Vulnerabilidade ao Stress em Pessoas com Alcoolismo
Introdução
Quase sempre a doença desencadeia situações de stress e de sofrimento, tanto
pelas situações novas e imprevistas, como pelas decisões de grande
complexidade. O alcoolismo, sendo uma doença crónica, caracteriza-se pela longa
duração e impossibilidade de cura, exigindo tratamentos prolongados e
adaptações constantes, o que torna esta doença uma importante fonte de stress
(Ridder & Schreurs, 2001). O álcool é um fator determinante de saúde,
responsável por 7,4% de incapacidade e morte prematura na União Europeia (EU).
Avaliando o impacto do álcool através dos Anos de Vida Ajustados à Incapacidade
(DALYs), este corresponde ao terceiro entre vinte e seis fatores de risco de
doença na UE (Balsa, Vital, Urbano e Pascueiro, 2008). O alcoolismo ou Síndrome
de Dependência Alcoólica (SDA) é uma doença grave que afeta um número cada vez
maior de pessoas. Segundo Gameiro (1998) citado pela Direcção-Geral da Saúde
[DGS] (2002), as estimativas mostram a existência de, pelo menos, 580 000
pessoas com alcoolismo e 750 000 bebedores excessivos, em Portugal. Em 2007
estimou-se que terão sido consumidos 11,4 litros de álcool puro per capitaem
Portugal, valor superior à média dos cinco países da UE com menores consumos
(8,1 litros per capita) (World Health Organization [WHO], 2012). O consumo do
álcool, de 2001 para 2007 aumentou de 76% para 79%, assim como, a ingestão de
seis ou mais copos, de 56,8% para 58,4% (Balsa, 2008).
Para Vaz Serra (2005) uma pessoa encontra-se em stress quando perceciona que
não tem controlo sobre um evento que é relevante e perante o qual sente que as
exigências do mesmo ultrapassam as suas próprias capacidades e recursos
pessoais e sociais. Portanto, entende-se o stress como resposta resultante da
avaliação subjetiva que o indivíduo faz de uma determinada situação, ou seja,
qual o significado que lhe confere (insignificante, positiva ou stressante) e
quais os recursos que possui para lhe dar resposta. Assim, se o indivíduo
percecionar que essa situação lhe é prejudicial e que é incapaz de lidar com
ela, entra em stress. Segundo o mesmo autor (Vaz-Serra, 2000, p. 291), o perfil
do indivíduo vulnerável ao stress é consistente pela pouca capacidade
autoafirmativa, fraca tolerância à frustração, dificuldade em confrontar e
resolver os problemas, preocupação excessiva pelos acontecimentos do dia-a-dia
e marcada emocionalidade. Considerando que o stress depende da perceção
individual perante a circunstância em que se encontra, importa determinar qual
o nível de vulnerabilidade ao stress que influencia a procura de ajuda, o apoio
social, a adesão a grupos de autoajuda ou, ao próprio tratamento, e em
consequência, a eficácia do mesmo.
Metodologia
Para dar resposta à questão de investigação elaboramos um estudo quantitativo,
de tipo descritivo, transversal e correlacional. Participantes - Neste estudo
participaram 444 pessoas com o diagnóstico de dependência alcoólica. A amostra
de conveniência, foi recolhida em serviços e/ou consulta de alcoologia em
diferentes sub-regiões do País (Norte, Centro e Lisboa e Vale do Tejo) e grupos
de autoajuda. Consideramos como critérios de inclusão: idade igual ou superior
a 18 anos; diagnóstico clínico de dependência alcoólica há pelo menos um ano;
saber ler e escrever e que não apresentassem alterações neurológicas ou
cognitivas impeditivas do preenchimento do questionário. Instrumentos -
Questionário de caracterização sociodemográfica e clínica e a Escala de
Vulnerabilidade ao Stress (23QVS) desenvolvida por Vaz Serra (2000). Trata-se
de uma escala tipo likert, com cinco possibilidades de escolha (de 0 a 4).
Quanto mais alto for o valor da nota global, maior é a vulnerabilidade ao
stress. Uma classificação de 43 representa o ponto de corte acima do qual uma
pessoa se encontra vulnerável ao stress. No estudo de validação para a
população portuguesa foi obtido um Alfa de Cronbach da escala global de 0,82
(Vaz-Serra, 2000) e no nosso estudo de 0,78. Procedimentos - Requeremos
autorização em Unidades de Alcoologia e em grupos de autoajuda (Alcoólicos
Anónimos), assim como ao autor do 23QVS (Vaz-Serra, 2000). Respeitámos as
normas éticas constantes da declaração de Helsínquia. A cada participante uma
vez esclarecidos os objetivos do estudo, processo de colheita de dados e
confidencialidade, foi pedida a colaboração voluntária e o consentimento
informado. Procedimento Estatístico - A análise dos questionários foi realizado
através da utilização do SPSS (Statistical Program for Social Sciences ' versão
20.0). Utilizou-se a análise exploratória e descritiva dos dados. Para a
comparação de dois grupos independentes, recorreu-se ao teste de Mann-Whitney
ou ao teste de Kruskal-Wallis, sempre que pelo menos um grupo não apresentava
distribuição normal (Marôco, 2011). No teste de Kruskal-Wallis, sempre que
foram detetadas diferenças estatisticamente significativas, recorreu-se ao
teste de comparações múltiplas. Para o estudo da forma e intensidade da relação
entre duas variáveis (ambas métricas), recorreu-se ao coeficiente de correlação
de Pearson. Os resultados são considerados significativos para um nível de
significância de p˂0,05.
Resultados
A amostra é maioritariamente constituída por pessoas do sexo masculino (81,5%;
n=362), casadas ou que vivem em união de facto (42,3%; n=188), com uma média de
idade de 45,35 anos (DP=9,29). Existe um número significativo de solteiros com
27,9% (n=124), e de divorciados com 25,9% (n=115). 41,9% (n=186) dos
participantes estavam desempregados, 39,4% (n=175) são trabalhadores, 13,3%
(n=59) reformados, e 0,7% (n=3) são estudantes. Relativamente aos anos de
escolaridade, os participantes têm em média 7,60 anos (DP= 3,67; ampl. 0-19). A
média da idade em que começaram a beber ronda os 18 anos (DP=8,11; ampl. 4-55).
O período de diagnóstico da SDA, em média, são os 7,73 anos (DP=7,17; ampl. 1-
38). O número de internamentos apresenta uma média de 2,01 (DP= 2,46; ampl. 0-
21). Constatámos que a maioria dos inquiridos (57,9%, n=257) já teve recaídas,
com uma média de 1,69 (DP=0,46; ampl. 1-2). A maioria dos inquiridos estava em
abstinência, 88,3% (n=392), com uma média de abstinência de cerca de três anos
(DP= 5,96; ampl. 0-43). Analisando o quadro_1, verificamos que as pessoas com
SDA são em geral vulneráveis ao stress, pois atingem uma média de 50,26
(DP=11,42). Também verificámos que existe uma tendência mais elevada de
vulnerabilidade ao stress para qualquer uma das subescalas, à exceção da
Inibição e dependência funcional, Carência de Apoio Social e ainda a de
Deprivação de Afeto e Rejeição.
Da aplicação do teste de Mann-Whitney para comparar a vulnerabilidade ao stress
entre os sexos, não se detetaram diferenças estatisticamente significativas
(p>0,05).
Na comparação entre as subescalas e a escala global do 23QVS com a situação
conjugal dos participantes, detetámos a existência de diferenças
estatisticamente significativas, conforme é possível verificar noquadro_2. Da
análise dos resultados destacamos a escala global do 23QVS, que mostra
diferenças estatisticamente significativas, entre os casados/união de facto, os
solteiros e os divorciados/separados, sendo as duas últimas categorias as que
apresentam valores mais elevados (=15,22, p=0,002), pelo que concluímos que os
casados/união de facto são menos vulneráveis ao stress.
Da análise doquadro_3, observamos diferenças estatisticamente significativas
entre as cinco categorias da situação profissional.
Dando evidência à vulnerabilidade ao stress global (=14,19, p=0,007),
verificamos que os trabalhadores apresentam valores mais baixos, ou seja, as
pessoas com SDA desempregadas são mais vulneráveis ao stress do que os
trabalhadores.
Estudou-se ainda a correlação entre o 23QVS global, e respetivas subescalas,
com a idade, os anos de escolaridade, o tempo de dependência alcoólica, o
número de internamentos e de recaídas (Quadro_4).
As pessoas com SDA numa idade mais avançada são menos vulneráveis à Inibição e
Dependência Funcional, Carência de Apoio SocialeDeprivação de Afeto e Rejeição.
As que têm menos escolaridade são mais vulneráveis ao stress em geral, e em
relação ao Perfeccionismo e Intolerância à Frustração, Inibição e Dependência
Funcional, Condições de Vida Adversas, Subjugação e com a Deprivação de Afeto e
Rejeição. Verificámos ainda que, quanto maior for o tempo de dependência
alcoólica e o número de recaídas, maior é a vulnerabilidade comparativamente às
Condições de Vida Adversas. Por sua vez as pessoas com mais internamentos são
mais vulneráveis ao stress em geral e também à Inibição e Dependência
Funcionale àsCondições de Vida Adversas.
Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas várias
subescalas e na escala global da vulnerabilidade ao stress entre quem frequenta
e quem não frequenta grupos de autoajuda (p>0,05).
Discussão
A amostra do presente estudo mostrou de uma forma geral ser vulnerável ao
stress, à exceção das suas componentes de Inibição e Dependência Funcional,
Carência de Apoio Sociale daDeprivação de Afeto e Rejeição, ou seja, embora
tenham pouca capacidade de adaptação face às adversidades, sentem conseguir
resolver os problemas, poder contar com os amigos e que são agradáveis para os
outros. Relativamente, à situação conjugal os participantes casados apresentam
menos vulnerabilidade ao stress, comparativamente com os divorciados e os
solteiros. Na Carência de Apoio Social, verificámos que os viúvos são os
inquiridos que apresentam valores mais baixos, sentindo-se assim mais
solitários e isolados. O alcoolismo, a separação e o isolamento relacional,
estão entre os fatores de risco referenciados nos estudos sobre vulnerabilidade
ao stress (Anaut, 2005), ou seja, o casamento acaba por ser um fator protetor e
promotor de resiliência. Tal como no estudo de Ferreira (2013) verificaram-se
diferenças ao avaliar a vulnerabilidade ao stress mediante a categoria
profissional. Neste contexto, os desempregados apresentam maior vulnerabilidade
ao stress global e menor capacidade em lidar com as adversidades da vida,
relativamente aos trabalhadores e aos reformados. A situação profissional, no
caso concreto dos que trabalham, contribuiu para diminuir o risco de reação
negativa perante um determinado acontecimento de vida, sentindo-se assim mais
apoiados socialmente. Estes resultados corroboram com o descrito por Vaz Serra
(2002) que refere ser o "apoio social" um fator de resistência ao stress. Os
elementos mais jovens da amostra mostraram-se mais vulneráveis à Inibição e
Dependência Funcional, sentindo menos apoio social e menos afeto. Os jovens em
consequência da sua vulnerabilidade, e de fatores como o álcool ser uma
substância lícita, crenças, e à necessidade de aceitação por parte dos amigos,
acabam por ser o grupo mais atingido pelo consumo excessivo de bebidas
alcoólicas (Cabral, Farate, e Duarte, 2007; Claudino, Cordeiro e Arriaga,
2007).
Vaz Serra (2000) concluiu que o nível de stress não é influenciado pelo grau de
instrução. Porém, o presente estudo indicou que a escolaridade, influencia a
vulnerabilidade ao stress, sendo os indivíduos com menos instrução os mais
vulneráveis. Apesar de não termos encontrado estudos que analisem a
vulnerabilidade ao stress das pessoas com SDA, o que dificulta a discussão dos
resultados por nós obtidos, é importante analisar o estudo de Ferreira (2013)
sobre a vulnerabilidade ao stress na transição para a reforma, no qual
verificou, tal como nós, que as pessoas com maior grau de escolaridade
demonstram menos tendência para a dramatização e para a subjugação, e de forma
geral menos vulnerabilidade ao stress. Estes resultados podem indicar que um
índice de escolaridade mais baixo reduz as oportunidades de usufruírem de
fatores protetores como, por exemplo, o progresso e êxito académico, ou os
relacionamentos positivos com colegas. Por outro lado, um maior nível de
escolaridade pode corresponder a maior informação e conhecimentos no âmbito da
saúde, bem como a possibilidade de desenvolver estilos de vida mais saudáveis,
com um impacto favorável, tanto no estado de saúde, como na vulnerabilidade ao
stress. Os resultados indicaram ainda que, quanto maior é o tempo de
diagnóstico de dependência alcoólica, maior é a vulnerabilidade sentida. As
pessoas sentem-se cansadas, desiludidas, devido à cronicidade da doença e
sentem que não dispõem de dinheiro suficiente para as suas necessidades
pessoais (Ferreira-Borges e Filho, 2004; Kiritzé-Topor & Bénard, 2007).
Quanto maior o número de internamentos (das pessoas com SDA), maior é a
vulnerabilidade em relação às Condições de Vida Adversae ao stress de uma forma
geral. Relativamente à recaída, constata-se que o aparecimento de episódios
agudos da doença está diretamente associado a eventos causadores de stress, que
por vezes podem ser confundidos com consequências, sendo que as pessoas com SDA
que vivenciaram experiências de vida negativas como a perda de um familiar ou o
desemprego têm maior possibilidade de recaída (Ferreira-Borges e Filho, 2004;
Kiritzé-Topor & Bénard, 2007). Um dos resultados inesperados do presente
estudo foi o facto de não serem encontradas diferenças, no que se refere à
vulnerabilidade ao stress, relativamente à frequência, ou não, de grupos de
autoajuda. Uma das explicações possíveis para estes resultados é o fato da
amostra ser pequena ao que se associa uma frequência recente dos participantes
nos grupos.
Conclusões
Vaz Serra (2007) afirma que uma pessoa vulnerável é aquela que tem a perceção
de estar submetida a perigos, de carácter interno ou externo sobre os quais não
tem controlo suficiente que lhe permitam sentir-se segura. Portanto, pode-se
afirmar que a pessoa quando vulnerável sustenta a expectativa de não conseguir
superar as dificuldades. Sem dúvida, esta vulnerabilidade traduz uma dimensão
pouco positiva perante os desafios a enfrentar no quotidiano, nomeadamente a
dependência alcoólica e a necessidade de internamentos sucessivos. As
implicações do estudo podem repercutir-se a três níveis: prática, formação e
investigação. O papel do enfermeiro para detetar precocemente as pessoas em
risco é fundamental, podendo delimitar estratégias de intervenção para
maximizar a relação de ajuda. Segundo Anaut (2005) e em função dos resultados
obtidos sugerimos como estratégias de intervenção: Melhorar as aptidões
pessoais; Desenvolver a autoestima, a confiança e o sentimento de esperança;
Fomentar a autonomia e a independência; Incentivar a utilização dos recursos
pessoais e sociais; Corrigir a perceção errada dos acontecimentos; Ajudar a
modificar comportamentos inadequados; Sociabilização; Ajudar a implementar
hábitos para aumentar a resistência ao stress e estimular atitudes positivas
que permitam enfrentar, resolver problemas e prever consequências. No âmbito da
formação, devemos proporcionar momentos de discussão em equipa no sentido de
adotar estratégias positivas promotoras de bem-estar. Por fim, é importante
acentuar a necessidade de, em futuras investigações, sejam analisadas outras
variáveis, designadamente as estratégias de coping e as competências e
habilidades comunicacionais das pessoas com SDA e seus familiares. Consideramos
que os resultados obtidos constituem um contributo importante para a
compreensão dos fatores que influenciam a vulnerabilidade ao stress. Como
aspeto positivo salientamos a inovação do presente estudo, que avalia, pela
primeira vez, a vulnerabilidade ao stress das pessoas com SDA. A falta de
estudos com características idênticas acaba por dificultar este trabalho, uma
vez que impede a comparação dos resultados.