O sofrimento no contexto da doença
O sofrimento no contexto da doença
Introdução
O sofrimento é transversal nas várias dimensões do ser humano, circunscreve
características biopsicossociais e espirituais. Etimologicamente sofrimento
"denota pena ou dor que se deve suportar (latim subferre, levar debaixo) Casera
(2001, p. 1043).
Classicamente fala-se no sofrimento físico, quando atribuído ao corpo e mental
quando conotado com a mente. Béfécadu (1993) fala no "sofrimento do corpo ' a
fonte física, sofrimento nas relações interpessoais ' a fonte sociocultural,
sofrimento na vontade, a fonte existencial-espiritual e o sofrimento no
sentimento de unidade e coerência do "eu" ' a fonte psicológica" (cit por
Gameiro, 1999, p. 37). Para Biscaia (1995, p. 7) "a dor e o sofrimento humanos
são atributos da pessoa já que eles pressupõem, não só uma componente
neurológica, mas também a memorização e o repercutir psicológico que lhe dão
uma clara implicação em comportamentos futuros".
O sofrimento é uma experiência pessoal, egocêntrica e complexa que envolve um
evento intensamente negativo ou uma ameaça percebida. O sofrimento pode fazer-
se acompanhar de componentes físicas, cognitivas, afectivas, sociais e
espirituais o que justifica a sua complexidade (Rodgers & Cowles, 1997).
A investigação efectuada à volta do sofrimento traduz grande proximidade
conceptual, verificam-se experiências comuns e outras exclusivas que dependem
não só da causa do sofrimento mas também das especificidades do indivíduo. Mas
o foco do sofrimento não se deve propriamente à causa mas ao risco que
representa para a identidade da pessoa (Gameiro, 1999). Apesar de não
conseguirmos identificar a amplitude e o significado do sofrimento pelo qual a
pessoa está a passar, normalmente conseguimos perceber quando a pessoa está a
sofrer (Kahn & Steeves, 1986). Sendo que "O ser humano é o único dotado de
um sentimento intrínseco, decorrente do excesso de algo, que incomoda, perturba
ou provoca insatisfação" (Berlink cit.por Malavolta, 2000).
Na cultura ocidental, em que está implícita a divisão espírito- corpo, o
sofrimento é relacionado com o espírito e por isso a sua subjectividade. Mas
para podermos entender o sofrimento, não podemos pensar numa lógica de espírito
versus mente, pois cada ser humano é um todo, espírito e corpo (Cassel, 1992,
cit. por Ribeiro, 2005). Ao analisar o sofrimento em âmbito médico, refere que
"a) o sofrimento não se confina aos sintomas físicos, b) o sofrimento deriva
tanto da doença como do tratamento, c) ninguém pode antecipar o que o sujeito
descreverá como fonte de sofrimento" Cassel (1992, cit. por Ribeiro, 2005, p.
223).
Como o ser humano é um ser biopsicossocial e o sofrimento pode abranger todas
as suas dimensões, este também pode ser desencadeado por qualquer aspecto da
pessoa. O sofrimento acontece quando a pessoa se apercebe de algo que a pode
colocar numa situação de risco, e termina quando consegue eliminar esse risco.
Hallowell (2006) ao estudar mulheres com história familiar de cancro do ovário,
constatou que estas percebem o risco da doença pela experiência anterior da
doença e morte e encaram o futuro com sofrimento para elas e para os outros.
Doentes com o diagnóstico de uma doença crónica apresentam sofrimento devido a
perda de autonomia, diminuição da auto-estima, desânimo (Morita et al., 2000) e
percepção da perda da integridade (Rodgers & Cowles, 1997).
Visto que no sofrimento está implícita a subjectividade, é óbvio que este não
apresenta similaridade na sua expressão, não sendo através desta que o
alcançámos e que o podemos identificar. Mas também a habilidade para enfrentar
o sofrimento é diferente e pessoal. Situações há em que o ser humano descobre
como viver com o seu sofrimento, não será o caso das pessoas que têm dores
crónicas? Há situações que se apresentam consensuais, no que se refere a serem
as geradoras de provocar sofrimento nas pessoas, como o caso da morte,
doença... Mas, outras há que não são tão lineares. Contudo esse sofrimento
também deve ser considerado e não desvalorizado perante a pessoa que o está a
sentir (Ribeiro, 2005). Por vezes acontece que as pessoas doentes tentam
proteger-se a si e aos outros, escondendo o quanto estão a sofrer e este é um
comportamento causador de mais sofrimento ainda (Flaming, 1995). Numa
perspectiva religiosa, o sofrimento pode gerar incerteza, mas também pode
sustentar a confiança (Jaspard, 2004). Nesta óptica o sofrimento não deve ser
interpretado como um sinal de infortúnio, mas sim como um guia de novas
expectativas, visto possibilitar ver as situações com outra clareza. Assim a
pessoa ao assumi- lo como uma manifestação de redenção está a proporcionar mais
qualidade à vida (Pinto, 1996).
Também Frankl (1984), ao analisar o sofrimento humano, defende que a dor e o
sofrimento, de uma forma geral, são indispensáveis ao desenvolvimento humano.
Sofrimento e Família Cuidadora
Ao longo do tempo tem existido alguma preocupação em estudar este fenómeno,
mas, mais no contexto do sofrimento do utente e da dor, e não, na perspectiva
da família cuidadora. Assiste-se hoje a um incremento de famílias cuidadoras, e
perante esta realidade parece lícito então questionar se essas famílias não
passam por uma transição de vivencias durante períodos de sofrimento. Vários
estudos (Martins, 2006; Fernandes et al. 2002; Gunnell et al. 2000) apontam
para que nas famílias cuidadoras essencialmente, o familiar cuidador manifesta
elevada sobrecarga física, emocional e social. A doença de um dos elementos da
família vai implicar ruptura no quotidiano do próprio e da família, levando a
alterações das rotinas diárias e por vezes à instauração de uma crise familiar.
O impacto do diagnóstico de uma doença não só se repercute na pessoa, mas
também na família (Hinds, 1992). "O doente sofre e também faz sofrer"
(Bernardo, 1995, p.3). O aparecimento no seio familiar de alguém que vai
precisar de ajuda para a realização das actividades diárias, que normalmente
resolve sozinho, vai acarretar alterações substanciais na família (Roca et al.
1999). A doença crónica, mais do que a aguda, significa não só para a pessoa
individual mas para a unidade familiar uma ameaça (Bull et al 1997). Uma doença
grave traz uma série de imposições e de alterações para a família que colidem
com a forma de viver o seu dia a dia. A doença é uma das causas de sofrimento
(Sebastião, 1995) e quer seja temporária ou prolongada, em qualquer etapa do
ciclo vital acarreta consigo diferentes níveis de stresse (Hanson, 2005), o
qual é um dos factores responsáveis pelo sofrimento (Borges, 2004).
O Enfermeiro e o Sofrimento
Flaming (1995) estudou a percepção das enfermeiras em relação ao sofrimento dos
utentes, visto aquelas pertencerem a um grupo de pessoas que no seu dia a dia
de trabalho contactam constantemente com diferentes situações. Assim verificou
que as enfermeiras na sua prática diária identificaram o sofrimento
existencial, o psicológico e o físico. O existencial, contempla o aspecto
espiritual e o desespero pela situação, acontecendo quando a pessoa sente que
essa dimensão da sua vida perdeu o sentido. O sofrimento psicológico sucede
frequentemente quando há um acometimento à parte psicológica da pessoa, que se
traduz pela incompreensão. Esta não acredita no que está a acontecer, sente-se
presa e não compreende a situação. O sofrimento físico associa-se à dor
corporal, podendo manifestar-se de forma inflexível e exigente.
Quando a pessoa aceita a existência do sofrimento torna-se mais fácil chegar a
ela de forma a minimizá-lo, podendo ser atenuado caso o utente tenha coragem de
o exprimir e de o encarar. Os profissionais de enfermagem pela sua experiência
normalmente conseguem identificar a existência de sofrimento na pessoa. Os
enfermeiros consideram que a relação de confiança que se estabelece entre eles
e o utente, baseada na abertura e sinceridade, é crucial para conseguirem
intervir a esse nível. É imprescindível que a pessoa nunca se sinta abandonada,
que seja respeitada, pois esta tem uma experiência de vida que pode ajudar a
minimizar o sofrimento (Lindholm & Eriksson, 1993). É importante que os
profissionais de enfermagem percebam a energia que é necessária para que a
pessoa expresse os seus sentimentos. Este processo pode utilizar muita da
energia quer da pessoa, quer do profissional. Os profissionais podem
identificar o tipo de sofrimento que está consciente ou inconscientemente a ser
manifestado pelo utente, levando a que este entenda quais os tipos de
sofrimento existente. Por vezes os utentes usam o sofrimento como um mecanismo
de defesa, os profissionais devem entender esse comportamento e considerá-lo.
Os enfermeiros devem respeitar o espaço da pessoa, na medida em que esta pode
sentir necessidade de estar só (Flaming, 1995).
O enfermeiro por vezes tenta aliviar o sofrimento respondendo de imediato às
necessidades e ajudando o utente a resolver os seus problemas. Contudo devem
ter sempre presente que nada deve ser imposto e que o caminho deve ser
escolhido com a pessoa. Para isso é importante encontrar as razões do
sofrimento conseguindo que os utentes o façam conjuntamente com eles. É também
importante que o utente crie uma relação com uma pessoa que seja significativa
para si. É essencial que tenha coragem de encarar o sofrimento e caminhar em
frente (Lindholm & Eriksson, 1993). Mock et al. (2005) estudaram o
sofrimento de um grupo de enfermeiras que tinham síndrome respiratório e
concluíram que estas se tornaram mais "ricas" nas relações com as pessoas quer
profissionalmente quer mesmo na sua vida pessoal. Passaram a ver o mundo na
perspectiva dos utentes e consciencializaram-se da importância de ouvirem a
pessoa e a família, respeitando-os.
Mas, é inevitável que quando se fala em sofrimento ligado à doença, não só se
pense na pessoa doente e família, mas também nos profissionais de saúde
nomeadamente nos enfermeiros. Estes são confrontados na sua prática diária com
diversas formas de sofrimento humano (Kahn & Steeves, 1986). Jaspard (2004)
estudou como estes profissionais convivem constantemente com o sofrimento,
considerando a sua orientação religiosa. Encontrou diferenças na forma como
estes se referiam ao sofrimento, atendendo à óptica religiosa ou não. Assim as
enfermeiras que se suportavam numa religião responderem às questões de forma
distinta, enquanto as outras pelo contrário, tinham respostas idênticas. Os
enfermeiros por vezes acabam por sofrer com a pessoa em sofrimento (Lindholm
& Eriksson, 1993).
Lemos, Cruz e Batomé (2002) quis estudar um grupo de profissionais de saúde
nomeadamente enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem pois considerou-
os como sendo um grupo de trabalhadores, que constantemente, não só assistem,
mas também estão integrados no cenário onde o sofrimento é detentor do papel
principal. Mesmo assim estes continuam a trabalhar, tolerando o sofrimento, por
isso pareceu-lhe relevante perceber como é que estes profissionais gerem as
adversidades. Para isso seleccionou como participantes os que trabalhavam em
centros cirúrgicos de adultos, urgência, clínica e ambulatório de onco-
hematologia. A caracterização dos processos de trabalho apontou para a presença
de cargas físicas e psíquicas. Constatou a existência de sofrimento, causada
por agentes relacionados com a organização do trabalho, nomeadamente escassez
de recursos materiais e humanos que impossibilitavam a prestação de cuidados
com qualidade. Mas visto que para os profissionais de saúde é inevitável a
prestação de cuidados, Lemos, Cruz e Batomé (2002, p. 408) constatou a
existência de mecanismos de defesa que por vezes são utilizados sem os próprios
terem consciência do facto, tais como a "negação, sublimação, e a banalização
do sofrimento, da assistência e até das informações prestadas aos pacientes e
seus familiares". Borges (2004) ao estudar o sofrimento dos enfermeiros em
Pediatria constatou que para estes profissionais a convivência com o sofrimento
das crianças, pais e familiares era factor desencadeante de sofrimento para os
próprios. Este pode ser exacerbado pela "situação clínica da criança, a relação
de proximidade com a criança e os pais e os comportamentos adoptados pelos
pais. Não podemos deixar de referir os indicadores associados ao momento da
morte, como o dia, as circunstâncias e as condições que envolvem este
acontecimento" (Borges, 2004, p. 129). Confrontados com o sofrimento das
crianças os enfermeiros podem desenvolver dois tipos de comportamento, ou a
aproximação à criança e aos pais ou o distanciamento. Os enfermeiros em
situações mais "pesadas" adoptam estratégias de coping centradas na emoção e no
problema. As emoções podem ser geridas a nível individual ou de organização,
passando por "apoio psicológico, reestruturação física dos serviços, a
formação, a valorização do trabalho dos enfermeiros e a rotatividade pelos
serviços" (Borges, 2004, p. 130). Nas situações de stress foram identificadas
como respostas "Negação; Raiva e Frustração; Distress e Saúde; Culpabilidade;
Resposta Fisiológica e Emocionalidade Disfórica" (Borges, 2004, p. 130). "O
modo como cada enfermeiro enfrenta situações de crise, nomeadamente o
sofrimento... reflecte a sua individualidade enquanto ser único e a rede de
ligações enquanto ser relacional" (Borges, 2004, p. 43).
Considerações Finais
O sofrimento integra a vida do ser humano e está presente em todas as situações
que impliquem cuidados. Este não pode ser reduzido a apenas um sentimento ou
uma dor; assistimos a sofrimento na vida e na morte, este é único, com
intensidade variável podendo ser aliviado mas não suprimido. Existe sofrimento
com doença sendo que as manifestações podem ser de tal forma diversas que se
torne quase impossível reconhecê-las (Lindholm & Eriksson, 1993). O sofrer
do ser humano não traz originalidade, mas pode ser considerado um desafio nos
nossos dias, pois assiste-se hoje a novas formas de sofrimento tais como
pressões socio- políticas, desemprego, indefinição do futuro. È premente
entender todos estes novos processos que desencadeiam o sofrimento (Malavolta,
2000). Entendê-lo é fundamental para os profissionais da saúde, não só o
fenómeno em si mas as estratégias de o diminuir. Mas, visto que este não
acontece somente ao utente e família mas também aos profissionais de saúde,
torna-se premente que sejam criadas condições para aliviar senão eliminá-lo dos
profissionais. É imprescindível que os profissionais mantenham boa saúde de
forma a poderem ter um bom nível de bem-estar e consequentemente prestarem
cuidados de qualidade aos utentes/famílias.
Estamos a falar em competências pessoais e de relação, recursos humanos e
materiais, programas de formação, de reflexão acerca do tema, de gestão de
emoções. (Borges, 2004). Rushton et al. (2006) ao implementar e avaliar um
programa de intervenção num serviço de cuidados paliativos verificou uma
diminuição do sofrimento nos profissionais de saúde. Tal como refere McIntyre
(1999, p. 24) "o sofrimento acarreta alguma forma de desregulação emocional.
(...) Torna-se assim crucial que os profissionais de saúde estejam preparados
para reconhecer e lidar com as emoções do doente e as suas próprias emoções
(...)".