Evolução e tendências formativas em angiologia e cirurgia vascular: a
experiência de uma instituição
Introdução
A especialidade de angiologia e cirurgia vascular sofreu uma profunda alteração
com a introdução e generalização das técnicas endoluminais. Com a cirurgia
endovascular a ocupar uma proporção crescente entre os procedimentos1-3deduz-se
que esta mudança na abordagem terapêutica da especialidade tenha também
repercussões na formação dos internos. Para além disto, os próprios programas
de formação do internato de angiologia e cirurgia vascular, bem como a visão do
internato, mudaram, havendo uma preocupação crescente pela atividade científica,
para além da atividade assistencial4. Esta preocupação e necessidade de uma
maior dedicação à atividade científica durante o internato estão implícitas na
atual grelha de avaliação final no exame nacional para o grau de especialista5.
Por isto, os autores propõem-se a fazer um estudo retrospetivo da atividade
realizada durante o internato nos últimos 15 anos na instituição, com o
objetivo de mostrar as tendências na formação durante o internato complementar
de angiologia e cirurgia vascular ao longo do tempo, nomeadamente quanto à
exposição a procedimentos cirúrgicos e atividade científica.
Materiais e métodos
Após identificação dos médicos que terminaram o Internato Complementar de
Angiologia e Cirurgia Vascular entre janeiro de 2001 e março de 2014,
inclusive, no Hospital de Santa Marta, os currículos submetidos para realização
do exame nacional para o grau de especialista foram consultados. A consulta e a
colheita de dados foram realizadas após aprovação da Direção de Serviço.
Foi criada uma base de dados onde foram introduzidos dados dos diferentes
currículos, nomeadamente os procedimentos realizados dos principais grupos de
patologias vasculares (doença cerebrovascular, doença arterial obstrutiva
periférica [DAOP] aorto-ilíaca e infrainguinal, aneurismas aorto-ilíacos [AAA]
e periféricos, acessos vasculares, traumatismos vasculares e doença venosa
crónica), sendo diferenciados em cirurgia convencional e endovascular. A
classificação dos procedimentos em convencional e endovascular baseou-se no
European Board of Vascular Surgery(EBVS)6:
- Um procedimento vascular via cirurgia convencional é aquele que requer a
exposição cirúrgica de uma ou mais artérias e/ou veias para a correção de
doenças arteriais/venosas, reparação de lesões arteriais/venosas e tratamento
de outras doenças que exigem a reconstrução arterial e/ou venosa.
- Um procedimento via endovascular é aquele em que se utilizam fios guia e/ou
cateteres em uma ou mais artérias ou veias, guiados por fluoroscopia, para os
mesmos fins atrás referidos.
Todos os procedimentos foram diferenciados, quanto à realização, como cirurgião
principal ou cirurgião ajudante.
Os procedimentos realizados como cirurgião principal foram ainda divididos em
básicos, intermédios e avançados relativamente à diferenciação técnica exigida
ao cirurgião, tendo como base a classificação do EBVS6(tabela_1). Todos os
procedimentos endovasculares por DAOP foram considerados como intermédios
devido à dificuldade em determinar em cada procedimento o tipo de lesão
(estenose vs. oclusão). As arteriografias diagnósticas, apesar de classificadas
no EBVS como um procedimento endovascular de grau básico, foram excluídas da
classificação no estudo, pois não são consideradas como intervenções cirúrgicas.
Para além dos procedimentos, foi consultada a atividade científica realizada
durante o internato, incluindo resumos apresentados em reuniões ou congressos e
publicações como primeiro e coautor.
Os endpointsdeste estudo foram: número total de intervenções cirúrgicas, número
de procedimentos endovasculares, diferenciação da atividade como cirurgião
principal, número de procedimentos para correção (convencional vs.
endovascular) de AAA e atividade científica (publicações e comunicações)
realizada.
Análise estatística
Foram apresentados números absolutos dos endpoints(N) ou média +− desvio padrão
em anos com mais do que um candidato. Os totais foram expressos como média +/−
desvio padrão. A correlação entre os endpointse o ano de conclusão do internato
complementar foi testada usando o coeficiente de correlação de Spearman.
Adicionalmente, a correlação entre os diferentes endpointse a idade e o género
dos candidatos foi testada. Valores de correlação (rho) entre 0,7-0,9 foram
considerados como uma forte correlação, entre 0,50,7 como moderada correlação e
abaixo de 0,5 como fraca correlação. Todos os testes foram realizados de forma
bilateral e foi considerado significado estatístico se o valor p < 0,05. Para a
análise estatística foi utilizado o software SPSS para Windows (versão 20).
Resultados
De 2001-2014 concluíram o internato de angiologia e cirurgia vascular na
instituição 13 sujeitos, com idade média 35 ± 5,9, sendo 4 sujeitos (31%) do
sexo feminino. A exposição média a procedimentos cirúrgicos foi 2.518 ± 310,
dos quais 2.026 ± 291 foram procedimentos vasculares. A média de trabalhos
científicos apresentados como primeiro autor foi 9,7 ± 5,7 e a média de
publicações como primeiro autor foi 4,5 ± 5,9.
Apesar da exposição a intervenções cirúrgicas se ter mantido constante,
verificou-se um gradual incremento na proporção de procedimentos endovasculares
(fig._1). Constatou-se uma forte correlação entre o número de procedimentos
endovasculares e o ano de conclusão do internato complementar (rho = 0,869, p <
0,001). Não existiu correlação entre o número de procedimentos ou proporção
endovascular no que respeita a idade ou género.
Relativamente à atividade científica, verificou-se uma forte correlação entre o
período de tempo e o número de publicações, tanto quanto ao número total de
publicações (rho = 0,879, p < 0,001) como publicações como primeiro autor (rho
= 0,885, p < 0,001), e entre o período de tempo e o número total de resumos
apresentados (primeiro e coautor) (rho = 0,753, p < 0,001) (fig._2). Não se
verificou uma correlação entre o período de tempo e o número de
abstractsapresentados como primeiro autor (rho = 0,526, p = 0,065).
De igual forma, em relação à atividade científica, não se identificou correlação
entre a atividade científica e a idade ou sexo.
Quanto à realização de cirurgias com diferentes graus de diferenciação,
verificou-se uma correlação positiva entre o ano de conclusão de internato e os
procedimentos endovasculares de grau avançado (rho = 0,839, p < 0,001), os
procedimentos endovasculares de grau intermédio (rho = 0,857, p < 0,001) e as
cirurgias convencionais de grau avançado (rho = 0,573, p = 0,041) (figs._3 e 4).
Não houve correlação com a idade de conclusão do internato e sexo, com exceção
de uma correlação negativa entre a idade e as cirurgias convencionais de grau
avançado (rho = −0,742, p < 0,001) e intermédio (rho = −0,604, p = 0,029).
Dentro dos procedimentos mais diferenciados, como cirurgião principal, na
patologia aneurismática da aorta abdominal verificou-se um incremento da
correção endovascular desta (de 2007-2014 um aumento de cerca de 257%, até 2007
não foram realizados EVAR como cirurgião principal). O número de procedimentos
endovasculares para correção desta patologia foi sempre inferior à cirurgia
convencional, com exceção do ano de 2014 (fig.5).
Verificou-se uma forte correlação entre o ano de conclusão do internato e os
procedimentos de EVAR (rho = 0,821, p = 0,001). Não se identificou correlação
entre estes procedimentos e a idade ou sexo.
Tendo em conta os procedimentos vasculares de diferenciação avançada,
convencionais e endovasculares, verificou-se uma correlação fortemente positiva
entre estes e o total de abstracts apresentados e publicados (rho = 0,839 e rho
= 0,856, p < 0,001), bem como com os abstracts apresentados e publicados como
primeiro autor (rho = 0,858, p < 0,001 e rho = 0,846, p < 0,001,
respetivamente).
Discussão
O presente estudo revela uma interessante evolução na formação em angiologia e
cirurgia vascular nos últimos 15 anos de um serviço terciário de volume
elevado. Verificou-se uma exposição cirúrgica total relativamente constante, com
uma proporção crescente de procedimentos endovasculares, bem como de
procedimentos mais diferenciados. A atividade científica teve uma evolução
tendencialmente crescente e ainda uma correlação positiva com a realização de
procedimentos mais diferenciados. No geral, verificou-se que o género ou idade
de conclusão de internato não influenciam a atividade assistencial e científica.
Apesar da exposição total a intervenções cirúrgicas se ter mantido estável,
verificou-se um incremento exponencial no número de procedimentos endovasculares
e um correspondente decréscimo na cirurgia convencional. Dentro destes
procedimentos, tendo em conta o grau de diferenciação técnica exigida ao
cirurgião, houve um aumento significativo no número de procedimentos de elevado
grau de diferenciação realizados como cirurgião principal, quer por cirurgia
convencional quer endovascular. Não se verificou correlação entre a idade de
conclusão do internato ou sexo e estes endpoints, com exceção de uma correlação
negativa entre a idade de conclusão do internato e as cirurgias convencionais
realizadas como cirurgião principal de diferenciação intermédia e avançada.
Schanzeret al.7avaliaram a exposição cirúrgica entre 2001-2007 num serviço
terciário nos Estados Unidos da América e encontraram uma exposição crescente a
procedimentos cirúrgicos, à custa principalmente dos procedimentos
endovasculares. Concluíram que este aumento do número total de procedimentos
estava relacionado com a menor invasibilidade dos procedimentos endoluminais e,
consequentemente, um número maior de doentes com elevado risco operados. O
número de cirurgias convencionais manteve-se relativamente estável, sendo o
tipo de cirurgia realizado mais complexo. Os resultados de Schanzeret al.7estão
de acordo com os encontrados neste estudo, com exceção do número de
procedimentos via cirurgia convencional se ter mantido constante nesse estudo.
Apesar de não estar especificado por Schanzeret al.7, o que se entende por
cirurgias mais complexas subentende-se que corresponderão na maioria dos casos
aos procedimentos classificados neste estudo, como de maior diferenciação
técnica, estando assim em concordância com os resultados deste estudo.
No presente estudo constatou-se uma exposição decrescente à cirurgia
convencional (embora sem significado estatístico), mas claramente predominante à
cirurgia endovascular. Apesar da preocupação expressa em outros trabalhos
relativa a uma menor aquisição de competências para a cirurgia convencional
durante o internato de angiologia e cirurgia vascular8,9, o presente estudo não
suporta esse ponto de vista ao demonstrar que a formação em cirurgia
convencional continua a ser predominante e com gradual incremento na
diferenciação dos procedimentos.
No caso específico da patologia aneurismática da aorta abdominal, Choiet
al.8concluíram que, durante o internato, a exposição a correção endovascular de
AAA está a aumentar ao contrário da cirurgia convencional. Dado o risco na
cirurgia convencional eletiva do AAA estar diretamente relacionado com a
experiência do cirurgião10,11,a menor exposição a cirurgias convencionais
durante o internato pode ter implicações no futuro. No presente estudo
verificou-se também um aumento da proporção de procedimentos endovasculares para
exclusão de AAA ao longo do tempo. Contudo, o número absoluto de cirurgias
convencionais foi sempre superior ao número de procedimentos endovasculares,
com exceção do último ano analisado. Apesar de se ter verificado uma prática
crescente de cirurgia convencional de maior diferenciação, o que traduz, em
princípio, uma maior aquisição de competências técnicas, e não se verificar um
decréscimo do número de correções de AAA por cirurgia convencional, a patologia
aneurismática da aorta abdominal em concreto, pelo desafio técnico que impõe,
chama a atenção para a questão atrás referida da preocupação da menor aquisição
de competências técnicas para a cirurgia convencional. Uma vez que a tendência
evolutiva da especialidade é para a correção endovascular desta patologia,
quando tecnicamente possível, faz sentido uma maior diferenciação nesta área
durante o internato, para que se torne uma prática global. Assim, para que os
melhores resultados na cirurgia convencional sejam atingidos talvez deva haver
uma subespecialização desta num centro. Uma limitação inerente a este sistema e
de difícil contorno seria a intervenção urgente/emergente nesta patologia.
Quanto à atividade científica, verificou-se um aumento gradual e constante no
número total de publicações científicas e apresentações de resumos em congressos
e/ou reuniões científicas. Este incremento está associado a uma tendência global
para elevar o padrão científico dos médicos-cirurgiões, com maior envolvimento
em investigação básica e clínica como complemento da sua atividade
assistencial. Esta tendência é bem expressa nas grelhas de avaliação nacionais
e europeias, que servem como estímulo adicional à publicação e comunicação
científica. Estas variações não se correlacionaram com a idade ou o género do
candidato.
Relacionando a atividade científica e assistencial, constatou-se que os sujeitos
que mais realizaram procedimentos de diferenciação avançada, como cirurgião
principal, também foram os que mais realizaram atividade científica, havendo uma
forte correlação entre estes 2 endpoints. Este resultado sugere que os mais
interessados em ter um bom currículo cirúrgico assistencial são também aqueles
que mais procuram atividade científica. Contudo, não foram encontrados dados na
literatura relativamente a variações temporais na atividade científica durante o
internato médico, não sendo assim possível confirmar se esta observação é um
fenómeno local ou se pelo contrário espelha uma tendência global.
Este estudo está limitado pelo desenho retrospetivo, pela pequena amostragem e
por tratar-se de uma série de uma única instituição. Estes fatores limitam a
generalização dos resultados. No entanto, é expectável que, apesar das
diferenças inerentes às características de diferentes serviços, estes
resultados sejam reprodutíveis em contexto de instituições terciárias com
elevado volume cirúrgico.
Conclusão
Este estudo espelha a evolução da especialidade de angiologia e cirurgia
vascular, com o desenvolvimento das técnicas percutâneas, sendo estas uma
prática crescente e que reflete as preocupações formativas atuais, com uma maior
procura de atividade científica e realização de procedimentos mais
diferenciados. Vem também demonstrar que o advento endovascular passou de
exclusivo a especialistas altamente diferenciados para influenciar fortemente a
formação cirúrgica durante o internato complementar.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.