando-se ainda invasão do
tecido adiposo perirrenal. O trombo retirado da VCI foi compatÃvel como massa
tumoral de CCR (ï¬g._7).
O doente foi transferido para o hospital da área de residência ao 13.â¦dia
do pós-operatório clinicamente recuperado.
Discussão
A referência mais antiga sugestiva de descrição de um tumor do rim foi feita
por Daniel Sennert, em 1613, no seu texto Practicae Medicinae. Neste, Sennert
descrevia uma massa má ao nÃvel dos rins que tinha a capacidade de causar uma
caquexia extrema e edemas generalizados conduzindo invariavelmente à morte dos
doentes9. Desde este primeiro relato muitas classiï¬cações e
diferenciações têm sido feitas. Atualmente a orientação terapêutica e
prognóstico para o CCR obedece ao estadiamento TNM4, sendo a sobrevida
dependente das dimensões da massa tumoral, da propagação para as estruturas
adjacentes, invasão vascular, envolvimento dos gânglios linfáticos e da
presença ou não de metástases à distância4.
A realização de exames imagiológicos pré-operatórios de alta resolução,
como a TC-abdominal (gold standard), a RMN e a ecograï¬a, são cruciais uma
vez que se torna essencial determinar o tamanho do tumor, a invasão das
estruturas adjacentes, gânglios linfáticos afetados, metástases, presença e
extensão de trombo tumoral4.
A invasão venosa é caracterÃstica do CCR, apresenta-se invariavelmente sob a
forma de trombo ascendente a partir da veia renal 23%, trombo ocupando a VCI 7%
e trombo alcançando a aurÃcula direita em 1%6,7. De acordo com a
classiï¬cação de Novick a extensão do trombo tumoral pode englobar-se em 4
tipos (ï¬g.8): no tipo I o trombo localiza-se predominantemente na veia cava
infra-hepática, não se prolongando no interior da VCI mais do que 2 cm; no
tipo II estende-se à veia cava infra-hepática; no tipo III o trombo preenche
VCI intra-hepática abaixo do diafragma e quando ultrapassa o diafragma é
considerado trombo tumoral do tipo IV13. A abordagem cirúrgica, assim como a
constituição da equipa cirúrgica, depende do nÃvel invasão da VCI, pelo
que, para Lawindy et al., no tipo I o tratamento pode ser realizado só pelo
urologista, consistindo na nefrectomia e evacuação do trombo tumoral seguido
de venorraï¬a primária. No tipo II a equipa deverá ser constituÃda por um
urologista e um cirurgião vascular, procedendo-se à nefrectomia, seguida de
venotomia da VCI para trombectomia. No tipo III a equipa será constituÃda
pelos anteriormente referidos com o apoio de um cirurgião biliodigestivo para
realizar a mobilização hepática e no tipo IV a equipa será formada por um
urologista, um cirurgião vascular e um cirurgião cardiotorácico, como é
exemplo o caso por nós apresentado, uma vez que será necessária circulação
extracorporal e atriotomia direita13.
Nos casos em que existe invasão tumoral dos vasos a única abordagem que
parece melhorar o prognóstico aumentando a sobrevida foi descrita por Robson,
em 1963, e consiste na nefrectomia radical associada à trombectomia da massa
tumoral intravenosa, pelo que o tratamento cirúrgico é o tratamento de
eleição a seguir nestes casos11. Se houver invasão direta da parede da veia
pelo tumor parece haver um pior prognóstico, sendo necessária a ressecção
da mesma para aumentar a sobrevida10. Este procedimento não é isento de
riscos, uma vez que aumenta o nÃvel de diï¬culdade do ato cirúrgico,
incrementa o risco operatório para o doente e o risco de hemorragia maciça ou
tromboembolismo pulmonar de massa tumoral14.
Muitos trabalhos têm demonstrado que o envolvimento venoso e o estadiamento do
tumor têm impacto na sobrevida, contudo, o impacto da extensão do trombo na
sobrevivência tem sido controverso. Embora a invasão venosa não tenha sido
correlacionada com a presença de doença presente nos gânglios linfáticos ou
metastática, Glazer, Novick e Wagner demostraram diferenças na presença de
metástases no grupo com envolvimento da VCI contra doentes só com
envolvimento da veia renal, assim como diferenças entre doentes com
compromisso da aurÃcula contra aqueles só com envolvimento da VCI 8,12.
Inicialmente postulava-se que havia uma redução da probabilidade de
sobrevivência associada a extensão do trombo na VCI, no entanto, estudos mais
recentes demonstraram não haver impacto negativo na sobrevida em relação com
a extensão do trombo na VCI, parecendo haver sim diferenças quando o trombo
se limita à veia renal8.
A abordagem cirúrgica do doente com CCR e invasão da VCI deve ser
individualizada de acordo com a extensão do trombo, caracterÃsticas do tumor
renal primário e comorbilidades do doente. No estadiamento TNM4a presença ou
não de trombo tumoral tem mais inï¬uência sobre a probabilidade de
sobrevivência especÃï¬ca do tumor do que a extensão cefálica do mesmo.
Segundo diversos autores nos estádios T3b e T3c (tabela_1)15, como no caso por
nós descrito é essencial a colaboração na sala operatória de uma equipa
multidisciplinar experiente composta por urologistas, cirurgiões vasculares e
cardiotorácicos, uma vez que a melhor abordagem será a nefrectomia radical,
entrada em circulação extracorporal, seguida da evacuação do trombo da VCI
recorrendo a cavotomia e atriotomia como anteriormente referido13.
Conclusão
A complexidade técnica do tratamento dos tumores de células renais com
invasão vascular obriga à referenciação para centros de referência onde
possa ser utilizada uma abordagem multidisciplinar. A cirurgia vascular
contribui não só para o tratamento e alteração do prognóstico desta
entidade através da evacuação da massa tumoral dos vasos, mas tem também um
papel fundamental na reparação das estruturas vasculares eventualmente
lesadas durante a exérese tumoral.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta
investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
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*Autor_para_correspondência:
Correio eletrónico:josetiagus@gmail.com (J. Tiago).
Recebido a 15 de julho de 2014;
Aceite a 1de outubro de 2014
DisponÃvel na Internet a 15 de janeiro de 2015