Recanalização subintimal total femoropoplítea após falência de bypass
infrapoplíteo: redefinindo estratégias
Introdução
A falência do bypass femoropoplíteo infra-articular, em especial em doentes com
lesões ateroscleróticas longas e complexas, está tradicionalmente associado ao
desenvolvimento de isquemia crítica, com elevada taxa de amputação1. Em doentes
sem hipótese de revascularização, a mortalidade anual global pode atingir os
50%1.
O desenvolvimento de novos dispositivos para revascularização endovascular tem
produzido resultados promissores a curto e médio prazo. Este facto está
demonstrado em estudos recentes na utilização de stents de alta resistência e
flexibilidade na reconstrução do sector femoropoplíteo. Em doentes com falências
sucessivas de enxertos para bypass, protésicos ou autólogos, a revascularização
endovascular pode apresentar-se como segunda ou única opção terapêutica
possível.
O presente artigo pretende demonstrar um caso clinico de um doente com isquemia
crítica após falência sucessiva de várias revascularizações, cirúrgicas e
endovasculares, com especial interesse na decisão terapêutica, técnica
utilizada e resultados.
Caso clínico
Doente de 62 anos de idade, com antecedentes de tabagismo, hipertensão arterial
e dislipidemia, medicado com antidislipidémico e anti-hipertensor com controlo
tensional e analítico. Referia história de claudicação arterial não limitante
(grau IIa na classificação Lerich-Fontaine) do membro inferior esquerdo de longa
data.
Foi observado no serviço de urgência em julho de 2014 no contexto de agudização
da sintomatologia, apresentando-se com dor e parestesias em repouso do pé
esquerdo. Ao exame físico apresentava sinais de má perfusão de todo o pé, com
pulso femoral esquerdo presente e simétrico, sem pulso palpável do sector
poplíteo e distal. O estudo hemodinâmico revelou índice tornozelo-braço (ITB)
de 0,4.
O doente foi submetido a estudo angiográfico, que revelou placas aterosclerótica
a nível da artéria femoral comum esquerda e oclusão total da artéria femoral
superficial, com repermeabilização na artéria poplítea, com etiologia
aterosclerótica provável.
Tendo em conta os achados, procedeu-se à revascularização cirúrgica com
endarterectomia femoral comum esquerda e construção de bypass femoropoplíteo
supra-articular, utilizando um enxerto protésico reforçado de PTFE. Não se
observaram complicações pós-operatórias, com resolução dos sintomas e
recuperação de pulsos distais a nível do pé. O doente teve alta com medicação
prévia e antiagregação simples com aspirina 100 mg/dia.
Em outubro de 2014, 3 meses após a revascularização inicial, o doente recorre
novamente com dor intensa progressiva com 24 h de evolução, associada a
impotência funcional, parestesias do pé e cianose do antepé. O estudo
hemodinâmico não detetou presença de fluxo nos 3 eixos distais e o estudo
ecográfico demonstrou oclusão de bypass, pelo que foi proposto para trombólise
dirigida por cateter com perfusão de alteplase a 0,5 mg/h, após bólus inicial
de 1 mg.
Por agravamento da isquemia e insucesso terapêutico durante a trombectomia
química, foi necessário interromper o tratamento após 24 h e optou-se pela
construção urgente de um novo bypass até à poplítea infra-articular, não
apresentando conduto venoso superficial compatível para bypass na avaliação
ecográfica pré-operatória (fibrose e hipoplasia das veias grandes e pequena
safena bilateralmente).
Não se observaram complicações pós-operatórias, com recuperação de pulso
pedioso. Pela lesão necrótica a nível do hallux, procedeu-se à amputação de
dedo, com cicatrização eficaz. O estudo pró-trombótico subsequente foi negativo,
não apresentava sinais e/ou sintomas ou marcadores analíticos sugestivos de
neoplasia ou infeção de prótese.
Em fevereiro de 2015, 4 meses após a construção do novo conduto, observou-se
nova oclusão de bypass e isquemia crítica com lesão trófica e neurológica.
Procedeu-se a nova tentativa de trombólise química com sucesso inicial, sem
evidência de estenoses intra e pós-bypass, com permeabilidade dos eixos
distais. Constatou-se, contudo, estenose da artéria ilíaca comum esquerda
previamente não observada (complicação provável de acesso contralateral para
trombólise), tendo-se executado uma angioplastia com stenting primário do setor
ilíaco. Novamente, ao 5.◦dia após trombólise, observou-se nova oclusão do
bypass, tendo-se decidido nova trombectomia mecânica por abordagem do enxerto e
remoção de trombo com balão fogarty. O estudo angiográfico intraoperatório
revelou boa saída de contraste para os eixos distais com permeabilidade até ao
pé.
Apesar das múltiplas tentativas de trombectomia da prótese, houve recorrência
da oclusão ao 3.◦dia após a última cirúrgica (fig._1). Pela falência do
tratamento inicial, com trombose sucessiva de condutos vasculares protésicos,
em doente sem conduto venoso autólogo compatível com bypass venoso distal
único, propôs-se para tentativa de revascularização endovascular de todo o
setor femoropoplíteo.
O procedimento endovascular foi iniciado por acesso arterial anterógrado, por
punção percutânea do patch de endarterectomia femoral comum esquerda prévia,
para aumento do suporte e controlo de fios e cateteres. Após tentativa de
recanalização intraluminal sem sucesso, procedeu-se à entrada do espaço
subintimal na artéria femoral superficial no terço proximal e recanalização em
loopaté à poplítea infra-articular, com reentrada intraluminal utilizando um
cateter angulado (Berenstein).
Posteriormente, procedeu-se à pré-dilatação femoropoplítea e implante de 3
stents Supera®(Abbott®), um de 5 x 200 mme2de5 x 100 mm, até ao terço proximal
da artéria femoral superficial. A angiografia de controlo em extensão do membro e
flexão do joelho demonstrou boa patência do stent, sem estenoses residuais e boa
saída de fluxo arterial para os eixos distais (figs._2 e 3).
No pós-operatório imediato não se observaram complicações do procedimento ou do
acesso, com boa perfusão distal do membro, com fluxometria bifásica na tibial
posterior e peroneal a nível do tornozelo (oclusão da artéria tibial anterior
desde a origem) e ITB de 0,79 no membro inferior esquerdo. O estudo ecográfico
às 48 h demonstrou patência dos eixos arteriais tratados, sem estenoses com
significado hemodinâmico, com superfície luminal regular em todo o stent (fig.
4). Dada a lesão trófica a nível dos dedos do pé, o doente foi submetido a
amputação transmetatársica com encerramento direto e cicatrização da incisão
cirúrgica após 2 semanas de intervenção.
Comentários
A isquemia aguda dos membros inferiores, conforme apresentado nas guidelines do
consenso transatlântico TASC II (TransAtlantic Inter-Society Consensus II)1,
apresenta uma taxa associada de amputação aos 30 dias que atinge os 30%.
Associado a este facto, cerca de metade dos doentes com patologia arterial
periférica obliterante agudizada, sem hipótese de revascularização, tem uma
esperança de vida inferior a um ano após a instalação da isquemia crítica.
Em doentes com lesão arterial obliterante do setor femoropoplíteo, a escolha da
revascularização, cirúrgica ou endovascular, não demonstrou diferença
significativa na taxa livre de amputação aos 2 anos, segundo um estudo recente
(BASIL trial)2. Contudo, a análise diferencial após esse período revelou
resultados superiores em doentes com revascularização cirúrgica como primeira
opção, em comparação com doentes submetidos a angioplastia simples com balão.
A escolha do conduto para bypass, apesar de melhoria recente dos condutos
protésicos e na técnica cirúrgica3, mantém resultados favoráveis na opção por
conduto venoso autólogo4, com taxas de patência primárias a chegar perto dos
70% aos 5 anos5.
No caso clinico exposto, com obliteração femoropoplítea longa (TASC D), a
escolha do tipo de conduto encontrava-se condicionada pela ausência de veia
compatível com bypass. A taxa de patência primária e secundária de bypass
femoropoplíteo infra-articular com recurso a conduto protésico simples é baixa
(primária e secundária aos 24 meses de 29,1 e 34,9%, respetivamente)12, em
especial na ausência de técnicas adjuvantes como construção de cuff venoso na
anastomose distal, que permite melhoria da patência do bypass4,12.
Um estudo unicêntrico recente, que teve como objetivo a análise dos resultados
no tratamento endovascular em lesões femoropoplíteas de classificação TASC II
tipo D1, revelou resultados promissores com esta opção terapêutica, com taxa de
patência primária, primária assistida e secundária a um ano de 63, 77 e 96%,
respetivamente6. Não se observaram amputações aos 12 meses de seguimento, e a
análise univariável determinou que o número de eixos de saída é um potencial
preditor de reestenose/oclusão. Estes dados sustentam resultados obtidos
previamente no seguimento a longo prazo de revascularizações endovasculares de
lesões do setor femoropoplíteo7.
A escolha terapêutica na falência do bypass poplíteo infra-articular no doente
descrito teve como base estes dados promissores. A presença de bom fluxo
arterial de saída pelos eixos distais, fator preponderante na patência do
tratamento cirúrgico e endovascular, reforçou a escolha.
A entrada recente no arsenal terapêutico endovascular de stents com alta
flexibilidade e resistência, como os stents Supera®Abbott®, veio colmatar uma
história perda de patência primária no stenting primário em zonas de flexão,
como é exemplo a articulação do joelho7.
Segundo o registo publicado em 2014, o Leipzig SUPERA 500 registry8, com
tratamento de lesões femoropoplíteas complexas com extensão média de 126 mm
(52,6% dos membros com oclusão total crónica), a taxa de patência primária e
secundária aos 24 meses atinge os 72,8 e 92%, respetivamente. Estes dados vêm
reforçar os resultados publicados em 2011 por Scheinert et al.9, com taxas a
variar entre 76,1 e 91,9%, primária e secundária aos 2 anos, sem evidência de
fraturas de stent no controlo por Rx aos 16,8 ± 7 meses de seguimento, com
sucesso terapêutico a atingir os 99%. Os resultados não diferem, aparentemente,
com a severidade inicial dos sintomas, extensão do stent e no implante femoral/
poplíteo, conforme descrito por Chan et al10.
Aproveitando os bons resultados dos estudos publica-dos com o Supera®, mesmo em
lesões complexas, tendo em conta a falência dos bypasses protésicos previamente
construídos, a opção da reconstrução endovascular foi a opção de primeira
linha. Associado a esse facto, a falência dos tratamentos adjuvantes de
trombectomia, química e mecânica, prediziam uma esperada falência posterior de
novas revascularizações cirúrgicas, agravada pela ausência de conduto venoso
compatível. Essa mesma falência ocorreu mesmo com a melhor terapia médica
disponível, que incluía a dupla antiagregação com aspirina e clopidogrel, que
segundo o estudo CASPAR, está associada a aumento de permeabilidade de bypass
protésico infragenicular, em comparação com tratamento com varfarina11.
Apesar dos resultados promissores a curto prazo da revascularização
endovascular longa e complexa do setor femoropoplíteo, em especial com stenting
primário com dispositivos de alta flexibilidade e resistência, a sua escolha
como terapêutica de primeira linha é ainda motivo de controvérsia. Estudos a
longo prazo são ainda necessários.
Conclusão
A revascularização cirúrgica por bypass é ainda a escolha de primeira linha em
lesões obliterantes femoropoplíteas longas e complexas, especialmente com
utilização de condutos autólogos. Contudo, na ausência dos referidos condutos
ou como primeira opção em casos selecionados, a revascularização endovascular
femoropoplitea apresenta-se como opção válida e eficaz, com boas taxas de
patência primária e secundária, peculiarmente no stenting primário total com
stents de alta flexibilidade e resistência.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os autores declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.