Prevalência de perfis lipídico e glicémico alterados em pacientes com
esquizofrenia
Introdução
A SCZ é um transtorno complexo e multifatorial que se caracteriza por sintomas
designados como positivos (delírios e alucinações), negativos (apatia e
embotamento afetivo), cognitivos (défices na atenção e memória trabalho) e
afetivos (ansiedade e depressão). A SCZ tem elevada prevalência, cerca de 1% da
população mundial, distribuindo-se por todo o mundo de modo semelhante
(Freedman R, 2003).
Atualmente, a intervenção terapêutica na SCZ focaliza-se desde a minimização
dos sintomas à reabilitação do paciente. O controlo da sintomatologia positiva
faz-se mediante a administração de fármacos antipsicóticos (AP). São vários os
fatores que poderão entrar na análise da efetividade dos AP, para além da ação
sobre a sintomatologia da SCZ, como a adesão à terapêutica e efeitos
colaterais. Os efeitos colaterais descritos para os AP são extrapiramidais
(Thomas, 2007), síndrome maligno dos neurolépticos, taquicardia, disfunção
sexual, aumentos de níveis de prolactina, de peso, dislipidemias, diabetes,
discrasias hematológicas, entre outros (Davis, 2006). Estes efeitos estão
muitas vezes relacionados com a afinidade que cada fármaco tem para os diversos
neurorecetores, por exemplo, os AP de primeira geração, com maior afinidade
para os recetores dopaminérgicos (D2), estão mais associados a efeitos
extrapiramidais e hiperprolactinémia. Já os de segunda geração, com mais
afinidade para recetores 5-HT2A, têm sido associados a aumento ponderal e
alterações do metabolismo da glicose e perfil lipídico (Haddad & Sharma,
2007).
Os pacientes com SCZ apresentam elevada prevalência de fatores de risco
cardiovascular (FRCV) (Ferreira, Belo, & Abreu-Lima, 2010), e têm duas
vezes maior mortalidade por doença cardiovascular que a população geral (Vargas
& Santos, 2011). A observação da prevalência de múltiplos FRCV conduziu à
recomendação do controlo do perfil lipídico anualmente nestes pacientes quando
o fármaco prescrito é de baixo risco, e de 3 em 3 meses quando é de elevado
risco (Davis, Chen, & Glick, 2003). Se a dislipidemia persistir, pode ser
administrada terapêutica para baixar os níveis ou alterar a prescrição de AP
para outro com menor risco de alteração do perfil lipídico (Meyer, 2007). No
entanto, na SCZ os AP são apenas um dos fatores a considerar quando se analisa
o excesso de peso, dislipidemia ou alterações do metabolismo da glicose, já que
existem fatores inerentes à própria doença que contribuem para a não adoção de
estilos de vida saudável e assim com maior probabilidade de DCV (Van Dorn et
al., 2013).
O presente estudo teve como objetivo analisar a prevalência de alterações nos
perfis lipídicos e glicémicos e a terapêutica AP numa amostra de pacientes SCZ.
Metodologia
Realizámos um estudo descritivo retrospetivo na população de pacientes com
patologia de SCZ do Hospital de Dia (HD) do serviço de Psiquiatria do Hospital
São João (HSJ).
A amostra foi constituída pelos registos de pacientes com diagnóstico de SCZ de
acordo com os critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (DSM-IV-TR) (APA, 2010), do referido serviço, nos anos de 2011, 2010
e 2009. Foram incluídos os pacientes com o mínimo de 3 anos de diagnóstico,
idades entre os 18 e os 65 anos e registo da terapia AP e de análises
laboratoriais bioquímicas no período temporal em estudo.
Após o consentimento da Comissão de Ética do HSJ, foram consultadas as bases de
dados dos participantes, para aceder aos registos dos 5 anos anteriores ao
início do estudo (2011) e recolher dados quanto a: (i) Caracterização clínica e
sociodemográfica: idade; sexo; estado civil; escolaridade; idade de diagnóstico
SCZ; história familiar de doenças, incluindo do foro psicológico (DFP); (ii)
Estilo de vida: hábitos tabágicos; consumo de álcool; consumo de drogas de
abuso; atividade física; (iii) Avaliação antropométrica: peso; altura; índice
de massa corporal (IMC) e perímetro abdominal; (iv) Pressão arterial: sistólica
(PAS) e diastólica (PAD); (v) Terapêutica farmacológica antipsicótica: fármaco;
dose e período de administração; (vi) Parâmetros bioquímicos séricos:
colesterol total; colesterol das LDL (Lipoproteínas de Baixa Densidade, do
inglês: Low Density Lipoprotein); colesterol das HDL (Lipoproteínas de Alta
Densidade, do inglês: High Density Lipoprotein); triglicerídeos e glicose.
Realizámos uma avaliação longitudinal e comparativa dos registos individuais de
terapia AP para o(s) período(s) temporal(ais) com alteração dos parâmetros
analíticos para os pacientes que cumpriam pelo menos um dos seguintes
critérios: (i) presença concomitante de pelo menos três FRCV (De Hert, Dekker,
Wood, Kahl, Holt, & Moller, 2009), (ii) hiperglicemia indicadora de
Diabetes Mellitus (DGS, 2011), (iii) presença concomitante de pelo menos três
fatores indicadores de síndrome metabólica (Usher, Foster, & Park, 2006).
Realizou-se a análise descritiva das variáveis utilizando o software SPSS®
versão 17.0.
Resultados
Caracterização sociodemográfica e clínica
A amostra foi constituída pelos registos de 51 indivíduos com SCZ,
maioritariamente do sexo masculino (n=42, 82,4%), com idade média de 39,3±9,2
anos, com as características sociodemográficas e clínicas apresentadas na
Tabela_1. A idade média de diagnóstico foi nos homens 24,1±8,5 anos e, nas
mulheres, 26,6±8,5 anos.
Nos consumidores de álcool registámos antecedentes pessoais, bem como história
familiar de alcoolismo (n=3). Na atualidade, a maioria (n=40, 89,0%) não
consome drogas de abuso, mas no registo histórico (n=28) cerca de 60,7% (n=17)
referem ter consumido na juventude. Não obtivemos registos relativamente à
avaliação antropométrica e pressão arterial.
Em relação aos fármacos mais frequentemente prescritos, estes foram haloperidol
e risperidona, em doses dentro do intervalo recomendado (Infarmed, 2013).
Perfil lipídico e glicémico
Os resultados dos parâmetros analíticos colesterol total, LDL e HDL,
triglicerídeos e glicemia registados para os pacientes estão sistematizados na
Tabela_2.
Do total da amostra, 35 (68,6%, 27 homens e 8 mulheres) pacientes SCZ
apresentavam pelo menos um fator indicador de síndrome metabólica. A presença
concomitante de dois destes fatores foi encontrada em 30 (58,8%, 24 homens e 6
mulheres) pacientes SCZ.
Análise individualizada de casos
A aplicação dos critérios resultou na seleção de 10 casos para análise
individualizada (Tabela_3). Destes pacientes, seis apresentam valores de
glicemia indicadores de diabetes mellitus e cinco apresentam FRCV
(hiperglicemia, hipercolesterolemia e colesterol LDL elevado). Registámos sete
pacientes SCZ (13,7%) com presença concomitante de três fatores de indicadores
de síndrome metabólica, todos com alteração dos valores de colesterol HDL,
triglicerídeos e glicemia.
Em relação à análise longitudinal aos dados do Paciente 1 a variação dos
valores de colesterol HDL evidência valores sempre inferiores ao intervalo de
referência (IR). É observado um período de hiperglicemia pré-diabetes após a
introdução cumulativa de terapia com risperidona ao haloperidol. Há
normalização da glicose quando a prescrição passa a apenas haloperidol. Quanto
ao Paciente 2, com história familiar de alcoolismo, observam-se valores de
colesterol total e triglicerídeos sempre superiores aos IRs. No colesterol LDL
registaram-se valores superiores ao IR, seguindo-se a sua normalização com
passagem de AP de risperidona para haloperidol. Os valores de colesterol HDL
encontram-se sempre dentro do IR. O Paciente 3 apresentou valores de colesterol
HDL sempre inferiores ao IR. A glicemia mantém-se dentro da normalidade,
verificando-se um aumento para valores indicativos de diabetes (valor médio de
124,3 mg/dL) com a introdução de olanzapina em adição ao haloperidol. Já os
valores de colesterol total e LDL mantiveram-se dentro dos IRs até ao momento
em que se verificou aumento para valores superiores ao IR. A terapia de AP foi
alterada 6 meses antes, com a introdução da clozapina em adição ao haloperidol.
O Paciente 4, tem sempre valores de colesterol HDL e triglicerídeos fora do IR.
Quanto à terapia AP, registou-se a administração de haloperidol conjugado com
levomepromazina ou olanzapina, tendo estes 2 últimos fármacos sido suspensos a
meio do período temporal em questão. Em relação ao Paciente 5, os valores de
colesterol HDL baixos e de glicemia pré-diabetes foram observados após o início
da administração de haloperidol. No Paciente 6 os valores de colesterol total,
LDL, HDL, triglicerídeos e glicose evidenciaram valores sempre fora dos
respetivos IR. Para este período temporal, a terapia AP administrada foi
risperidona. No Paciente 7 observou-se uma alteração de valores normais dos
parâmetros colesterol total, HDL e triglicerídeos para fora dos respetivos IR.
Neste período existe registo de administração risperidona e levomeprozamina. No
Paciente 8 registaram-se valores superiores aos IR para os parâmetros
colesterol total e triglicerídeos, e dentro dos IR para colesterol LDL e HDL.
Quanto à glicose sérica, registou-se apenas um valor ligeiramente superior ao
limite máximo do IR. A terapia AP administrada foi inicialmente haloperidol,
seguidamente acrescido de quetiapina e posteriormente de risperidona.
No Paciente 9, observou-se valores de colesterol total sempre superiores ao IR,
com valor mínimo de 247 mg/dL e máximo de 317 mg/dL e um aumento da glicose
para valores de hiperglicemia pré-diabética. Observou-se esta situação após a
introdução de haloperidol e quetiapina. Por fim, o Paciente 10 apresentou
alterações a nível do todo o perfil lipídico em estudo. Realizava terapia com
haloperidol e clozapina.
De entre estes casos, em relação ao estado civil, 8 são solteiros e 2 casados;
na escolaridade, 6 têm escolaridade igual ou inferior ao 12º ano e 4 sem dados.
Quanto à história familiar de outras doenças, apenas há registo para o Paciente
2 (alcoolismo).
Discussão
A maioria da amostra é do sexo masculino o que não é congruente com dados
nacionais, em que a patologia atinge de igual modo ambos os sexos (Rabasquinho
e Pereira, 2007). Este desequilíbrio na distribuição poderá ser explicado por
um possível viés de Berkenson e limita a interpretação dos resultados quando
analisado na perspetiva desta variável.
O predomínio do estado civil solteiro na amostra também é descrito em outros
estudos internacionais (86,7%) (Faulkner, Cohn, Remington, & Irving, 2007).
Esta constatação é compatível com debilitação observada em muitas vertentes
relacionais, limitando a capacidade de estabelecer relações sociais de amizade
ou outras (APA, 2010). Comparando os resultados da escolaridade com o de outros
estudos, verificámos maior frequência de pacientes SCZ com nível de
escolaridade elevado (Ferreira et al., 2010). Quanto ao sexo masculino e a
idade de diagnóstico verifica-se, como em outros estudos, que idade média de
diagnóstico é inferior a 25 anos (De Hert, Dekker, Wood, Kahl, Holt, &
Moeller, 2009). Quanto à história de doença familiar, os casos de SCZ
distribuem-se de igual modo pelos grupos com e sem história de DFP, o que não
vai de encontro ao predomínio da mesma nos familiares de 1º e 2º grau descrito
na literatura. (Myles-Worsley, Tiobech, Blailes, Yano, & Faraone, 2007).
De entre as variáveis de estilo de vida, a amostra tem registo de hábitos
sedentários (67%), a maioria (59,5%) são fumadores, o que está de acordo com
outros estudos (57,8%) (Chaves & Shirakawa, 2008). Apesar de a maioria
(77,3%) não apresentar hábito de consumo de álcool, foram identificados 3 casos
com registos de consumo de álcool com antecedentes pessoais de alcoolismo,
assim como história familiar. Estes casos apresentam prognóstico grave de
evolução no tempo. Quanto ao consumo de drogas de abuso, apesar de na
atualidade a maioria não as consumir, mais de metade dos pacientes estudados
(60,7%) refere ter consumido tóxicos na juventude, com a cannabis a ser a mais
frequente. Estes dados são coerentes com descrito em outros estudos que apontam
o consumo de tóxicos na juventude para um conjunto elevado de casos com SCZ
(Sevy et al., 2010). Para estas variáveis, observou-se a ausência marcada de
dados ao longo do período em estudo. O estilo de vida nestes pacientes resulta
em parte das terapêuticas farmacológicas e ocupacionais, e do maior ou menor
controlo que estes pacientes têm. Assim, pensamos que o registo e integração
destes dados deverão ser significativamente melhorados.
Quanto aos parâmetros bioquímicos, foi possível obter uma quantidade apreciável
de informação cuja diversidade dificulta a análise. A sistematização desta
informação, na tabela_2, parece-nos poder dar uma visão abrangente sobre estes
dados na amostra. Assim, em 10 de 51 doentes verificam-se alterações
metabólicas indicadoras de síndrome metabólico (n=7, 13,7%), risco
cardiovascular (n=5) ou de diabetes mellitus (n=6). Estudos transversais
apontam que a prevalência de síndrome metabólica nos pacientes SCZ é superior à
registada na população geral, variando entre 30,4% e 37% (Vargas & Santos,
2011), especialmente nos que fazem terapia AP de 2ª geração (Usher et al.,
2006). Na nossa amostra, registámos 13,7% pacientes com alteração dos valores
de colesterol HDL, triglicerídeos e glicemia, fatores de indicadores de
síndrome metabólica. A ausência de registo de dados relativos à pressão
arterial e perímetro abdominal, parâmetros determinantes no diagnóstico desta
síndrome, impossibilita a sua classificação. Contudo, a presença concomitante
destes três fatores em pacientes SCZ com síndrome metabólica é indicadora de
necessidade de intervenção clínica imediata (Usher et al., 2006).
Existe evidência de associação entre o uso de antipsicóticos de 2ª geração e o
aumento da prevalência da obesidade e diabetes nos pacientes SCZ, em relação à
população geral (American Diabetes Association, American Psychiatric
Association, American Association of Clinical Endocrinologists & North
American Association for the Study of Obesity, 2004).
A literatura define como fatores de prognóstico negativos na sobrevida destes
pacientes a elevação do colesterol LDL e diminuição do HDL, que quando
associados a outros fatores (ex. estilos de vida não saudáveis) obrigam a
follow-up analítico mais apertado. Os nossos dados claramente indicam a
necessidade de um acompanhamento neste âmbito e de estabelecimento de medidas
corretivas (alimentares, estilo de vida e medicamentosa).
Conclusões
Apesar da adoção de terapêutica farmacológica com AP ter permitido
desintitucionalizar estes pacientes na tentativa de os integrar na sociedade,
estes não melhoram sintomas da patologia, como o comprometimento cognitivo e o
embotamento afectivo. Acresce, ainda, a elevada frequência dos FRCV nestes
pacientes, que releva a importância da ação de equipas multidisciplinares que
implementem e acompanhem intervenções psicossociais e comportamentais que
permitam a adoção sustentável de estilos de vida mais saudáveis. Com o presente
estudo foi observada a necessidade de estabelecer protocolos de follow-up dos
pacientes com maior risco cardiovascular. Pode-se concluir que é fundamental
para garantir um acompanhamento efetivo destes pacientes bem como o sucesso da
investigação a existência de diretrizes terapêuticas e de registos
padronizados.