A Personalidade das Vítimas de Violência Conjugal
A Personalidade das Vítimas de Violência Conjugal
INTRODUÇÃO
Há mais de uma década que a violência é considerada um problema de saúde
pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002). A violência doméstica
engloba todos os comportamentos/omissões que tenham por objetivo proporcionar,
repetidamente e com intensidade, danos físicos, sexuais, mentais, económicos ou
até mesmo o homicídio, de forma directa ou indirecta a um indivíduo que habite
no mesmo agregado, ou que não habitando no mesmo agregado que o agressor seja
cônjuge/ex-cônjuge, ou companheiro marital/ex-companheiro marital. Esta
problemática atinge mulheres, homens, crianças, jovens, idosos, deficientes e
dependentes (Matos, 2002).
A violência conjugal ocorre no seio de uma relação, nomeadamente quando uma das
partes recorre ao uso da força ou do constrangimento com a finalidade de
promover ou perpetuar o domínio da outra parte. Neste fenómeno padece uma
relação assimétrica, isto é, diferentes posições e poderes entre o casal
(Alves, 2005; Nunes, 2003).
A personalidade está relacionada com os diferentes desejos, sentimentos e com a
forma de expressar tais sentimentos/emoções. As pessoas diferem uma das outras
pelo autoconceito, pelas suas perspectivas no que diz respeito ao mundo e ao
futuro (Gleitman, Fridlund, & Reisberg, 2009). A personalidade é o que
torna o indivíduo único, tendo sido identificadas cinco dimensões que
distinguem a individualidade ' ModeloBig Five (Dias, 2004; Hansenne, 2003). Não
há um perfil delineado para as vítimas, apenas se constatam algumas
características típicas, nomeadamente, serem envergonhadas, caladas, incapazes
de reagir, conformadas, passivas, emocionalmente dependentes e deprimidas
(Alves, 2005). Actualmente, não se investiga se a personalidade influencia a
saúde, mas antes quais as circunstâncias relativas a que aspectos da saúde ou a
que comportamentos saudáveis e com que implicações praticas é que a
personalidade influencia a saúde. Para este tipo de investigação, o modelo dos
cinco factores evidencia-se o mais adequado para ajudar a esclarecer a relação
entre o self psicológico e o self fisiológico (Holroyd, & Coyne, 1987).
METODOLOGIA
Participantes
A população em estudo foram as vítimas de violência conjugal, com idade
superior ou igual a 18 anos. A amostra foi seleccionada através de um tipo de
amostragem não probabilística obtida por conveniência, uma vez que apenas foram
incluídas as vítimas de violência conjugal que estavam disponíveis ou que se
voluntariaram para participar no estudo (Carmo e Ferreira, 1998).
No seguimento dos objectivos delineados para a presente investigação aplicaram-
se os instrumentos de recolha de dados a 37 vítimas de violência conjugal,
todos do género feminino, ou seja, correspondem a 100% da amostra, não
existindo nenhum sujeito do género masculino. A idade das vítimas de violência
conjugal da presente investigação varia entre os 20 e os 69 anos, sendo a média
das idades que compõem a amostra de 38 anos. A maioria das vítimas são casadas
(43,2%); têm filhos (81,1% - 30 indivíduos), variando o número de filhos entre
1 e 8. Na sua maioria têm o 3º ciclo e estão desempregadas.
Instrumentos
O protocolo de investigação utilizado compõem-se de:
a) Questionário sociodemográfico elaborado pelo próprio investigador que
permitiu recolher informações sobre a caraterização das vítimas de violência
conjugal;
b) NEO-FFI-20 desenvolvido por Bertoquini e Pais-Ribeiro (2006) para avaliar
a personalidade das vítimas de violência conjugal, tendo por base o modelo dos
cinco grandes fatores (Neuroticismo (N); Extroversão (E); Abertura à
Experiência (O); Amabilidade (A); Conscienciosidade (C)).
Procedimento
Para alcançar os objectivos em estudo foi delineado um estudo transversal
descritivo.
Para a realização do presente estudo enviou-se um ofício, a solicitar a
autorização para a realização do estudo a 320 locais de atendimento a vítimas
de violência conjugal de Portugal, incluindo a Madeira e os Açores.
Após a obtenção dessa autorização foi solicitado o consentimento informado aos
elementos que constituíram a amostra para a participação voluntária na
investigação.
Findo o percurso de recolha de dados junto da amostra obtida, iniciou-se a
etapa referente ao tratamento estatístico. Para tal, recorreu-se ao software
informático SPSS 19.0 Base Windows, começou-se por construir a base de dados de
acordo com os instrumentos utilizados onde foram inseridos os dados recolhidos.
Para tal, recodificaram-se os itens que eram cotados de forma invertida; de
seguida efectuou-se o cálculo do valor das variáveis de acordo com os autores
dos instrumentos utilizados.
ANÁLISE DOS RESULTADOS
A prevalência da violência conjugal é um problema complexo que não será
facilmente resolvido. Assim, o objectivo central deste estudo foi conhecer As
características e a personalidade das vítimas de violência conjugal em
Portugal.
Os dados obtidos nesta amostra revelam que as vítimas de violência conjugal
portuguesas: são do sexo feminino; têm idades compreendidas entre os 20 e os 69
anos; casadas; com filhos, nomeadamente, entre 1 e 8 filhos. No que concerne às
habilitações literárias prevalece o 3º ciclo. Na sua maioria encontram-se
desempregadas, embora indiquem que não dependem economicamente do agressor.
Quanto aos tipos de violência predominantemente praticados são a violência
psicológica e a violência física. O detalhe da violência física de que as
vítimas normalmente são alvo é o uso da força física por parte do agressor. Já
o detalhe da violência psicológica mais executado contra a vítima é o agressor
chamar-lhe de nomes, insultá-la e atribuir-lhe amantes. Enquanto o detalhe da
violência sexual que o agressor aplica à vítima é a obrigação em esta ter
relações sexuais contra a sua vontade. Por norma o agressor não possuía nem
utilizou armas no momento da violência; estes são na sua maioria consumidores
de álcool, mas não consome estupefacientes. As situações violentas foram
presenciadas por menores e a vítima ficou com ferimentos ligeiros. O local onde
foi praticada a violência foi na residência particular do casal e o motivo da
agressão esteve relacionado com o estado alterado do agressor devido ao consumo
de álcool e/ou drogas.
No que concerne às dimensões de personalidade que caracterizam as vítimas de
violência conjugal, estas apresentam valores elevados ao nível da
conscienciosidade e neuroticismo. De seguida surge a extroversão, a amabilidade
e, por fim, a abertura à experiência
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A literatura indica que os resultados obtidos em várias investigações
realizadas no sentido de caracterizar as vítimas de violência conjugal não
permitem tirar conclusões claras e objetivas (Costa e Duarte, 2000).
No que concerne à caracterização da amostra e tendo por base os dados
estatísticos mais recentes relativamente às vítimas de violência conjugal,
recolhidos pela APAV em 2010, o presente estudo confirma que a violência
conjugal é praticada maioritariamente contra as mulheres, uma vez que a amostra
não inclui nenhum indivíduo do sexo masculino.
Relativamente à idade das vítimas esta varia entre os 20 e os 69 anos,
englobando assim as faixas etárias (entre os 26 e os 45 anos) descritas na
literatura como sendo o predominante.
Conclui-se que o estado civil que prevalece nesta amostra é casado,
corroborando com o estado de arte. Os dados obtidos confirmam que o tipo de
família é nuclear com filhos, acrescentando-se com a presente investigação que
o número de filhos varia entre 1 e 8 filhos por vítima.
No que concerne às habilitações literárias nesta amostra a maioria tem o 3º
ciclo e o nível de ensino superior, sendo este último o predominante de acordo
com a teoria, logo neste estudo os resultados obtidos não corroboram na
totalidade. Contrariamente ao estado de arte a maioria encontra-se desempregada
e só depois surgem as mulheres que se encontram empregadas, no entanto as
participantes no estudo não dependem economicamente do agressor.
Tendo por base, novamente, os dados descritos pela APAV (2010), ao nível da
violência conjugal, os tipos de violência mais praticados são os maus-tratos
psicológicos e os maus-tratos físicos, corroborando com os resultados obtidos
no presente estudo.
A vitimização conjugal múltipla, de acordo com Pinto (2009), consiste em maus
tratos físicos; isolamento social; maus tratos emocionais, verbais e
psicológicos; recurso a privilégios masculinos ou femininos; ameaças; violência
sexual; e controlo económico. Os dados auferidos acrescentam ao estado de arte
os detalhes de cada tipo de violência (física, psicológica e sexual) que são
frequentemente exercidos contra a vítima. Assim, ao nível da violência física o
agressor na maioria das vezes utiliza a força física contra a vítima;
relativamente à violência psicológica constata-se que homem insulta e atribui
amantes à mulher; e, por fim, no que diz respeito à violência sexual o mais
comum é o agressor obrigar a vítima a ter relações sexuais contra a sua
vontade.
A literatura salienta que na maioria dos casos não há recurso a arma na prática
do crime (APAV, 2010). Os dados obtidos no presente estudo corroboram com os
resultados da APAV, uma vez que a maioria das vítimas nega o recurso a arma
aquando do momento da agressão.
Costa e Duarte (2000) referem que as pessoas alcoólicas têm uma maior
predisposição para praticar a violência conjugal, verificando-se tal facto em
56,8% da presente amostra. A APAV (2010) constatou que a probabilidade de
ocorrência da violência é maior quando o agressor é dependente de substâncias
(álcool, drogas), contrariamente, neste estudo apenas uma minoria das vítimas
afirma que o agressor é consumidor de estupefacientes.
A existência de violência na família de origem (emitida pelos pais através de
maus-tratos ou de uma disciplina severa; assim como terem assistido aos maus-
tratos conjugais) provoca consequências diretas ou indiretas no indivíduo,
podendo este vir a ser violento na conjugalidade (Fernandes, 2002). Daí a
relevância em se identificar se os atos violentos foram praticados na presença
de menores, verificando-se que em cerca de 59,5% dos casos os filhos assistiram
à violência conjugal exercida entre os seus progenitores.
Almeida (2009) refere que as consequências para a pessoa vítima de violência
conjugal são diversas e de extrema gravidade. Todavia, o estudo revela que a
maioria das participantes ficou com ferimentos ligeiros.
Dias (2004) menciona que o local onde frequentemente se pratica a violência
conjugal é no domicílio onde habita a família, realçando igualmente este facto
o presente estudo. Sendo a residência particular do casal o local onde a
maioria das mulheres admite ter sido alvo das agressões.
Quanto ao motivo da agressão o que é mais realçado é o consumo de álcool e/ou
drogas não legais, o que vai de encontro a um dos motivos que as abordagens
centradas no indivíduo defendem (Cunha, 2009).
Desta forma, atingiu-se o primeiro objetivo a que o estudo se propôs: descrever
a caracterização das vítimas de violência conjugal.
O segundo objetivo centrou-se na descrição das dimensões da personalidade das
vítimas de violência conjugal, concluindo que a dimensão com maior
predominância é a conscienciosidade, ou seja, são indivíduos zelosos e
disciplinados, apresentando características como honestidade, engenhosidade,
cautela, organização e persistência.
De seguida, os dados demonstram que o neuroticismo também está fortemente
presente na personalidade das vítimas de violência conjugal, isto é, são
pessoas que evidenciam instabilidade emocional e, por isso, tendem a ser
bastante preocupados, melancólicos e irritados; geralmente são ansiosos e
apresentam mudanças frequentes de humor e depressão; e tendem a sofrer de
transtornos psicossomáticos e apresentar reações muito intensas a todo tipo de
estímulos.
Em terceiro lugar, as vítimas de violência conjugal apresentam como
características de personalidade a extroversão, simbolizando assim que são
pessoas ativas, com alto nível de energia, disposição, otimismo e afetuosidade.
De seguida surge a amabilidade como fator de personalidade presente nas
características das vítimas, espelhando deste modo pessoas que são socialmente
agradáveis, calorosos, dóceis, generosos e leais.
Por fim, identifica-se a abertura à experiência como fator de personalidade
enraizado neste tipo de amostra, ou seja, são mulheres com flexibilidade de
pensamento, fantasia e imaginação, interesses culturais, versatilidade e
curiosidade (Silva, Schlottfeldt, Rozenberg, Santos e Lelé, 2007).
CONCLUSÃO
Tendo em consideração os dados obtidos neste estudo é possível concluir que os
estudos nesta área são pertinentes pois permitem identificar grupos de risco
que possam ser alvo de acções de prevenção e intervenção, assim como se poderá
identificar as principais características e os traços de personalidade
predominantes nas vítimas. No seu conjunto, estes resultados demonstram o quão
importante é o reforço das equipas técnicas, ao nível do apoio psicossocial a
estas mulheres, uma vez que apresentam-se desprovidas de qualquer suporte
afectivo e emocional. Este aspecto deverá revestir-se de singular importância
uma vez que, sem uma adequada estrutura mental, será muito difícil para estas
mulheres reerguerem-se e reiniciarem a sua vida em tranquilidade.
Com a presente investigação esperamos ter contribuído de alguma forma para um
aprofundamento do conhecimento sobre as características e a personalidade das
vítimas de violência conjugal, podendo auxiliar na intervenção técnica com
estas vítimas.