A Concepção dos Profissionais de Saúde acerca da Reabilitação Psicossocial nos
Eixos: Morar, Rede Social e Trabalho dos Usuários de Substâncias Psicoativas
A Concepção dos Profissionais de Saúde acerca da Reabilitação Psicossocial nos
Eixos: Morar, Rede Social e Trabalho dos Usuários de Substâncias Psicoativas
INTRODUÇÃO
O uso abusivo de Substâncias Psicoativas é um problema grave e mundial de saúde
pública, o círculo vicioso tanto das drogas lícitas como das ilícitas envolve
danos biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, culturais, ético-legais e
morais. O enfrentamento dessa problemática constituiu-se em uma demanda
mundial, uma vez que a Organização Mundial da Saúde afirma que 10% das
populações dos centros urbanos do mundo, fazem uso abusivo de substâncias
psicoativas, independentemente da idade, sexo, nível de escolaridade e classe
social (OMS, 2001). No Brasil, uma pesquisa evidenciou que o uso na vida de
álcool foi de 74,6%, sendo que 12,3% das pessoas pesquisadas, com idades entre
12 e 65 anos, preenchem critérios para a dependência do álcool. Os resultados
desse levantamento indicam também que o consumo de álcool tem se dado em faixas
etárias cada vez mais precoces sugerindo a necessidade de revisão das medidas
de controle, prevenção e tratamento (Carlini, 2006).
Apesar desses percentuais, no que diz respeito às estratégias de atenção à
problemática, uma importante lacuna na história da saúde pública brasileira foi
se desenhando e a questão das drogas foi sendo deixada para as instituições da
justiça, da segurança pública, da pedagogia, da benemerência e das associações
religiosas (Brasil, 2004). Foi somente com o movimento iniciado nas últimas
décadas do século XX, conhecido como Reforma Psiquiátrica brasileira, que novos
questionamentos vieram à discussão e culminaram na aprovação de leis que
propiciaram a transformação dessas práticas e saberes. A Lei nº 10.216 de 2001
(Brasil, 2001) foi um marco ao garantir tanto aos usuários de serviços de saúde
mental, como aos que sofrem por transtornos decorrentes do consumo de álcool e
outras drogas, a territorialização do atendimento a partir da estruturação de
serviços mais próximos do convívio social de seus usuários, configurando redes
assistenciais mais adequadas às variadas demandas desse segmento da população.
Essa reestruturação no modelo assistencial tem, em última análise, como eixo
principal a Reabilitação Psicossocial e a reinserção social dos usuários de
forma integrada ao meio cultural e à comunidade em que estão inseridos,
pressupostos norteados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica.
Quando se trata de conceituar Reabilitação Psicossocial é consenso entre os
especialistas de que se trata de uma estratégia e uma vontade política de
cuidados para pessoas vulneráveis socialmente, no sentido de que essas consigam
gerenciar suas vidas com maior autonomia e capacidade de escolha,
possibilitando o processo de trocas sociais, a restituição plena dos direitos,
das vantagens e das posições que essas pessoas tinham ou poderiam vir a ter, se
as barreiras fossem minimizadas ou desaparecessem (Bertolote, 2001; Pitta,
2001; Kinoshita, 2001).
Tendo como finalidade a ampliação dos espaços de negociação para a realização
das trocas sociais, a atenção dos profissionais deve se voltar para os eixos
norteadores do processo de Reabilitação Psicossocial, que são: o habitat, a
rede social e o trabalho; no qual estão presentes as variáveis reais operando
contra ou a favor do aumento da contratualidade, e assim contra ou a favor da
Reabilitação Psicossocial (Saraceno, 2001).
A finalidade de todo esse processo é devolver ao indivíduo a capacidade de
exercer a sua cidadania, o que implica no acesso ao direito de uma constituição
afetiva, relacional, material, laboral e habitacional, estando assim inserido
socialmente.
Há uma relação estreita entre cidadania e saúde mental, posto que um indivíduo
que não goze plenamente da cidadania é um risco para a sua saúde mental, assim
como um indivíduo que não goze plenamente de saúde mental estará impedido de
exercer sua plena cidadania social. Portanto, a questão central na Reabilitação
Psicossocial está relacionada à elevação do sujeito de sua condição de doente
mental para a condição de cidadão (Saraceno, 2001).
Nesta direção, entendemos que somente a noção de cidadania, a qual compreende o
uso de drogas como uma questão de direito e não de crime, doença ou pecado,
permitirá uma maior reflexão por parte dos serviços, dos profissionais de saúde
e da sociedade no que se refere aos "problemas" originados pela forma de
compreendermos as drogas e não necessariamente pelo seu uso.
No que se refere à Reabilitação Psicossocial voltada aos usuários de álcool e
outras drogas pouco se tem produzido sobre a temática e segundo a literatura
internacional não há relação direta entre o conceito de Reabilitação
Psicossocial e a prevenção ou tratamento de transtornos associados ao consumo
de álcool e drogas (Pinho, Oliveira, Almeida, 2008).
Portanto, para que a função da Reabilitação Psicossocial seja possível na
atenção aos usuários de álcool e outras drogas, são necessárias discussões
sobre as questões associadas às "variáveis reais", ou seja, o serviço de
Reabilitação Psicossocial, o significado do tratamento em si; os recursos
disponíveis ' humanos, comunitários e materiais e o contexto de vida do
indivíduo (Saraceno, 2001).
Nessa perspectiva considerando que os recursos humanos, nesse caso os
trabalhadores em saúde, devem constituir segundo a literatura (Saraceno, 2001),
objeto de estudos e discussões, julgou-se oportuno realizar um estudo com o
objetivo de identificar as concepções de profissionais da saúde de um Centro de
Referência para o tratamento dos problemas relacionados às substâncias
psicoativas acerca da Reabilitação Psicossocial e seus respectivos eixos
norteadores.
METODOLOGIA
Trata-se de estudo exploratório de abordagem qualitativa realizado em um Centro
de Referência para o tratamento dos problemas relacionados ao uso abusivo de
substâncias psicoativas do Estado de São Paulo - Brasil. A amostra constituiu-
se de onze profissionais da saúde de nível superior. Os dados foram coletados
entre julho e agosto de 2008, por meio de entrevistas semi estruturadas
contendo quatro questões norteadoras. As entrevistas foram gravadas e
transcritas lidas e relidas repetidas vezes, o que possibilitou a constituição
do corpus de análise (Minayo, 2006). Da análise desses dados, segundo os
pressupostos da Hermenêutica Dialética (Minayo, 2006) emergiram duas
categorias: Reabilitação Psicossocial e Projeto Terapêutico Institucional. O
presente artigo se ocupa dos três eixos que fundamentam a categoria
Reabilitação Psicossocial: morar/habitar, trocar identidades/rede social e
trabalho/produzir e trocar mercadorias. Para apresentação dos resultados os
entrevistados foram identificados pela letra E, seguidos do número
correspondente à ordem da entrevista. Em consonância com os pressupostos
éticos, esse estudo foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de
Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP-EEUSP), e aprovado sob número 722/
2008 de 04/04/08.
RESULTADOS
Caracterização dos Sujeitos da Pesquisa
Foram entrevistados 11 profissionais técnicos de nível superior, sendo sete
(63,63 %) do sexo feminino e quatro (36,36%) do sexo masculino. A média de
idade dos trabalhadores é de 50 anos, sendo a maior idade de 59 anos e a menor
idade de 34 anos. Foram entrevistados quatro psicólogos, um enfermeiro, um
nutricionista, um educador físico, dois médicos e duas assistentes sociais. Com
relação aos cursos de Especialização, dois dos profissionais possuem
Especialização em Saúde Pública, quatro dos trabalhadores possuem
Especialização em Dependência Química, um dos profissionais possui
Especialização em Saúde Mental e os demais profissionais (36,36%), não possuem
especialização. O tempo de trabalho destes profissionais na área da Saúde
Mental é variável, ou seja, 40% dos profissionais nunca haviam trabalhado com
Saúde Mental, enquanto os outros 60% variaram de 9 a 29 anos de experiência
anterior na área da Saúde Mental.
A análise da Categoria I: Concepção de Reabilitação Psicossocial originou três
subcategorias que correspondem aos três eixos da reabilitação: morar/habitar,
trocar identidades/rede social e trabalho/produzir e trocar mercadorias, que
serão apresentadas na sequência.
Eixo 1 - Morar/Habitar
As entrevistas possibilitaram identificar o entendimento dos profissionais
acerca dos três eixos da Reabilitação Psicossocial. Observou-se que na
concepção desses sujeitos o eixo morar/habitar é considerado pelos
entrevistados como uma das maiores dificuldades para a reabilitação da
população referenciada, já que em sua grande maioria esta se constitui por
moradores de rua da região, conforme trecho abaixo:
E2. 38 "Na minha área a dificuldade é eles não terem casa, eles não terem
moradia".
Percebemos que existe uma real preocupação por parte dos profissionais da
equipe técnica com o morar, pois o morar faz parte do hall de necessidades
básicas do ser humano. Devido à população atendida pelo serviço ser composta
por moradores de rua, os profissionais preocupam-se em sanar o problema da
falta de moradia:
E4.29 "... aquele que tá em situação de rua a gente tenta viabilizar a entrada
dele numa instituição é... num equipamento de órgão público, em albergue para
que ele tenha pelo menos, minimamente um abrigo".
E6. 14 [para os que não têm família] "... investe muito em incentivá-lo à vaga
fixa do albergue porque bem ou mal acaba que o albergue vira uma casa".
Para aqueles sujeitos que de alguma forma conseguem obter recursos para
conseguir uma alternativa de moradia, os profissionais trabalham no sentido de
auxiliá-lo a encontrar uma moradia e a valorizar a satisfação de algumas das
necessidades básicas:
E6. 15 "aqueles que ganham dinheiro, que tem alguma possibilidade, a gente esta
sempre batalhando para alugar um quartinho de hotel, ou outra coisa, pagar uma
pensão, a importância de sair da rua, a importância de dar valor ao banho, ao
momento de deitar na cama, de ver TV, seja como for".
Eixo 2 - Trocar Identidades/Rede Social
No eixo troca de identidades/rede social, foi observado que os entrevistados
identificam a família e as atividades externas, realizadas pelo serviço, como
sendo os únicos dois fatores que propiciam trocas sociais aos usuários.
Em relação à família, os entrevistados parecem identificar nos usuários da
instituição um empobrecimento no núcleo familiar, tanto que investem no resgate
do vínculo afetivo familiar e enfatizam que a família tem um papel importante
na reabilitação do sujeito:
E6. 12 [Expressão da proposta da reabilitação psicossocial] "... eu acho isso
importante o contato com a família muito, a gente trabalha principalmente o
serviço social muito, com eles essa questão de deixar a gente ligar pra família
vir buscar, deles voltarem a conviver com pai, mãe, filhos".
E7. 56 "... pra você falar em reabilitação você tem que falar em família, se
você não tiver família eu duvido muito, porque é o grupo mais forte que defende
o ser humano, mas às vezes é também o mais forte que ataca, isso precisa estar
equilibrado".
Além da ausência do suporte familiar, outros complicadores para a reabilitação
da população usuária de substâncias psicoativas da instituição é a perda dos
vínculos empregatícios e de amizades, que podem ser considerados elementos da
rede social mais ampla:
E4. 15 "...não é aquele paciente que tem suporte familiar, eles já perderam
todos os vínculos empregatícios, o suporte da família, o contato com os amigos,
então é muito complicado trabalhar com essa população".
Alguns profissionais consideram, ainda, que a troca social pode ocorrer no
ambiente institucional, por meio de atividades que facilitem esta troca entre
os próprios usuários:
E3. 42 "...o ambiente também favorece essa coisa de inserção, é integração,
eles se conhecerem mais, na prática de esportes, na dança circular, o vínculo
que o grupo de mulheres com o grupo de GESTO que são grupos diferentes, eles se
unem mais, eles trocam figurinhas e ajuda na reabilitação porque às vezes uma
fala da dependência dela, a ingestão de comida. E a outra fala dos problemas da
dependência, o que acarretou, depressão, essas coisas todas que são as
comorbidades que elas têm e ai elas percebem que são muito parecidos e ai é
legal, eu percebo também que ajuda essa questão na reabilitação".
As falas de um modo geral se referem à importância da família e das atividades
externas na tentativa de desviar o foco do uso das drogas para outras
atividades que promovam o prazer:
E6. 13 "... as questões mais importantes que eu acho são essas duas: são as
coisas externas que acontecem junto com o tratamento pra eles verem que existem
prazeres em outras coisas que não são somente o álcool e as drogas, eu acho, e
o carinho da família".
Eixo 3 - Trabalho/Produzir e Trocar Mercadorias
O trabalho, outro eixo fundamental para a Reabilitação Psicossocial, é
reconhecido socialmente como um meio que possibilita ao ser humano reproduzir
sua vida material para satisfazer suas necessidades básicas como: comer,
vestir, beber, morar e também para reproduzir sua vida social como: o lazer,
convivência e liberdade.
Questões referentes a onde a pessoa mora? Como passeia? Como tem acesso aos
bens culturais comunitários? Como se alimenta? E outras relacionadas ao
gerenciamento de suas vidas, e que dependem da obtenção de renda, são apontadas
como uma necessidade no cotidiano do conjunto das novas práticas, e parecem
fazer parte da realidade dos técnicos quando relatam:
E7.57 "... pra você reabilitar o paciente, este tem que ter recursos dentro do
seu talento de ganhar o seu sustento, então passa por ali finanças".
Os entrevistados não mencionaram termos como cooperativas e trabalho protegido,
no entanto, quando falaram sobre Reabilitação Psicossocial automaticamente se
referiram à possibilidade de trabalho para a população atendida priorizando as
parcerias:
E4.32 "...com os adolescentes encaminhamos para cursos, encaminhamos pra
oportunidade de emprego".
E8.50 "... tem um trabalho também muito importante que a gente faz aqui, é um
convênio, é uma parceria que a gente faz com alguma instituição que fornece
cursos profissionalizantes então, cabeleireiro, pedreiro, pintor de parede, a
gente faz um encaminhamento desses pacientes pra lá. E aí nós recebemos um
retorno e aí quando termina o trabalho. O cara já é um pintor, um cabeleireiro
um eletricista, já sai profissionalizado".
Os usuários que ainda mantém a condição de trabalhador são considerados pelos
profissionais como pessoas que ainda não tem a vida totalmente destruída e,
portanto como um fator positivo para a Reabilitação Psicossocial:
E5.47 "... pontos favoráveis para quem já está trabalhando, porque está com uma
destruição de vida menos avançada do que outros, então a gente também tenta
pontuar, segurar esses fatores para não ter uma perda maior".
Os entrevistados também citam as oficinas realizadas dentro da instituição como
possibilidade de inclusão social do trabalho:
E4.40 "...pegam encomendas, se responsabilizam pelas encomendas tem alguns que
já vivem do trabalho que eles faziam aqui, tanto de pães quanto de tapetes".
A instituição possui a Associação Vida Ativa que é apontada como um espaço de
discussão coletiva sobre as questões relativas ao trabalho e que também torna
possível a comercialização da produção dos usuários, conforme a fala:
E8.38 "... nessas reuniões da associação, que é a associação vida ativa que
chama, que nós vamos discutir com o paciente, onde essa mercadoria que ele
produziu, como é que vai ser comercializada".
Seguindo outra direção, esse discurso valoriza o contexto de vida do sujeito,
evidenciando o resgate da história laboral de cada indivíduo, colaborando para
revelar a aptidão trazida pelo sujeito como forma do usuário ser inserido no
trabalho :
E7.39 "eu penso assim (...) se eu sou bom pintor eu tenho que estimular o
pintor, se o cara coloca bem o azulejo dele eu tenho que estimular o cara a
colocar o azulejo até o teto, então esses profissionais eles teriam mais
capacitação, porque às vezes o modelo pra determinado tipo de paciente, sem ele
ta em risco de vida, de morte, seria mais um autoritarismo mesmo".
DISCUSSÃO
De acordo com os resultados obtidos, em relação ao eixo morar/habitar,
identificamos que o conceito de morar que está latente nas falas relaciona-se à
ideia de viver num espaço fechado e definido, de quatro paredes.
Para Saraceno (2001), a reabilitação está intrinsecamente ligada com a ideia de
casa, de morar, ideias que, frequentemente, vêm sobrepostas e são confundidas
entre si, pois muitos pacientes "estão" nos hospitais, em clínicas de
reabilitação ou até mesmo nas casas de suas famílias. Um dos principais
elementos da qualidade de vida e da capacidade contratual de um sujeito é
representado pelo quanto o próprio "estar" em determinado local se torna um
"habitar" este local, pois entre estar e habitar existe um grande diferencial.
Ainda, para Saraceno (2001):
O estar tem a ver com uma escassa ou nula propriedade (não só material) do
espaço por parte do indivíduo, com uma anomia e anonimato do espaço em relação
àquele indivíduo que no dito espaço não tem poder decisional, material e nem
simbólico. O habitar tem a ver com um grau sempre mais evoluído de
"propriedade" (mas não só material) do espaço no qual se vive, um grau de
contratualidade elevado em relação à organização material e simbólica dos
espaços e dos objetos, à sua divisão afetiva com os outros" (p. 114).
A casa ou moradia em que vivemos não, necessariamente, seria um dos melhores
lugares para exercitarmos a nossa contratualidade, ou seja, o poder e o prazer
do habitar, pois mesmo nessa situação podemos experimentar a perda do poder
contratual, material e simbólico (Saraceno, 2001).
Nesse sentido, o albergue pode efetivamente ser um abrigo para os que não têm
recursos, mas avaliamos que no albergue não existe condições do sujeito
habitar, pois na maior parte das vezes o albergue é um lugar de regras
definidas e de grande rotatividade, onde as pessoas são tratadas da mesma forma
e são obrigadas a fazer as mesmas coisas sendo, portanto um lugar onde o
sujeito possa apenas estar.
Podemos inferir que talvez por essa razão, muitos moradores de rua prefiram o
espaço da rua como habitar por experimentarem maior liberdade e independência,
mesmo com a precariedade e vulnerabilidade própria dessa situação. Nesse
sentido, o eixo habitar não está associado à ideia de habitação enquanto
propriedade, mas sim de um espaço material ou simbólico, onde o sujeito se
sinta apropriado e partícipe.
No entanto, a reabilitação deve se ocupar da casa e também do habitar,
considerando a habitação/moradia um direito constitucional que se relaciona
também à segurança física e à saúde. A escolha da rua como moradia, portanto,
não deve ser motivada por uma falta de opção ou fuga de alguma situação
desfavorável.
O habitar, na concepção da Reabilitação Psicossocial, está ligado à ativação de
desejos e habilidades, sendo possível trabalhar sobre o eixo habitar mesmo na
ausência de uma casa concreta, considerada uma das formas possíveis do habitar,
mas não a exclusiva, pois os profissionais podem objetivar a transformação do
habitat que é o processo de transformação de espaço em lugar, onde quer que se
encontre o sujeito, haverá um trabalho de habitar a ser feito em conjunto
tornando o habitat qualquer lugar que o paciente possa estar. O técnico deveria
assumir "a função de intermediação" que é a função do técnico empenhado sobre o
eixo habitat.
Ressaltamos que os percursos individuais que acompanham a experiência da
aquisição da casa é um percurso fundamental para a reabilitação, pois o direito
não é somente à casa, mas também a sua aquisição como um processo de formação
da cidadania do individuo. Portanto, o profissional deve ter em mente que a
necessidade sobre a qual este deve atuar é o de habitar e não simplesmente de
se ter uma casa. Pois quando se habita não há o dormir regulado, o amar
proibido ou culposamente tolerado, o comer apenas como nutrição, negando a
banalidade do viver, mas exatamente o contrário, estas ações devem estar
centradas nas demandas singulares de cada um, como acontece com os diferentes
moradores de uma casa que se refletem nos atos do cotidiano com os quais nós
humanos executamos com naturalidade e liberdade (Saraceno, 2001).
Os seres humanos necessitam do contato com o outro para se reconhecer, faz
parte da vida cotidiana estabelecer relações interpessoais, sejam elas
comerciais, afetivas, materiais e até mesmo de poder. Estas trocas podem
acontecer em qualquer espaço seja nas ruas, nos bares, no mercado, nas escolas,
nas instituições religiosas, de saúde, enfim em qualquer lugar onde existam
mais de uma pessoa disposta a estabelecer trocas. A participação nessa troca
com o outro, ou dos lugares onde essa troca torna-se possível constitui a
chamada rede social.
De acordo com os resultados, percebemos que para os profissionais há uma
limitação na possibilidade de reabilitar aqueles que não têm família, ou que
possuem uma família que não acolhe, e que na experiência cotidiana revela ser a
realidade de grande parte dos usuários dos serviços de saúde mental.
Saraceno (2001) afirma que a desabilitação dos sujeitos com sofrimento psíquico
também é o empobrecimento da sua rede social, que conta com perda qualitativa e
quantitativa desde a primeira rede social disponível que é o núcleo familiar.
Entendemos que certamente é mais "simples" conceber como âmbito de intervenção
acerca da rede social o que é mais restrito à família, pois se trata de um
universo mais reduzido e definido socialmente (para o paciente e para o
profissional), em detrimento da intervenção na rede social mais ampla
(Saraceno, 2001).
As intervenções que possibilitam uma melhora no cenário familiar
consequentemente geram expansões na rede social como um todo, o que também é
demonstrado em estudos internacionais que enfatizam o suporte social no
tratamento como um facilitador na remoção de atritos, melhorando a interação
interpessoal dos usuários de drogas e a sociedade, auxiliando o usuário de
drogas a assumir um novo papel social (Malhotra A, Maihotra S, Basu D, 2001).
O carinho (apoio) da família também é considerado pelos profissionais
importante para a reabilitação, e vai ao encontro de estudos internacionais que
afirmam que o suporte social oferecido pela família, amigos e outros
participantes na recuperação dos usuários de drogas podem ter um papel vital na
prevenção/desenvolvimento da recaída (Malhotra A, Maihotra S, Basu D., 2001;
McMahon RC., 2001).
Corroborando com esta visão, Fleeman (1997) demonstra uma forte evidência de
que o suporte social auxilia e efetiva o tratamento ambulatorial e a
desintoxicação residencial. Existem também outras vantagens, como a redução do
estigma do paciente internado e o maior envolvimento da família no suporte.
Vale ressaltar que não foi detectada nenhuma frase relacionada à rede social
excetuando-se a família, entretanto como já apontamos, a rede social é muito
mais do que a família e inclui a comunidade em geral.
Propiciar o desenvolvimento e a ampliação da rede social, em outras palavras,
favorecer as trocas sociais dos usuários de álcool e outras drogas, envolve
além da intervenção familiar, a transformação da realidade cultural na qual
estão inseridos todos os atores envolvidos.
A rede social pode ser entendida, ainda, numa vertente mais ampliada, como
conjunto de dispositivos extra-hospitalares que, ao estabelecerem conexões com
os usuários, compõe com estes últimos um campo de produção de sociabilidade, de
sentido, de troca (Santos, 1997).
A psiquiatria, desde seu surgimento, associou o transtorno psíquico à falta de
adaptabilidade do homem ao processo produtivo, tomando-o como um critério
diagnóstico que considera como saudável e normal somente àquele que dispõe de
condições físicas e psíquicas para ser considerado habilitado como mão-de-obra
ou força de trabalho disponível para a subordinação e inclusão ao processo de
produção (Aranha e Silva, 1997).
O trabalho, neste sentido, designado para o portador de sofrimento psíquico/
usuário de álcool e outras drogas, foi um trabalho de "faz de conta", aquele
que conhecemos nas décadas de 70/80, do século passado, em nossa formação
técnica, dentro de grandes asilos que não nasceram como um lugar de cuidado
médico da loucura, mas sim, como um espaço de exclusão, determinada, entre
outras coisas, pela obrigação moral do trabalho.
O paradigma psiquiátrico tradicional, que prioriza o olhar sobre a doença,
compreende o trabalho como um dispositivo de tratamento desenvolvido no
interior das instituições que não considera as necessidades do indivíduo, mas
reproduz um valor moral e ético produzido pelo nascimento do capitalismo, onde
a ociosidade deve ser banida e todos devem se adequar às relações sociais de
produção da forma capitalista. O trabalho, nessa concepção, teria uma função
terapêutica e pedagógica, normatizante e integradora, que buscaria restituir a
produtividade dos elementos desviantes da ordem social.
Segundo Aranha e Silva (1997) na perspectiva da Reabilitação Psicossocial, o
trabalho do usuário deixa de ocupar um lugar restrito a um dispositivo de
tratamento, como era no tratamento moral, não servindo mais como dispositivo de
adaptação social proposto pelas ciências comportamentais.
A utilização do trabalho nas propostas reabilitadoras deve se configurar como
um instrumento de inclusão social e promoção de cidadania das pessoas com
transtorno mental, subvertendo a lógica exploratória e terapêutica do modelo
manicomial (Brasil, 2005).
Percebemos, de acordo com os resultados, que no eixo referente ao trabalho os
profissionais ainda centram-se em parcerias ou oficinas, que acontecem na
instituição, com o fim de possibilitar algum ganho financeiro aos usuários em
detrimento de ações propostas pelo Ministério da Saúde.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2005), o novo modelo de atenção tem
apresentado muitas experiências de "geração de renda", "cooperativas",
"trabalho protegido" entre outras, e todas, tem como determinante ético, a
produção da autonomia e a inclusão social dos usuários frente às novas
exigências de compreensão que a vida diária com o mercado capitalista e com a
sociedade excludente impõe. Nesse campo, o Ministério da Saúde em parceria com
a Economia Solidária vem estimulando a criação de empreendimentos solidários no
contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, por meio do programa de inclusão
social pelo trabalho, que entre outras coisas, estabelece um incentivo
financeiro para os serviços que desenvolvam tais ações.
Ainda, para Macedo (2005), o trabalho não pode estar desvinculado da vida do
sujeito, nem da sua história e, portanto, é um dos pontos com o qual os
profissionais devem estar atentos quando pensam em trabalho para a população
que atendem.
Segundo Brescia (2005), somente a partir deste resgate laboral é que o trabalho
pode assumir um significado singular para cada um, pois na perspectiva da
Reabilitação Psicossocial, o trabalho está relacionado à produção de sentido na
vida do usuário, além de permitir ao indivíduo o acesso aos bens materiais
necessários à sua sobrevivência.
Conforme pesquisa realizada por Aranha e Silva (1997, p.97):
Observa-se por meio da afirmação do usuário trabalhador que o exercício de uma
atividade produtiva, associado a um tratamento, amplia seu potencial de relação
intersubjetiva, altera o rigor com que julga sua auto-imagem, interfere e
modifica a trama da rede familiar nuclear, além de alterar a qualidade da
convivência no seu meio social mais próximo, com parentes e vizinhos.
Observou-se, nesse estudo, que a prática reabilitatória nos seus três eixos
ainda é vista pelos profissionais como de difícil execução sobretudo no eixo
que se refere ao morar/habitar, visto que é trabalhado somente o aspecto do
morar, em relação ao eixo da rede social as intervenções são direcionadas à
família em detrimento da intervenção na rede social mais ampla e no eixo do
trabalho as ações estão voltadas às parcerias e oficinas que na grande maioria
das vezes está vinculada a uma das principais características da psiquiatria
tradicional, o entretenimento do doente. Entreter significa ter dentro e também
passar prazerosamente o tempo, esperando que o doente melhore, ou piore e até
que ocorra uma mudança no estado do indivíduo, este permanece entretido com
medicamentos, conversas, atividades recreativas e atividades ergoterápicas, que
não possuem a capacidade de transformar a vida dos usuários (Saraceno, 2001).
Desta forma, não diferente da Reabilitação Psicossocial das pessoas com
transtornos mentais, percebe-se que a construção de um referencial balizador
teórico nesta área, e especificamente no campo das substâncias psicoativas é um
processo ainda complexo que envolve várias instâncias, desde o nível micro '
individual/familiar/institucional até o macro ' comunidade, sociedade e
políticas de saúde mental. Portanto, trata- se de uma prática à espera da
teoria, situação transitória, pois não se pode pensar que há práticas
eternamente sem teorias (Saraceno, 2001). Será no diálogo entre os saberes
científicos e políticos e as práticas por eles subsidiadas que se dará o
reordenamento da atenção em saúde mental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que o conceito de Reabilitação Psicossocial que mais se evidencia
ainda está associado ao modelo psiquiátrico tradicional, ou seja, atrelado à
lógica da normalidade social, sendo esse o principal desafio a ser superado
quando se considera o modelo psicossocial de atenção. Para que as ações
reabilitatórias desenvolvidas no serviço não reforcem o caráter regulatório,
mas desconstruam o paradigma psiquiátrico de exclusão e controle social, o
serviço deve estar compromissado com a transformação das condições de vida dos
usuários.
Colocamos então, a necessidade de cada projeto da instituição estar vinculado
preferencialmente à questão dos direitos fundamentais da pessoa humana. O
direito ao trabalho nos serviços de saúde mental tem que extrapolar o
terapêutico propriamente dito para buscar a reinserção das pessoas sob os seus
cuidados nas redes de produção, troca e de consumo. O direito ao lazer, à arte,
à cultura e à educação também deve ser um eixo diferencial dos projetos
direcionados aos usuários, assim como o direito fundamental à liberdade e o
respeito à dignidade humana e à integridade devem constituir a base do conjunto
de estratégias terapêuticas utilizadas para o acolhimento, tratamento e
acompanhamento destes sujeitos. Destarte, pode-se dizer que o terapêutico em
si, encontra-se inegavelmente associado ao efetivo reconhecimento do usuário
dos serviços de saúde como um sujeito portador de direitos, como cidadão, em um
ambiente favorecedor da autonomia criativa e da participação democrática.