Transtornos Mentais Orgânicos em um Ambulatório de Saúde Mental Brasileiro
Transtornos Mentais Orgânicos em um Ambulatório de Saúde Mental Brasileiro
INTRODUÇÃO
Atualmente o sofrimento psíquico tornou-se mais evidente por adquirir
proporções alarmantes. De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde '
OPAS e a Organização Mundial de Saúde houve nas últimas décadas um crescente
aumento da prevalência de transtornos mentais na população. Podemos entender o
quanto essas doenças afetam a população mundial, pois se estima, conforme essas
organizações, que atualmente há cerca de 450 milhões de pessoas que sofrem de
transtornos mentais ou neurobiológicos. É importante ressaltar que os
sofrimentos psíquicos representam quatro das dez principais causas de
incapacitação em todo o mundo (Medeiros, 2005), integram o quadro de doenças
crônicas não transmissíveis, se apresentam como um problema de saúde global e
representa uma ameaça à saúde e o desenvolvimento humano. As cargas dessas
doenças recaem especialmente sobre países de baixa e média renda (Volcan, Sousa
& Horta, 2003).
Projeções epidemiológicas referentes à saúde mental enfatizam a magnitude dos
problemas mentais que tendem a aumentar nos próximos anos e os diferentes
transtornos têm contribuído para contextualizar esse panorama. Neste trabalho
abordou-se como tema os transtornos mentais orgânicos, os quais são
constituídos pelas demências, transtornos relacionados a algum tipo de lesão ou
disfunção cerebral, delirium e síndrome amnéstica (ambos não induzidos pelo
álcool ou por substâncias psicoativas), sendo que estes dois últimos não serão
abordados neste trabalho em razão de que no serviço de saúde mental, utilizado
como campo de pesquisa, não foram encontrados pacientes portadores destes
transtornos.
As síndromes demenciais são caracterizadas pela perda de várias habilidades
cognitivas e funcionais, por um empobrecimento progressivo dos processos
psíquicos e afetivos e estão relacionadas a doenças como Alzheimer e Parkinson.
Em geral, acometem a população mais idosa (Dalgalarrondo, 2000). Por tal razão,
a maioria dos estudos encontrados à respeito, analisam populações de idosos.
Estudo realizado no Brasil, em um serviço de emergência em saúde mental, com
pessoas idosas, apontou os transtornos mentais orgânicos como a segunda causa
mais frequente de atendimento (Almeida, 1999). Outro estudo, realizado em uma
cidade do interior do estado de São Paulo, Brasil, com indivíduos acima de 65
anos de idade, apontou que mais de 7% dos entrevistados apresentavam algum tipo
de demência (Herrera-Júnior, Caramelli & Nitrini, 1998).
Já os transtornos ocasionados por lesão cerebral, caracterizam-se por lesões em
determinadas áreas do cérebro (frontal, temporal, áreas límbicas, núcleos de
base, etc.) e ocasionam, na maioria das vezes, perturbações relacionadas ao
humor, aos impulsos instintivos e à personalidade (Dalgalarrondo, 2000).
Pesquisa realizada com idosos institucionalizados no Rio de Janeiro, Brasil,
apontou que mais de 4% destes pacientes possuíam algum diagnóstico de
transtorno mental relacionado à lesão ou disfunção cerebral (Hansel, Motta
& Silva, 2008). Outro achado importante, verificado entre pacientes com
este tipo de transtorno, refere-se à relação entre a doença mental e a
violência, sendo que cerca de 60% dos pacientes com lesões frontais apresentam
comportamento violento (Valença & Moraes, 2006).
Com a implantação do Sistema Único de Saúde ' SUS, lei 8.080/90, e com o
andamento do processo de Reforma Psiquiátrica, lei 10.216/01, a sociedade
brasileira conseguiu dar um grande passo para a conquista efetiva de um dos
seus direitos sociais, a saúde, reconhecida pela Constituição Federal
Brasileira de 1988 como "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação" (Constituição da Republica Federativa do
Brasil, 1988).
Estamos vivenciando um processo de transformações no modelo de assistência em
saúde através da compreensão do processo saúde-doença e consequente prática de
desinstitucionalização (Campos & Soares, 2003). Por muitos anos a doença
mental foi institucionalizada, trazendo consequências como de-socialização,
negação da identidade, da subjetividade e perda de contratualidade. A Reforma
Psiquiátrica surgiu para mudar o modelo assistencial, priorizando dispositivos
de atenção à saúde mental extra-hospitalares de base comunitária (Paula, 2010).
Para deter o fluxo de internações é necessário que o sistema ambulatorial seja
eficiente, tenha resolutividade nos casos, impeça a internação e trabalhe pela
ampliação de recursos intermediários entre o leito hospitalar e o ambulatório
(Pezioli & Moreira, 2007). Para o manejo do sofrimento psíquico não basta
aplicação de técnicas, mas necessita de avanços na acessibilidade, na
humanização e criação de estratégias de promoção à saúde que abordem de forma
integral as questões sociais e de relacionamento interpessoal (Carvalho,
Oliveira & Rodrigues, 2010).
As políticas públicas em saúde mental no Brasil dispõem sobre os direitos do
indivíduo e redirecionam o modelo assistencial. É relevante que os estados e
municípios alcancem uma política de saúde mental inclusa, equânime, extra-
hospitalar, de base comunitária (Heck et al., 2008). É possível notar um
aumento na demanda e ressaltar a importância dos serviços de níveis primários e
secundários em saúde mental quando consideramos os esforços direcionados para a
desinstitucionalização somados aos fatores de aumento da expectativa de vida da
população. Este panorama facilita a observação de desafios a serem enfrentados
por estes serviços, a fim de se adequarem e atenderem as necessidades de sua
clientela de forma mais satisfatória.
Uma maneira de se melhorar as ações do serviço corresponde em conhecer o perfil
dos usuários, assim, torna-se possível direcionar ações mais específicas e
apropriadas de acordo com o público atendido.
Os princípios da equidade e integralidade merecem ser destacados, pois visam
redução das desigualdades e garantia de fornecimento de um conjunto articulado
e contínuo de ações e serviços preventivos, curativos e coletivos em todos os
níveis de assistência. Para fornecer dados capazes de apontar tais
especificidades entre o público atendido e também mostrar suas reais
necessidades de saúde, evidencia-se a importância do levantamento
epidemiológico como ferramenta na manutenção destes princípios (Scóz &
Fenili, 2003).
O delineamento do perfil epidemiológico é importante para fornecer informações
que possibilitem a realização de estudos de acordo com as características dos
pacientes atendidos, independente dos serviços (Freitas, Maia e Iodes, 2006).
Destaca-se ainda sua importância na produção de conhecimentos para a tomada de
decisões frente à formulação de políticas de saúde, à organização do sistema e
às intervenções destinadas a solução de problemas (Paim, 2003).
Visando melhorar os serviços, tanto em termos de recursos humanos quanto
físicos, torna-se indispensável planejar ações em saúde mental que visem
identificar a real demanda correspondente a cada tipo de transtorno, suas
peculiaridades, curso da doença, prejuízos sociais e tipo de tratamento.
Instrumentos como SIAB (Sistemas de Informação da Atenção Básica) e SAI
(Sistema de Informações Ambulatoriais), denominados pelo Ministério da Saúde do
Brasil como instrumentos de gestão, visam orientar o planejamento e ações em
saúde, pela tamanha importância conferida ao conhecimento epidemiológico
(Almeida e Ferreira, 2008).
Considerando a necessidade de um atendimento integral e equânime aos usuários
de serviços de saúde mental, somado a falta de informações sobre o perfil
epidemiológico da referida população e especialmente visando aumentar as
chances de intervenções direcionadas aos pacientes com transtornos mentais
orgânicos, tais fatores fomentaram a realização deste trabalho com o objetivo
de conhecer as características sociodemográficas destes pacientes, bem como a
relação destas com a necessidade de internação psiquiátrica.
METODOLOGIA
Projeto aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Brasil (protocolo 1446/2011),
atendendo às normas estabelecidas pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde.
Realizou-se um estudo quantitativo descritivo e exploratório, de natureza
epidemiológica, de prevalência e correlacional. A amostra foi composta por
todos os indivíduos em tratamento no Núcleo de Saúde Mental (NSM) do Centro de
Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Brasil, no período da
coleta de dados, nos meses de abril e maio de 2012. As informações foram
extraídas dos prontuários dos pacientes classificados como ativos no cadastro
do serviço. O NSM é um serviço de natureza secundária e disponibiliza
atendimento ambulatorial em saúde mental.
No que se refere à análise dos dados, realizou-se a estatística descritiva das
características sociodemográficas da população de pacientes, sendo consideradas
as variáveis idade, em anos completos; sexo, dividido em masculino e feminino;
diagnóstico, divididos conforme o capítulo V da CID-10 e nível de escolaridade,
divididos nas categorias não alfabetizado, ensino fundamental incompleto,
ensino fundamental, ensino médio incompleto, ensino médio, superior incompleto
e superior.
Descreveu-se ainda a variável denominada "internação", dividida em "sim", se o
paciente já foi internado em unidade psiquiátrica pelo menos uma vez e "não",
caso nunca tenha sido submetido a internação. Por fim, realizou-se a comparação
das características dos pacientes diagnosticados com transtornos mentais
orgânicos e o perfil geral do NSM.
Sabe-se que o diagnóstico psiquiátrico depende de vários fatores, entre eles a
forma de interpretação do profissional, e levando-se em conta que o atendimento
médico no NSM é feito por 3 psiquiatras diferentes, sendo que cerca de 93% dos
pacientes são divididos entre eles e os aproximadamente 7% restantes são
atendidos por médicos residentes, foi admitido um viés relacionado à variável
"diagnóstico" sendo aceito o diagnóstico mais recente constante no prontuário
do paciente, independentemente do profissional responsável pelo seu tratamento
(Dalgalarrondo, 2000).
ANÁLISE DOS RESULTADOS
Verificou-se que na ocasião da coleta de dados, havia 1281 pacientes em
tratamento no NSM, destes, apenas 36 (aproximadamente 3%) apresentaram como
diagnóstico principal algum transtorno orgânico, dos quais, a maioria (mais de
86%) apresentou o diagnóstico classificado pela CID-10 como F06 (outros
transtornos mentais devidos a lesão e disfunção cerebral e doença física).
Assim como observado no perfil geral do NSM, a maioria dos pacientes com
transtornos orgânicos possui no máximo o ensino fundamental, no entanto
apresentam maior percentual de indivíduos nesta categoria do que a população
total do NSM, cerca de 86% contra quase 67%. Quanto aos níveis secundários e
terciários de instrução, observa-se o oposto o que denota que os pacientes com
transtornos orgânicos, em geral, possuem menor nível de instrução se comparados
ao perfil geral do NSM (gráfico_1).
No que se refere à distribuição por gênero, verificou-se que no NSM as mulheres
compõem a grande maioria (aproximadamente 69%). Já em relação aos pacientes
diagnosticados com transtornos orgânicos observa-se o oposto, sendo que os
homens representam quase 60% do total (gráfico_2).
Já em relação à distribuição etária, chama atenção, no que diz respeito aos
pacientes com transtornos orgânicos, as faixas etárias de 30 a 49 anos (cerca
de 46% dos pacientes) e acima de 70 anos (22% dos pacientes). Se tomarmos como
referência o perfil geral do NSM, estas faixas etárias representam
aproximadamente 40% e 8% respectivamente (gráfico_3). Quanto à média de idade
dos pacientes diagnosticados com transtornos orgânicos, apurou-se 56,72 anos,
sendo o transtorno com maior média de idade do NSM. Já a média geral do NSM foi
de 49,69 anos.
Em relação à necessidade de internação dos pacientes com transtornos orgânicos,
o gráfico_4 apresenta o percentual de pacientes com este transtorno que já
necessitaram de ao menos uma internação ao longo da vida e o percentual
daqueles que nunca foram submetidos a hospitalização psiquiátrica. Para efeito
de comparação, o mesmo gráfico exibe tais dados em relação a outros dois
transtornos e ao perfil geral de pacientes do NSM.
Quanto aos transtornos orgânicos, cerca de 24% dos pacientes com este
diagnóstico já foram submetidos a internação psiquiátrica; percentual acima
daqueles verificados no perfil geral do NSM (em torno de 18%) e transtorno
depressivo (aproximadamente 5%), mas abaixo do observado para esquizofrenia
(quase 37%).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Estudos realizados no Brasil, em serviços semelhantes ao NSM, apuraram que os
pacientes com diagnóstico de transtorno mental orgânico representam entre 4 e
8% dos usuários destes serviços. Na cidade de Maringá/PR foi onde se verificou
o maior percentual (8%) e em João Pessoa/PB o menor (4%) (Carvalho, Oliveira e
Rodrigues, 2010; Paula, 2010; Porcu et al., 2007). No NSM observou-se
percentual pouco abaixo (3%).
Em relação a variável escolaridade, os achados apontam que, de uma forma geral,
no NSM os pacientes com transtornos mentais orgânicos possuem nível de
instrução abaixo da média geral dos pacientes.
É sabido que o grau de instrução exerce forte influência sobre a capacidade de
a pessoa interagir socialmente. Evidencia-se o fato de que a população de
pacientes com transtornos mentais sofre discriminação relacionada à doença, o
que de certa forma interfere no seu acesso à escola e consequentemente reflete
em sua condição socioeconômica, tendo em vista que pesquisas apontam que quanto
menor a escolaridade, menor a renda do indivíduo. Sabe-se também que a renda
está fortemente associado à condição de saúde-doença das pessoas (Souza, 2007).
A literatura demonstra que as pessoas com nível educacional inferior ao ensino
fundamental tem escores mais altos para demência que os sujeitos com ensino
médio ou superior, o que sugere que quanto mais baixo o nível educacional do
indivíduo maior a possibilidade de ele apresentar transtorno mental (Souza,
2007). A maioria dos pacientes acometidos por transtornos mentais, neste estudo
em especial aqueles com diagnóstico de transtorno mental orgânico,
provavelmente não tiveram o acesso adequado à educação por conta de
discriminações ou limitações relacionadas ao transtorno mental ou ainda por
entraves causados pela condição econômica.
No que se refere à variável gênero, verificou-se que entre aqueles com
diagnóstico de Transtorno mental orgânico, a predominância é do gênero
masculino (60%), assim como no município de João Pessoa/PB, onde as observações
apontaram que os homens representavam 59% dos usuários (Medeiros, 2005).
Diversos estudos tentam explicar as diferenças entre os gêneros relacionadas às
manifestações dos transtornos mentais, com diferentes teorias e abordagens, no
entanto, todos defendem a ideia do gênero como uma construção psicossocial que
influenciará inevitavelmente a expressão da saúde mental (Rabasquinho e
Pereira, 2007).
Chama atenção em relação à distribuição etária o fato de que cerca de 46% dos
pacientes diagnosticados com transtornos orgânicos estão dentro da faixa etária
de 30 a 49 anos e 22% estão acima de 70 anos. Algo semelhante foi encontrado em
um estudo realizado em uma cidade do nordeste brasileiro. Dos 2422 pacientes
diagnosticados com transtornos mentais orgânicos, inclusive os sintomáticos, a
maior concentração está na faixa etária de 20 a 39 anos (849 sujeitos), seguido
por 761 pacientes na faixa etária de 40 a 59 anos e 454 pacientes acima de 60
anos (Medeiros, 2005). No município de Maringá grande parte dos pacientes com o
mesmo diagnóstico encontra-se na faixa etária superior a 61 anos (Porcu et al.,
2007).
Estudo realizado em Campinas/SP, Brasil, mostrou que os pacientes com idade
igual ou superior a 60 anos possuem 2,2 vezes mais risco de um desfecho menos
favorável do que aqueles com menos de 60 anos no caso de necessitarem de
internação psiquiátrica. Foi evidenciado ainda que os pacientes com diagnóstico
de transtorno psicorgânico possuem, por exemplo, 2,7 vezes maior risco de um
desfecho pior do que aqueles diagnosticados com transtornos de humor
(Dalgalarrondo, Botega, & Banzato, 2003). No NSM 24% dos pacientes com
transtornos orgânicos já necessitaram de ao menos uma internação durante a
vida.
CONCLUSÕES
Em síntese, caracterizou-se o perfil dos usuários com transtornos mentais
orgânicos como, em sua maioria, do gênero masculino, de baixa escolaridade e
idade acima da média observada para outros diagnósticos. Muitos destes
pacientes apresentam necessidade de internação psiquiátrica.
Os estudos epidemiológicos em saúde mental visam não apenas o diagnóstico
comunitário, mas o estudo do funcionamento do serviço, dos transtornos mais
comuns na sua área de abrangência para assim direcionar as ações apropriadas de
acordo com a população. Uma das formas de melhorar e aperfeiçoar a assistência
consiste na caracterização da clientela assistida.
Ressalta-se a importância de intensificar os cuidados ao portador de transtorno
mental, através do cumprimento das políticas públicas de saúde e também ações
no nível primário que atendam esta população prevenindo possíveis internações.
Cabe à equipe preparar a família para lidar com este paciente, neste caso,
especialmente aqueles acometidos por transtornos orgânicos, através de
orientações quanto aos sintomas, evolução da doença e efeitos dos medicamentos.
Salienta-se que a taxa de atendimentos à população idosa tende a crescer devido
ao envelhecimento da população. Assim, os serviços devem estar preparados para
lidar com problemas de saúde característicos da terceira idade, como a demência
e outros transtornos orgânicos, que apresentam prevalência aumentada em
populações idosas.
Espera-se que este estudo possa incitar ou servir de modelo para o uso de
ferramentas de cunho epidemiológico no planejamento das ações e atenção aos
pacientes além de melhorar a articulação da rede de saúde e melhor
sistematização do cuidado.