Prevalência dos Focos de Enfermagem de Saúde Mental em Pessoas Mais Velhas:
Resultados da Pesquisa Documental Realizada num Serviço de Psiquiatria
Prevalência dos Focos de Enfermagem de Saúde Mental em Pessoas Mais Velhas:
Resultados da Pesquisa Documental Realizada num Serviço de Psiquiatria
Introdução
A saúde mental concorre de forma determinante para o bem-estar da população e
constitui um recurso essencial para a adaptação às exigências da vida
contemporânea. O seu contributo assiste de forma preponderante à realização dos
objectivos de vida e à manutenção de padrões adequados de resposta ao nível da
aprendizagem, produtividade e inclusão social das pessoas (Jané-Llopis &
Gabilondo,2008). As evidências sugerem que as perturbações mentais têm uma
acuidade particular nas pessoas mais velhas, atingindo cerca de 20% desta
população, constituindo a depressão e a demência as principais condições de
morbilidade, às quais se encontra associado um conjunto de problemas que
condicionam a independência e autonomia dos mais idosos (Benedetti, Borges,
Petroski & Gonçalves, 2008). Como problemas mais relevantes identificam-se
algumas alterações relacionadas com a aprendizagem, a cognição, a memória, a
orientação, a solidão, a auto-estima, a tristeza e o suicídio, que comprometem
a funcionalidade global das pessoas mais velhas e interferem com a realização
das suas actividades básicas e instrumentais, acarretando também sofrimento
físico e psicológico (Passos, Sequeira & Fernandes, 2010). Os problemas de
saúde mental são, deste modo, expressos por um conjunto de alterações
psicológicas e comportamentais que afectam de forma significativa os objectivos
e expectativas de vida das pessoas mais velhas, constituindo-se como uma
barreira ao envelhecimento activo e bem-sucedido. Muitas destas manifestações
constituem focos relevantes para a prática de enfermagem de saúde mental, pelo
que se torna imperativo identificá-los, de modo a disponibilizar uma
assistência mais dirigida aos problemas e necessidades específicas destas
pessoas. O presente estudo tem por base os resultados de uma pesquisa
documental realizada num serviço de internamento de psiquiatria de curta
duração, incluída no projecto de investigação sobre "As necessidades das
pessoas mais velhas com problemas de saúde mental", desenvolvido no âmbito do
Programa Doutoral em Gerontologia e Geriatria do Instituto de Ciências
Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e da Universidade de Aveiro
(ICBAS-UP/UA). O objectivo é identificar os focos de atenção de enfermagem, na
área de saúde mental mais comuns nas pessoas mais velhas com doença mental,
internadas no serviço, tendo por base os registos informáticos inseridos no
Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE). Pretende-se também obter um
melhor conhecimento sobre os principais focos de enfermagem que afectam as
pessoas idosas com problemas de saúde mental, de modo a criar uma base de
informação para o desenvolvimento de um questionário de avaliação clínica de
enfermagem de saúde mental.
METODOLOGIA
Tipo de estudo
Foi realizada uma pesquisa documental exploratório-descritiva, com abordagem
quantitativa, baseada nos dados contidos nos instrumentos de registo clínico
utilizados no serviço.
Participantes
O estudo envolveu uma amostra consecutiva num total de registos de 71 idosos,
com idade igual ou superior a 65, de ambos os sexos, utentes do Serviço
Nacional de Saúde, com doença mental diagnosticada pela CID-9 (Hart, Stegman
& Ford, 2009), internados no Serviço de Psiquiatria de uma unidade de saúde
da região norte de Portugal, durante 12 meses, no período de Janeiro a Dezembro
de 2010. A amostra integra todas as pessoas com 65 e mais anos internadas no
serviço, no período em análise.
Instrumentos
Foi utilizado o Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE) para aceder aos
dados relativos aos focos de enfermagem e o Sistema de Apoio ao Médico (SAM)
para recolha de outros dados clínicos. Para completar a caracterização sócio-
demográfica e clínica, efectuou-se também a consulta do processo individual de
cada utente. Foi construído um formulário para registar e organizar os dados
sócio-demográficos e clínicos de interesse para o estudo, obtidos a partir dos
instrumentos referidos.
Procedimento
Começou por se efectuar uma consulta e recolha dos dados do SAPE, procurando
identificar os focos de enfermagem utilizados pelos enfermeiros. Seguidamente
procedeu-se a uma análise quantitativa para determinar a prevalência dos focos
de enfermagem na população em estudo. Na análise, apenas foram considerados os
focos relacionados com a saúde mental e cada um só foi contabilizado uma vez,
independentemente do número de vezes que tinha sido activado ou suspenso, na
mesma pessoa, durante o referido período. Os focos de atenção de enfermagem
foram classificados de acordo com a Classificação Internacional para a Prática
de Enfermagem ' CIPE, versão βeta 2 (Conselho Internacional de Enfermeiros,
2000), em uso na instituição. Efectuou-se também uma consulta ao SAM e ao
processo individual de cada utente para recolher dados relativos à
caracterização sócio-demográfica e clínica. Para completar estes dados, nalguns
casos, foram contactados os utentes ou os seus familiares/cuidadores, de modo a
confirmar/actualizar ou a aceder a dados adicionais. Por fim foram realizadas
algumas entrevistas informais aos enfermeiros, no sentido de conhecer os
critérios utilizados para a selecção dos focos de enfermagem e para a
respectiva parametrização. Foram também analisados os critérios clínicos usados
por estes, para a discriminação entre os diferentes focos de enfermagem. No
desenvolvimento do presente estudo foram cumpridos todos os procedimentos
éticos, tendo sido obtida autorização da Comissão de Ética e da Direcção da
Instituição onde decorreu. Foram também acauteladas as medidas necessárias para
salvaguardar o anonimato dos participantes e a confidencialidade da informação.
Análise Dos Resultados
Após recolha de dados, tendo por base os instrumentos e procedimentos
enumerados, estes foram organizados e classificados, tendo o seu tratamento
sido efectuado através do recurso ao IBM SPSS, versão 19. Em primeiro lugar,
foi efectuada uma análise descritiva dos dados. Dos 71 casos analisados, a
maioria era do sexo feminino (78.9%) e viúva (38%), com uma média de idades de
73.7 (DP=6.5) anos, variando entre 65 e 89 anos. A média de dias de
internamento foi de 20.2 (DP=17.8), variando entre 1 e 96 dias. A maioria dos
sujeitos (91.5%) tinha escolaridade inferior a 4 anos e vivia em áreas rurais
(63.4%). O diagnóstico psiquiátrico mais prevalente foi a demência (36.6%),
seguido da depressão (26.8%) e da esquizofrenia/outras psicoses (14.1%). Em
98.6% havia comorbilidade somática e todos tinham em curso tratamento com
psicofármacos. As principais características sócio-demográficas e clínicas dos
participantes estão apresentadas em detalhe na Tabela 1.
TABELA 1 ' Características sócio-demográficas e clínicas dos participantes
Prevalência dos focos de enfermagem
A partir dos registos do SAPE, procuramos conhecer a distribuição de
frequências dos focos de enfermagem. Os resultados permitiram a identificação
de 13 focos de atenção de enfermagem de saúde mental: os mais prevalentes foram
insónia (70.4%), humor e processo do pensamento (60.6%), confusão (43.7%),
crença errónea (40.8%) e tristeza (36.6%). Para uma melhor apreciação dos
resultados, os focos encontrados são apresentados por ordem alfabética e em
detalhe na Tabela 2.
TABELA 2 ' Distribuição de frequência dos focos de enfermagem
Distribuição dos focos de enfermagem pelos diagnósticos médicos
No sentido de conhecer a distribuição dos focos de enfermagem em relação aos
diagnósticos médicos, procedeu-se também a uma análise de distribuição de
frequência (Tabela 3). Os resultados permitiram verificar que a grande parte
dos focos de enfermagem aparece com maior frequência nos diagnósticos de
depressão e demência, que foram os mais prevalentes. Por sua vez, os focos
relacionados com alterações do humor (humor, tristeza, vontade de viver e auto-
estima) e perturbações ansiosas (ansiedade) aparecem com maior frequência nas
pessoas com diagnóstico de depressão, ao passo que os focos relacionados com
alterações do comportamento (agitação e insónia) e da cognição (alucinação,
orientação, processo do pensamento, crença errónea, comunicação e confusão)
surgem mais nas pessoas com diagnóstico de demência.
TABELA 3 ' Distribuição de frequência dos focos de enfermagem pelos
diagnósticos médicos
Análise de associação entre os diagnósticos médicos (demência e depressão) e os
focos de enfermagem
Identificados os focos de enfermagem mais prevalentes, bem como a sua
distribuição pelos vários diagnósticos médicos considerados, procurou-se
analisar a existência de eventuais associações entre os diagnósticos de
demência e depressão e os focos de enfermagem. Para isso, foram utilizados
testes de Qui-quadrado.
Assim, foram encontradas associações significativas entre estes diagnósticos
médicos e alguns focos de enfermagem, nomeadamente:
a) Ansiedade [X2 (1) = 11.33, p< .01.]: está presente na maioria dos pacientes
diagnosticados com depressão (52.6%), enquanto que na maioria dos pacientes
diagnosticados com demência (92.3%) está ausente.
b) Confusão [X2 (1) = 20.78, p< .001.]: está presente na maioria dos pacientes
diagnosticados com demência (88.5%), enquanto que na maioria dos pacientes
diagnosticados com depressão (78.9%) está ausente.
c) Tristeza [X2 (1) = 18.18, p< .001.]: está presente na maioria dos pacientes
diagnosticados com depressão (78.9%), enquanto que na maioria dos pacientes
diagnosticados com demência (84.6%) está ausente.
d) Humor [X2 (1) = 8.94, p< .01.]: está presente na maioria dos pacientes
diagnosticados com depressão (94.7%), assim como na maioria dos pacientes
diagnosticados com demência (53.8%).
e) Processo de pensamento [X2 (1) = 9.01, p< .01.]: está presente na maioria
dos pacientes diagnosticados com demência (80.8%), enquanto que na maioria dos
pacientes diagnosticados com depressão (63.2%) está ausente.
Análise de associação entre as variáveis sócio-demográficas e os focos de
atenção de enfermagem
Procedeu-se também a uma análise de associações entre algumas variáveis sócio-
demográficas, como idade e género com os focos de enfermagem, mais uma vez
utilizando testes de Qui-quadrado. Desta forma, foi encontrada uma associação
significativa entre a idade e o foco confusão [X2 (1) = 5.77, p< .05.]. Na
maioria dos pacientes com idades entre 65 e 80 anos (62.7%) o foco confusão
está ausente, enquanto que, nos pacientes com idade superior a 80 anos (75.0%),
está presente. Relativamente ao género não foram encontradas associações
estatisticamente significativas.
Análise de associação entre as variáveis sócio-demográficas e os diagnósticos
médicos (demência e depressão)
Efectuou-se ainda uma análise de associações entre idade e género com os
diagnósticos de depressão e demência. Verificou-se uma correlação positiva e
significativa entre idade e depressão e demência (rpb= .48, p< .01). Assim,
mais idade está associada ao diagnóstico de demência. Verificou-se também uma
associação significativa entre género e depressão e demência [X2 (1) = 5.47, p<
.05]. Assim, a maioria dos indivíduos do sexo masculino (90.0%) tem diagnóstico
de demência, ao passo que a maioria no sexo feminino (51.4%) tem diagnóstico de
depressão.
Discussão dos Resultados
Os resultados apresentados apontam para uma maior prevalência da demência e
depressão, o que vai de encontro aos dados apresentados por Benedetti et al.
(2008), que colocam estas duas condições clínicas como as perturbações mentais
mais prevalentes nas pessoas mais velhas. No que diz respeito à ocorrência de
sintomas depressivos nos idosos, os estudos apontam para uma prevalência acima
dos 10% (Snowdon, 2002). Também, em relação à demência, tem-se demonstrado que
esta apresenta uma expressão significativa como condição de morbilidade na
população idosa, com um aumento significativo à medida que a idade avança,
sendo que as síndromes demenciais podem variar entre 1% nas pessoas dos 65 aos
69 anos até 55% a partir dos 95 anos (Lopes & Bottino, 2002). Os resultados
obtidos no presente estudo são sensíveis aos dados descritos anteriormente,
apresentando uma prevalência algo superior aos valores estimados para a
população idosa em geral, uma vez que foram obtidos a partir de uma amostra de
pessoas em regime de internamento psiquiátrico. Contudo, estão muito próximos
de outros estudos em populações psiquiátricas (Gonçalves-Pereira et al., 2007;
Fernandes et al., 2009; Hancock, Reynolds, Woods, Thornicroft & Orrell,
2003; Mateos, Ybarzábal, Garcia, Amboage & Fraguela, 2004; Reynolds et al.,
2000). No que diz respeito aos focos de atenção de enfermagem identificados,
verificou-se também uma aproximação em relação aos dados disponíveis. A
presença de um vasto número de focos relacionados com os domínios cognitivo e
comportamental vai de encontro aos dados apresentados por outros autores
(Baltes & Smith, 2006; Fernández-Ballesteros, 2009; Passos et al., 2010;
Sequeira, 2006, 2010; Small, 2002). Também a ocorrência de alguns focos na área
do humor revela conformidade em relação à perspectiva de outros autores, que
apontam para a presença destas manifestações associadas a diferentes quadros
depressivos (Passos et al., 2010; Paul, 2007; Paúl, Ayes, & Ebrahim, 2006;
Sequeira, 2006, 2010; Unutzer, 2007). No serviço em análise, a parametrização
dos dados no Sistema de Apoio à Prática de Enfermagem (SAPE), tendo por base a
Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), obedeceu a um
resumo mínimo de dados que assentou na seleção dos focos mais frequentes, em
contexto de internamento psiquiátrico de curta duração. Este processo tem sido
maturado, tendo por base a experiência desenvolvida pelos enfermeiros na
utilização destas ferramentas, bem como através da análise dos resultados
clínicos obtidos a partir do uso dos focos de enfermagem parametrizados.
Exemplo destes desenvolvimentos é o facto de alguns focos como "Memória" e
"Tentativa de suicídio", que até ao final de 2010 não faziam parte do conjunto
de focos frequentes, passarem a integrar este resumo, a partir da última
revisão da parametrização. Este procedimento, associado à natureza e às
condições de resposta do serviço, levou a que alguns focos de enfermagem,
apresentados na literatura como frequentes nas pessoas mais velhas, não tenham
sido identificados neste estudo. A partir das entrevistas informais realizadas
com os enfermeiros, foi possível efectuar uma análise mais segura relativamente
aos critérios de selecção dos focos de enfermagem e à respectiva
parametrização. Permitiram também identificar outros domínios, cuja resposta
está a ser enquadrada no âmbito dos focos parametrizados, que podem constituir-
se como diferentes áreas de atenção para a prática clínica e que sugerem a
presença de outros focos característicos das pessoas idosas com problemas de
saúde mental. Deste modo, impõe-se a necessidade de se proceder a outras
análises, que permitam clarificar melhor estes aspectos e proporcionar dados
mais objectivos e realistas sobre o fenómeno em estudo.
Conclusões
Neste estudo, os diagnósticos mais frequentes foram o de depressão e de
demência, seguidos de psicose e perturbação bipolar. Associado à depressão e à
demência, aparecem alguns focos de atenção de enfermagem de saúde mental, que
devem constituir o principal objectivo das intervenções neste âmbito. Os
resultados permitiram também identificar um vasto número de focos de enfermagem
de saúde mental, que podem estar presentes nas pessoas mais velhas com doença
mental. A sua análise sugere que os focos humor, ansiedade e tristeza aparecem
mais associados ao diagnóstico de depressão, enquanto que os focos processo do
pensamento e confusão aparecem mais associados à demência. Tendo em conta o
trabalho que se pretende desenvolver, estes dados fornecem uma informação
relevante para perspectivar os próximos passos da investigação, especialmente
no que diz respeito ao desenvolvimento de um questionário de enfermagem de
saúde mental. Uma vez que os focos parametrizados no serviço, dizem respeito a
um resumo mínimo de dados elaborado pelos enfermeiros, de acordo com a natureza
clínica e as condições específicas da unidade de internamento, bem como em
função das possibilidades de resposta por parte destes técnicos de saúde
relativos aos problemas/necessidades apresentados pelos utentes, entende-se que
será necessário aprofundar a pesquisa. Neste sentido é fundamental conhecer
melhor os principais focos de atenção de enfermagem de saúde mental, que possam
estar presentes nas pessoas mais velhas.