Bullying escolar e avaliação de um programa de intervenção
Introdução
A escola, como espaço privilegiado de contacto pessoal, constitui o ambiente
propício ao inter-relacionamento e desenvolvimento das crianças e dos jovens,
sendo mesmo considerada como um dos mais importantes agentes socializadores com
forte influência na construção das suas identidades. Todavia, esta mesma escola
que, durante gerações, foi contemplada como um local seguro, tornou-se, nos
dias de hoje, um palco de conflitos e de tensões e, na forma mais radical, pode
mesmo ser considerada como um lócus de produção e reprodução de violência
perpetrada sob as mais variadas formas (Abramovay, 2005).
A violência escolar, não sendo um problema novo, é um fenómeno complexo e
múltiplo que não pode ser ignorado. Na verdade, a incidência de comportamentos
de violência nas escolas tem vindo a crescer nos últimos anos, preocupando toda
a comunidade educativa, face ao clima de insegurança que se instala à maior
probabilidade de insucesso escolar, aos comprometimentos físicos e emocionais
ou mesmo a sentimentos de insatisfação com a vida (Mendes, 2010). Segundo
Olweus (1999, p. 10) A student is being bullied or victimised when he or she
is exposed repeatedly and over time to negative action on the part of one or
more other students. O fenómeno do bullying não se refere apenas às agressões
que acontecem ocasionalmente, nos intervalos ou fora da escola, mas à violência
que se manifesta como um comportamento ligado à agressividade verbal (ex.,
chamar nomes, gozar de modo desagradável, ameaça), física (ex., bater,
empurrar, dar encontrões), social (ex., deixar de fora do grupo, ignorar) e
sexual (ex., tocar em partes do corpo do outro deixando-o desconfortável).
Neto (2005) considera-o um problema de saúde pública que afeta a saúde das
crianças e adolescentes em diversas dimensões. Sansone & Sansone (2008)
identificam-no como um fenómeno social que transcende o género, a idade e a
cultura.
Da diversa literatura pesquisada, podemos constatar que é possível definir
critérios que permitam identificar comportamentos suscetíveis de ser
qualificados como bullying, designadamente o facto de se tratar de uma conduta
agressiva intencional, com carácter repetitivo e sistemático onde se destaca
uma desigualdade de poder entre os alunos envolvidos, o agressor e a vítima
(Fontaine & Réveillère, 2004; Lisboa, Braga e Ebert, 2009; Mendes, 2011;
Olweus, 1993; Pereira, 2002; Roberts & Morotti, 2000).
Estudos realizados em vários países revelam que os estudantes observam e
relatam, frequentemente, experiências de bullying nas escolas. Os resultados da
investigação realizada em países como a Austrália, Canadá, Reino Unido, Japão,
Escandinávia e Croácia, publicados em 2012, demonstram que 7% a 23% dos
entrevistados foram identificados como bullies (agressores), 5% a 12% como
vítimas e 2% a 21% como bully/victims (agressores/vítimas) (Sesar, Bariić,
Panda & Dodaj, 2012).
Segundo Martins (2005, p. 403) O fato do bullying ser um fenómeno grupal,
sugere que os programas de prevenção da violência escolar devem dirigir-se mais
aos grupos, escolas e turmas, do que aos indivíduos; e o facto de se manifestar
sob diferentes formas ' físico, verbal e indireto ' sugere que as estratégias
de intervenção ou prevenção deverão levar em consideração o tipo de bullying
que pretendam prevenir ou erradicar.
Sendo assim e partindo do pressuposto que a Escola, como Instituição, é
garantia de que o ensino é transmitido num ambiente seguro e saudável, propomo-
nos, no âmbito deste estudo, caracterizar o fenómeno bullying no seio de um
grupo de estudantes que frequentam um estabelecimento de ensino do Norte de
Portugal e avaliar o impacto que um programa de intervenção, em que esteja
envolvida a comunidade educativa, pode exercer na prevenção e combate a este
fenómeno.
Metodologia
Participantes:Na avaliação inicial (novembro de 2012: n= 313) da dimensão do
fenómeno em causa, a seleção dos estudantes foi feita de forma aleatória e
estratificada por anos de escolaridade, obtendo uma amostra de 313 estudantes
de turmas do 2º e 3º ciclos do ensino básico. No segundo momento de avaliação
(junho de 2013: n=298) avaliou-se o programa de intervenção. Na realização
deste estudo foram tidos em consideração todos os procedimentos éticos de
acordo com os padrões estabelecidos na Declaração de Helsínquia. Para além dos
estudantes foram incluídos numa oficina de formação vinte docentes que
representavam as turmas incluídas na amostra.
Instrumentos:O Instrumento utilizado para a avaliação do fenómeno do bullying
no AVENP foi o Questionário Diagnóstico do Bullying na Escola da Direção
Geral da Saúde ' Ministério da Saúde.
Visão Geral do Programa(Nós e os Outros): Depois de termos conhecimento da
dimensão do fenómeno, foi elaborado um programa de intervenção que intitulamos
Nós e os Outros, o qual foi aprovado pela Direção do AVENP e pelo Conselho
Cientifico-Pedagógico da Formação Contínua de Professores.
Com este Programa pretendeu-se: i) Determinar a distribuição do comportamento
de bullying no AVENP ii) colaborar com os educadores e outros intervenientes no
trabalho com adolescentes e jovens a desenvolver um programa de intervenção;
iii) implementar um programa de intervenção e; iv) avaliar o efeito de um
programa de intervenção sobre bullying na escola em causa.
O Programa contemplou três dimensões: Dimensão I ' Formação a pais/encarregados
de educação e assistentes operacionais; Dimensão II ' Na escola e espaços
exteriores à escola: otimização dos recreios e espaços com menos supervisão;
melhoramento dos transportes escolares e; Dimensão III - Intervenção com os
estudantes: desenvolvimento de competências sociais positivas, incidindo nas
práticas diárias de convívio baseado no respeito, enfatizando estratégias de
comunicação eficazes, o espírito de grupo e de cooperação, o aumento da
autoestima e o respeito pela diferença.
No que se refere à Dimensão I foram realizadas duas ações de formação
direcionadas aos pais/encarregados de educação e aos assistentes operacionais,
no sentido de lhes dar conhecimento e sensibilizá-los para o projeto.
Relativamente à Dimensão II e III, foi efetuada uma de oficina de formação a
vinte docentes que teve a duração de 30 horas, sendo 15 horas de sessões
formais conjuntas e 15 horas de sessões de trabalho autónomo. A oficina de
formação decorreu entre Fevereiro e Maio de 2012, tendo os seguintes objetivos:
i) promover a discussão sobre o fenómeno do bullying na comunidade escolar; ii)
desenvolver conhecimentos sobre a natureza do bullying; iii) reconhecer as
características dos intervenientes no bullying; iv) reconhecer os sinais de
alerta do bullying; v) analisar dados nacionais e internacionais reveladores
das consequências do bullying na saúde das crianças e futuros adultos; vi)
desenvolver estratégias de gestão do bullying; vii) desenvolver estratégias de
comunicação eficaz com todos os atores educativos; viii) desenvolver
estratégias promotoras de saúde e bem-estar em sala de aula e nos espaços
escolares; ix) sensibilizar para a importância do envolvimento de toda a
comunidade na dinâmica preventiva e interventiva; planear a inclusão da área da
prevenção da violência em meio escolar no projeto educativo da escola e no
plano de atividades da turma e; x) promover a conceção de materiais pedagógicos
adequados ao contexto, adaptando-os ao público-alvo.
Neste sentido, foram abordados os conteúdos e estratégias que a seguir se
mencionam: i) Introdução à problemática da violência escolar/bullying; ii)
Natureza do bullying (conceito); iii) características dos intervenientes no
bullying (vitimas, agressores, testemunha - observador); iv) sinais de alerta e
risco do bullying; v) consequências do bullying (pessoais, familiares e
sociais); vi) a família dos intervenientes no bullying; vii) a comunicação
interpessoal; viii) lidar com a diferença; ix) competências de comunicação e;
x) competências sociais; xi) a interação grupal e; estratégias de gestão do
bullying.
A oficina de formação seguiu quatro fases metodológicas: 1ª Fase: Dos doze
temas previstos, foram abordados os seis primeiros, através da leitura e
discussão de textos, apresentação de temas teóricos, visualização de vídeos e
análise de estudos científicos em sala de formação e, trataram-se os restantes
seis através da técnica de rol-play, leitura e análise de textos; 2ª Fase: Os
formandos aplicaram em contexto de sala de aula as estratégias de gestão de
bullying abordadas nas sessões anteriores; 3ª Fase: Fez-se uma reflexão sobre a
aplicabilidade das intervenções e ajustaram-se de acordo com as situações
apresentadas melhorando as práticas e; 4ª Fase: Realizou-se a avaliação da
implementação das estratégias no espaço escolar, com a apresentação dos
trabalhos desenvolvidos e implementados com os estudantes em sala de aula, nos
espaços exteriores e interiores da escola, a partir do diagnóstico feito, de
acordo com as sugestões que lhes foram transmitidas ao longo da oficina de
formação. No final da oficina de formação foi realizada a sua avaliação através
do preenchimento de uma ficha de avaliação da ação, de um relatório de reflexão
crítica dos formandos, de um relatório dos formadores e de um relatório do
consultor.
Análise estatística: Os dados do questionário foram tratados com recurso ao
programa informático Statistical Package for Social Sciences (IBM-SPSS, versão
21), com recurso a testes estatísticos no contexto de um design intra-sujeitos.
Resultados
O fenómeno do bullying foi avaliado em dois momentos no mesmo grupo de
estudantes do 2º e 3ºciclos do ensino básico distribuídos pelos diferentes anos
letivos refletindo cada momento o antes e após a implementação do programa de
intervenção. A perda de sujeitos entre os dois momentos foi de 15 indivíduos,
correspondendo a 4.8% do total de estudantes incluídos na amostra (Tabela_1).
Globalmente, a percentagem de estudantes que afirmou, em algum momento, já ter
sido vítima de bullying nos últimos dois meses foi de 14.6% na primeira
avaliação e de 10.7% na segunda avaliação. Relativamente aqueles que se assumem
como agressores em algum momento nos últimos dois meses, as percentagens variam
entre 4.7% para o bullying sexual e 23.4% para o bullying verbal.
Procurou-se a existência de diferenças com significado estatístico no que se
refere ao relato da prática de comportamentos agressivos no caso dos estudantes
que se identificam como bully-provocadores e também, em relação àqueles que
relatam terem sido vítimas de bullyingentre os dois momentos de avaliação. As
respostass variaram ordinalmente entre nunca (1) e várias vezes por semana (5).
Para cada uma das duas vertentes foram analisadas quatro dimensões do bullying
(físico, verbal, social e sexual). A análise dos resultados através do Teste de
Wilcoxon revelou a existência de significado estatístico marginal para os
comportamentos agressivos de bullying verbal (Z= -1.808, p=.071). A intensidade
do fenómeno relatado pelos estudantes que assumiram comportamentos de
agressividade verbal diminuiu marginalmente depois da implementação do programa
de intervenção. Na análise descritiva verifica-se que a percentagem daqueles
que relatam nunca terem comportamentos de agressividade verbal nos últimos dois
meses aumentou de 76.6% para 80.5% entre os dois momentos. Estes dados revelam
ainda que o bullying verbal é a dimensão do fenómeno com maior prevalência
(Tabela_2).
Ainda, como se verifica na Tabela_2, constatou-se, também, uma tendência de
aumento dos estudantes que relatam nunca ter sido vítimas de bullying nos
últimos dois meses em todas as quatro dimensões analisadas e um aumento
residual do número de estudantes que revelaram terem comportamentos de
agressividade nos últimos dois meses nas dimensões social e sexual. No entanto,
em nenhuma destas dimensões das duas vertentes foram encontradas diferenças
significativas que possam atribuir essa variabilidade ao programa de
intervenção desenvolvido.
Discussão
As percentagens de práticas de bullying encontradas neste estudo aproximam-se
de outras investigações (Sesar, et al., 2012; WHO-Europe, 2012) que variam
entre 5 a 12%. Relativamente aos agressores os dados também apontam para a
comparabilidade com dados internacionais (Sesar, et al., 2012; WHO-Europe,
2012). Os resultados sugerem uma diminuição da existência do bullying verbal
como consequência do programa de intervenção, o que indica uma alteração
comportamental, ainda que ténue, decorrente das atividades desenvolvidas.
Provavelmente, este facto deve-se à enfatização da comunicação interpessoal,
estratégias de comunicação e competências sociais abordadas na oficina de
formação. O facto de ter diminuído ligeiramente o número de estudantes que
nunca revelaram ter práticas de agressividade nos últimos dois meses, no que se
refere ao bullying social e sexual, pode ser justificado pela baixa prevalência
dessas práticas específicas e, simultaneamente, no segundo momento, os
estudantes estarem mais sensibilizados para o fenómeno e reconhecerem mais
facilmente estas práticas como agressivas. De realçar, que o 2º momento
avaliativo foi efetuado no final do ano letivo, para garantirmos que os
sujeitos avaliados nos dois momentos fossem os mesmos. Contudo, em termos de
Educação para a Saúde (EPS), a avaliação de alteração de comportamentos exige
um processo de mudança contínuo e prolongado, para que essa alteração ocorra,
pelo que, novas avaliações serão necessárias no futuro.
Conclusões (Implicações para a Prática)
Para prevenir o bullying, os programas devem envolver toda a comunidade escolar
(estudantes, professores, pais, e outros elementos que integram direta ou
indiretamente a escola). O programa apresentado foi de encontro a este
princípio. Para além deste aspeto, a necessidade de intervenção nesta área foi
detetada por este AVENP, condição imprescindível para que esta tivesse sido
efetuada. Ao longo do ano letivo, foi sentido e demonstrado interesse em todos
os atores escolares relativamente ao projeto, o que facilitou o seu
envolvimento e a implementação do programa. Embora este tenha terminado, a
Escola em causa mantem-se atenta a este fenómeno e, inclusivamente, já no
presente ano letivo (2013/2014) comemorou o dia mundial do combate ao bullying
(20 de Outubro).
No entanto, considera-se pertinente que este tema conste do programa educativo
desta Escola, o que permitiria uma abordagem e consciência longitudinal do
fenómeno. Sendo um problema com características muito alternantes, a Escola tem
o papel de o monitorizar, no sentido de, com frequência, se modificarem
práticas. O programa de intervenção apresentado respondeu às necessidades da
Escola, dado que foi enfatizada a necessidade de percecionarem o fenómeno como
complexo, sendo da responsabilidade de todos e que exige continuidade. Neste
sentido, o programa implementado teve implicações importantes para as práticas
pedagógicas que promovem a saúde, e concretamente, a saúde mental dos
estudantes.