Formação e desenvolvimento de competências de estudantes de enfermagem em
contexto de ensino clínico em saúde mental e psiquiatria
Introdução
A formação e desenvolvimento humano constituem um processo constante de
apropriação e transformação de saberes, onde os contextos envolventes assumem
um papel preponderante.
Considerando a natureza do exercício profissional dos enfermeiros e respetivas
trajetórias de formação, percebe-se que estas segundas envolvam uma forte
componente prática, principalmente no que à formação inicial diz respeito. A
formação em contexto da prática, constitui um elemento fundamental no
desenvolvimento das aprendizagens e competências dos estudantes de enfermagem,
sendo que, também aqui, a ecologia envolvente se constitui como elemento
fundamental no processo de aprendizagem, até porque, como referem Alarcão e Rua
(2005), as trajetórias de formação em enfermagem ganham sentido, se
perspetivadas numa lógica de cruzamentos disciplinares de saberes
interpessoais, interprofissionais e interinstitucionais, pois constituem
momentos de aproximação à vida profissional.
A formação em contexto clínico tem sido foco de intenso debate e
consistentemente reconhecida na literatura como uma fase crucial no percurso
formativo dos estudantes, por um lado, pelas aprendizagens que proporciona,
facilitadoras da aquisição e consolidação de conhecimento e promotoras da
socialização à profissão e da formação da identidade profissional, por outro
lado, pela complexidade de que se reveste, quer pela natureza complexa dos
contextos e das práticas, quer pelos atores envolvidos no processo (Charleston
& Hapell, 2005; Abreu, 2007; Silva, Pires & Vilela, 2011).
Das nossas experiências profissionais, percecionamos que esta complexidade se
acentua quando o ensino clínico se desenrola em contexto de saúde mental e
psiquiatria [SMP], pois admitimos, tal como Markstrom e colaboradores (2009),
que os estudantes, nomeadamente numa fase mais inicial, partilham de conceções
estigmatizantes que poderão influenciar as suas aprendizagens, o
desenvolvimento de competências e, futuramente, a prestação de cuidados
enquanto enfermeiros. À luz de Hapell e Gaskin (2013) acrescentamos ainda que
estas conceções são suscetíveis de influenciar as opções profissionais, pois
como revela a revisão sistemática realizada por estes autores, no âmbito da
investigação sobre as atitudes dos estudantes em contexto de formação em
enfermagem em saúde mental, tem mostrado consistentemente que esta é uma das
áreas menos preferenciais da enfermagem para uma potencial carreira
profissional. No entanto, como sugerem os estudos de Hapell e colaboradores
(2008; 2011), o aumento da componente de experiência clínica em SMP, é
suscetível de produzir atitudes mais positivas em relação às pessoas com doença
mental.
Moir e Abraham (1996) e Charleston e Hapell (2005) apontam para diferenças
essenciais entre os contextos de saúde em geral e os de saúde mental em
particular. Estes autores apontam ainda que o ambiente geral de saúde é
normalmente mais estruturado, com tarefas específicas orientadas,
principalmente, para a pessoa com necessidades de cuidados físicos, nos quais
os estudantes têm mais facilidade de se concentrar em tarefas definidas e na
aquisição de competências clínicas específicas, sendo que a natureza das suas
intervenções envolve todos os domínios, no entanto, salientamos a forte
componente de execução de procedimentos, com reflexo na aquisição de
competências no âmbito das habilidades instrumentais.
Por sua vez, a área da saúde mental sugere contextos frequentemente
contrastantes com os ambientes mais familiares, mais conhecidos, dos hospitais
gerais, onde o papel do enfermeiro de psiquiatria é, geralmente, muito menos
incidente sobre intervenções do domínio instrumental e muito mais sobre o
desenvolvimento de uma relação terapêutica, interpessoal, com os clientes, o
que exige do estudante o desenvolvimento de competências neste domínio, o que,
regra geral, estes consideram difíceis de se desenvolver, pois apelam a um
desenvolvimento pessoal, ético e moral, que se desenrolam a par do crescimento
humano, e não com a prática reiterada de qualquer procedimento específico
(Charleston & Hapell, 2005).
Os mesmos autores referem ainda que o ambiente em SMP é muito menos
estruturado, com uma maior dependência da abordagem multidisciplinar, onde a
própria natureza do papel da enfermagem pode ser perturbador para os
estudantes, exigindo que estes sejam obrigados a ajustar-se ao fato de que
muitos clientes são admitidos numa base involuntária e, portanto, são mais
propensos a serem hostis aos cuidados.
Daqui resulta que o processo de formação em contexto da SMP exige um conjunto
de dispositivos que permitam ao estudante o desenvolvimento da criatividade, da
comunicação terapêutica, da sua sensibilidade para o cuidar, de escuta, de
empatia, e da capacidade de relacionamento interpessoal com o cliente, equipa
pluridisciplinar, família e comunidade e, fundamentalmente, o desenvolvimento
de capacidades crítico-reflexivas e de pensamento crítico, que lhes permitam a
integração dos saberes. Para que se atinja este desiderato, o ensino clínico em
SMP requer ser integral, interdisciplinar, pautado em referenciais que permitam
a assimilação de competências que assegurem uma ação holística e solidária, que
contemple a integralidade do ser humano, promovendo todo o seu sentido de
humanidade.
A formação de estudantes, logo profissionais reflexivos, orientadas para estes
preceitos, requer uma supervisão sistemática e de qualidade, fundamental no
processo de construção do seu conhecimento pessoal e profissional, no
desenvolvimento das capacidades crítico-reflexivas, éticas, morais e humanas, e
na consolidação da identidade profissional, essenciais no processo de aquisição
das competências conducentes à prática de cuidados de excelência.
Neste sentido, tal como Schön (1983), entendemos que a formação reflexiva deve
contemplar situações onde o estudante possa praticar sob a supervisão de um
profissional competente que, simultaneamente orientador, conselheiro (coach) e
companheiro, lhe faz a integração e ajuda a compreender a realidade, que pelo
seu carácter desconhecido, se lhe apresenta, inicialmente, sob a forma de caos
(mess), tendo em linha de conta a ecologia das situações.
Os benefícios da supervisão no âmbito da SMP revestem-se duma importância
crucial, na medida em que fornecem aos estudantes os instrumentos necessários
que os ajudam a lidar com as sentimentos e emoções que tendem a refletir
atitudes negativas em relação às pessoas com doença mental. Neste sentido, é
fundamental que esta supervisão seja feita por profissionais com preparação
adequada, sendo primordial o afastamento das práticas tradicionais, onde o
processo de acompanhamento dos estudantes não passe por uma questão de boa
vontade, mas sendo encarada com o profissionalismo e formação que se lhe
exige, pois como é referido na literatura, a qualidade do supervisor é
determinante para a qualidade da supervisão e das experiências de aprendizagem
dos estudantes (Charleston & Hapell, 2005; Myall, Levett-Jones &
Lathlean, 2008; Ordem dos Enfermeiros, 2010; Silva et al., 2011). Por sua vez,
de acordo com Sá-Chaves (2000, p. 103) também nós entendemos que quem forma e
ensina profissionais para a saúde deve refletir construtivamente a complexidade
dos saberes científicos, em função dos aprendentes e das situações que, nos
contextos reais da praxis profissional se lhe apresentam e deve fazê-lo de
forma não standard.
Sendo fundamental o papel da supervisão no sucesso das aprendizagens dos
estudantes, outros fatores e condições devem ser tidos em conta no
desenvolvimento do ensino clínico, devendo ser consideradas, por um lado, o
objetivo da formação, o contexto de aprendizagem, por outro lado, as
competências profissionais do supervisor/tutor, que garantam à pessoa cuidados
de enfermagem de qualidade e que favoreçam as aprendizagens dos estudantes;
neste sentido, é fundamental a articulação contínua entre a escola e os
contextos da prática (Silva et al., 2011; Ordem dos Enfermeiros, 2012).
O estudo tem como objetivo conhecer as perspetivas dos estudantes sobre o
ensino clínico em contexto de saúde mental e psiquiatria e as competências
desenvolvidas no decurso do mesmo.
Metodologia
Considerando a natureza e objetivos do estudo, este é de cariz exploratório, de
natureza quantitativa.
A população em estudo compreendeu os estudantes do 4º ano do Curso de
Licenciatura em Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem do Porto [ESEP], em
ensino clínico de SMP, sendo a amostra não probabilística intencional, composta
por 48 estudantes (92,3% da população em estudo).
O instrumento de recolha de dados consistiu numquestionário de autorrealização
constituído por:dados sociodemográficos e a escalaAdaptive Competency Profile '
ACP, de Kolb (1984), validada em Portugal por Abreu, em 1995. A escala é
constituída por 20 itens utilizando uma escala de concordância de estrutura do
tipo Likert (7 opções), que varia desde baixo nível (1) a alto nível
(7),referentes ao desenvolvimento de competências adaptativas de ação (5
itens), relação (5 itens), experimentação (5 itens) e conceptualização (5
itens), dando indicação do estilo de aprendizagem preponderante dos estudantes
num determinado contexto. A pontuação obtida em cada subescala pode variar
entre 5 e 35, considerando-se quanto maior o scoreobtido, maior é o
desenvolvimento da competência no contexto estudado, caraterizando o estilo de
aprendizagem preponderante destes estudantes.
No que releva para os procedimentos envolvidos na realização do estudo, resta
salientar que foi pedida autorização ao presidente do conselho técnico
científico da ESEP para realização do estudo. Foi explicado aos estudantes o
objetivo do estudo, os procedimentos e pedida a sua colaboração no
preenchimento do questionário.A participação foi anónima e voluntária. O
questionário foi aplicado a todos os estudantes a frequentarem o ensino clínico
de SMP. A recolha dos dados foi efetuada no período de 13 de fevereiro a 30 de
abril 2013. O procedimento para a análise dos dados obtidos através dos
questionários envolveu a estatística descritiva simples, com a respetiva
análise de frequências absolutas e medidas de tendência central.
Resultados
Participaram no estudo 48 estudantes (92,3%) de uma população de 52,
maioritariamente do sexo feminino (87,5%, n=42), com idades compreendidas entre
os 20 e os 39 anos (M=22,9 DP= 3,9). Dos participantes, 12,5% frequentaram
outro curso, previamente ao curso de enfermagem. A questão vocacional ainda
emerge como a principal motivação para a escolha do curso de enfermagem
(42,6%), seguindo-se o interesse na área da saúde (34,44%) e a experiência de
ter contatado com enfermagem enquanto recetores de cuidados (22,96%).
Estes estudantes destacam como mais-valia da realização dos ensinos clínicos a
perceção do mundo real: o confronto com a realidade (38,2%); a experiência
adquirida (25,5%); a preparação para o futuro (21,5%); o desenvolvimento e
aperfeiçoamento dos saberes, entre os quais, conciliar teoria e prática (6,4%),
treino de competências (4,2%), identificar lacunas (2,1%) e maior investimento
no estudo (2,1%).
Quando se avaliam os ensinos clínicos, o que é referido pelos estudantes como o
mais impactante nas suas vivências é, precisamente, a sua primeira experiência
de contato com a realidade, ou seja, o primeiro ensino clínico. Os
participantes deste estudo, maioritariamente, iniciaram a sua formação, em
contexto da prática, em âmbito hospitalar (60,5%), sendo a cirurgia o contexto
de aprendizagem por onde se iniciaram o maior número de participantes (29,1%),
seguindo-se os ensinos clínicos de saúde familiar (22,8%), medicina (18,8%),
enfermagem comunitária (16,7%) e parentalidade e gravidez (12,6%).
Sendo o primeiro ensino clínico referido como o mais impactante, os estudantes
destacam como aspetos positivos a satisfação obtida com a realização das
atividades de natureza clínica (33,2%), onde a componente relacional adquire
primazia (21%); seguindo-se os fatores associados ao processo ensino-
aprendizagem (28,4%), com destaque para a orientação (14,3%); nos fatores
associados ao local de estágio (18,8%) a integração é tida como um fator a
destacar (12,2%). Nos ganhos pessoais (17,6%) a autonomia (4,4%) é um dos
fatores mais salientados (Quadro_1).
Os aspetos negativos que os estudantes destacam no primeiro ensino clínico são
os associados ao processo ensino-aprendizagem (61,6%), onde o regime tutorial é
o mais apontado (24%) salientando os estudantes, neste item, as dificuldades no
planeamento dos cuidados. Para além do regime tutorial são apontados aspetos
inerentes ao planeamento/acompanhamento clínico por parte dos docentes (19,8%),
evidenciando-se neste item a referência ao pouco acompanhamento por parte dos
mesmos (10,2%). Um aspeto transversal ao processo de ensino-aprendizagem que
também é destacado refere-se ao processo de avaliação (9,8%). Outro fator
relevante para estes estudantes são as dificuldades associadas aos serviços
onde os ensinos clínicos se realizam (24%), com as condicionantes do espaço
físico (9,6%) a ser o item mais destacado. As competências pessoais também são
percecionadas como fatores negativos (14,4%), destacando-se as dificuldades de
interação com os colegas, a falta de iniciativa e o medo de magoar os doentes
(4,8%) (Quadro_2).
Ao analisarmos as competências desenvolvidas nos primeiros ensinos clínicos,
podemos observar que são as competências de experimentação as que mais se
desenvolvem nesta fase de aprendizagem dos participantes (26,55), seguindo-se
as de relação (26,25), as de ação (24,9) e as de conceptualização (24,48). Kolb
(1984) nos seus estudos conclui que profissões como a engenharia e a medicina
desenvolvem estilos convergentes que resultam da ênfase dada às competências de
experimentação, fundamentalmente ligadas à maior apetência para a
conceptualização abstrata e para a experimentação ativa. Demarca-se por uma
maior capacidade de resolução de problemas, tomada de decisão e aplicação
prática de ideias. No que concerne ao ensino clínico de SMP, a competência que
os estudantes desenvolvem mais, nesta fase da sua aprendizagem, é a competência
de relação, com valor médio de (29,26), seguindo-se as competências
deexperimentação (28,57)e, com um pouco menos de visibilidade, as de ação
(26,47) e conceptualização (26,05) (
Quadro_3). Constata-se que os participantes, no decurso do ensino clínico em
contexto de SMP, desenvolvem estilos de aprendizagem divergente, que resultam
da ênfase dada às competências de relação e que são caraterísticas das
profissões humanistas.
Discussão dos Resultados
O primeiro ensino clínico é considerado marcante para estes estudantes,
verificando-se que a satisfação alcançada na realização das suas atividades em
contexto da prática constitui o principal aspeto positivo que estes identificam
no decurso do mesmo; por sua vez, os fatores associados ao ensino-aprendizagem
emergem como o segundo aspeto mais positivo, neste período formativo. No
entanto, quando nos reportamos aos aspetos que os estudantes percecionam como
negativos, verifica-se que emergem do principal aspeto negativo, fatores
relacionados com aquele que acima foi identificado como o segundo aspeto mais
positivo, alguns destes inerentes ao planeamento e acompanhamento clínico por
parte dos docentes. Neste sentido, entendemos de suma importância continuarmos
a desenvolver estudos que nos façam compreender melhor este aspeto de forma a
alterar áreas que são percecionadas como menos positivas neste processo.
Relativamente às competências, verificamos que estes estudantes desenvolvem
mais a competência de experimentação nos primeiros ensinos clínicos, o que pode
estar relacionado com a necessidade de colocarem em prática processos
assistenciais de natureza técnicamais complexos, movendo-se assim entre a
reflexão e a prática, exigindo por parte destes, pensamento crítico.
No ensino clínico de SMP verifica-se maior desenvolvimento na competência de
natureza relacional, o que pode justificar-se pelo facto desta área da saúde
ser, por excelência, do domínio da relação, ou seja, existe uma valorização da
vertente afetiva e relacional do cuidar. A competência menos desenvolvida é a
de conceptualização, traduzindo menor investimento na reflexão sobre as
práticas, resultado que nos deve indicar maior necessidade de trabalhar estas
áreas.
Conclusões
O ensino clínico emerge como um período de transição no desenvolvimento de
competências tidas como essenciais à profissão. Entre as principais razões que
motivam a escolha do curso de enfermagem, os estudantes que integraram este
estudo referem as questões vocacionais, o interesse pela área da saúde e a
experiência de ter contatado com enfermagem enquanto recetores de cuidados,
razões congruentes com as apontadas por Canário (2005).
Os contextos da prática constituem‑se como locais privilegiados de contacto com
a realidade profissional, permitindo aos estudantes prepararem-se para o futuro
através das experiências que vão adquirindo, desenvolvendo e aperfeiçoando
saberes, bem como tomando consciência das zonas de não saber que ainda vão
estando presentes no seu percurso pré-profissional.
O ensino clínico que mais impacto tem no desenvolvimento das vivências destes
estudantes é o primeiro, independentemente de ser realizado em contexto
hospitalar ou comunitário, destacando-se como fator positivo a satisfação
obtida com a realização das atividades relacionais com o utente e, como fator
negativo, os aspetos associados ao processo ensino-aprendizagem (regime
tutorial, acompanhamento pelos docentes e avaliação), alertando-nos para
eventuais décalages num processo que se pretende crítico e reflexivo.
Desta forma, entendemos ser crucial o papel do professor que supervisiona o
estágio, já que este desenvolve as suas atividades no âmbito da formação e,
concomitantemente, no campo da prática pré-profissional dos futuros
enfermeiros, gerindo e articulando, diferenças, eventuais conflitos e saberes,
aproximando as realidades da escola ao campo clínico. Por sua vez, é também o
impulsionador de uma prática reflexiva e o suporte do estudante num continuumde
experiências emocionalmente intensas. Este é, sem dúvida, um papel complexo,
que exige deste capacidade de adaptação e decisão, frente aos desafios e
incertezas com que se confronta nos processos supervisivos.
Por todas estas razões, entendemos que a qualidadeda formação em enfermagem é
influenciada por múltiplos fatores, sendo fundamental uma boa articulação com
os atores da prática onde se realizam os ensinos clínicos, de forma a minimizar
o impacto de fatores menos positivos e a desenvolver nos estudantes habilidades
e partilha de competências integradoras de cuidados técnico-científicos
avançados, aumentando a satisfação de todos os envolvidos neste processo.
Não obstante a relevância do estudo, entendemos que este encerra uma limitação
que nos remete para a impossibilidade de generalização dos resultados a outras
situações, devendo-se essencialmente ao número limitado de participantes.
Consideramos também, que a entrevista deveria ter sido associada ao
questionário, potencializando a recolha de dados e uma melhor compreensão dos
fatores referenciados como negativos. Deixamos como sugestão a replicação do
estudo com as limitações retificadas.