O sofrimento do regresso ao trabalho após a licença parental
Introdução
A transição para a parentalidade marca um período de reorganização do ciclo de
vida das famílias, que representa intenso stress na vida dos indivíduos e
acarreta inúmeras aprendizagens. Pode constituir-se como um dos mais exigentes
e desafiadores papéis sociais que os indivíduos encontram nas suas vidas
(Janisse, Barnett, & Nies, 2009), dado que invoca um conjunto de respostas
(comportamentais, cognitivas e emocionais) que vulgarmente não integram o seu
repertório cognitivo, exigindo, por isso, a implementação de esforços
adaptativos suscetíveis de produzir descompensação e aquisição de
vulnerabilidades.
Apesar de ser tradicionalmente associada a sentimentos positivos de alegria e
satisfação, através da qual se atinge a realização pessoal e se completa a
pessoa enquanto ser humano (Relvas, 2004), e ser encarada, por muitos, como uma
oportunidade de desenvolvimento, esta vivência transicional é também
considerada como um momento de crise, devido às muitas alterações ocorridas e à
possibilidade de, no decurso deste processo, estar alterada a capacidade de
autodeterminação dos pais, de gestão das suas necessidades e de construção de
respostas adaptativas, representando um risco para a sua saúde e bem-estar,
assim como para o saudável desenvolvimento físico e emocional da criança
(Brazelton, 2007; Gage, Everett, & Bullock, 2006).
Com a forte presença feminina no mercado de trabalho, a transição para a
parentalidade é também o momento de se aprender a equilibrar trabalho e
família. Se tornar-se pai ou mãe é um período stressante e desafiador das suas
vidas (Cooper, McLanahan, Meadows, & Brooks-Gunn, 2009; Feldman, Sussman,
& Ziegler, 2004; Janisse, Barnett, & Nies, 2009), para as mulheres, ter
de regressar ao trabalho alguns meses após o nascimento da criança poderá não o
ser menos.
A participação feminina no mercado de trabalho e as dificuldades em
compatibilizar trabalho e família têm sido apontadas como alguns dos principais
fatores responsáveis pelo decréscimo da natalidade em Portugal (Cunha, 2005).
Porque as mulheres continuam a ser as principais cuidadoras (Martins, Abreu, e
Figueiredo, 2014; Pinquart & Teubert, 2010), são geralmente as mulheres que
mais desinvestem profissionalmente para gerir os múltiplos papéis e é também
consensual em Portugal que, em caso de incompatibilidade ou dificuldades na
conciliação, a abdicação da carreira seja feminina (Aboim, 2010).
O corpo de conhecimento que descreve a experiência vivida pelas mães no
regresso ao trabalho após a licença parental é, no entanto, escasso (Nichols
& Roux, 2004; Spiteri & Xuereb, 2012). Este estudo pretende explorar
sentimentos e experiências de mães que regressam ao trabalho durante os
primeiros seis meses de vida da criança e surge em complementaridade a um outro
artigo que desocultou as estratégias utlizadas na conciliação do papel parental
com o de trabalhador (Martins, 2012). Constitui um recorte transversal de uma
investigação ampla, realizada em profundidade, com o propósito de compreender
como se desenvolve a transição para o exercício da parentalidade durante o
primeiro ano de vida da criança.
Metodologia
Sendo o regresso ao trabalho, que ocorre durante a transição para a
parentalidade, um fenómeno relacional, subjetivo e complexo, optámos pelo
paradigma qualitativo de investigação e pela metodologia Grounded Theory, por
ser uma abordagem apropriada em situações de natureza psicossocial, que carecem
de teorização e desenvolvimento de conhecimento acerca do seu processo e
estrutura, sem desprezarmos a sua potencialidade para desocultar emaranhados
detalhes dos fenómenos, como sejam sentimentos, processos de pensamento e
emoções, difíceis de extrair ou compreender através dos métodos de investigação
mais convencionais (Corbin & Strauss, 2008).
A recolha de dados decorreu no domicílio dos participantes, entre setembro de
2009 e março de 2010, antes e após o reinício da atividade laboral materna,
tendo sido realizada através de entrevistas semiestruturadas, orientadas por um
guião de questões abertas, que permitiu fazer as adaptações necessárias na
exploração dos conceitos emergentes. Realizámos um total de 30 entrevistas,
cumprindo uma sequência de entrevistas em separado ao pai e à mãe sobre a
experiência vivida, seguida de uma breve entrevista em conjunto. Todas as
entrevistas foram gravadas e subsequentemente transcritas, após obtenção do
consentimento informado, livre e esclarecido dos participantes e assegurando a
confidencialidade dos dados e o anonimato, recorrendo à utilização de nomes
fictícios.
Participaram no estudo 5 homens e 5 mulheres (casais), profissionalmente
ativos, com idades compreendidas entre os 26 e 33 anos e com filho nascido de
termo e saudável (4 do sexo masculino e 1 do sexo feminino). O número de
participantes não foi pré-determinado, mas o resultado da saturação teórica
definida pela análise de dados. O acesso aos participantes foi facilitado pela
prévia participação no curso de preparação para a parentalidade que estes se
encontravam a frequentar num centro de saúde da região norte de Portugal, a
quem solicitámos autorização.
O tratamento e a análise dos dados cumpriram as etapas de codificação do corpus
' codificação aberta, axial e seletiva ' até à formulação de proposições
teóricas, resultantes da análise das relações entre categorias, tendo sido
realizados com recurso ao programa NVivo 8.0. Durante a codificação aberta, os
dados foram decompostos em segmentos discretos, com o desígnio de os
conceptualizar e categorizar. A codificação axial implicou o questionamento do
fenómeno em estudo, o porquê do fenómeno ter ocorrido (causas), o contexto em
que o fenómeno ocorreu, o que foi feito pelos participantes quando esse
fenómeno ocorreu (estratégias), o que facilitou ou dificultou as ações sobre
esse fenómeno e quais as consequências dessa interação (Corbin & Strauss,
2008), permitindo selecionar as categorias mais significativas, tendo como foco
o paradigma de codificação, que possibilitou identificar as características
(propriedades e dimensões) do fenómeno em estudo. A codificação seletiva, como
processo de integração e refinamento da teoria, foi a base para a obtenção da
categoria central ser pai, ser mãe: um processo em construção na interação,
onde todas as categorias se relacionaram e emergiu a teoria concernente aos
dados obtidos, formando um todo com capacidade explicativa.
A recolha, codificação e análise dos dados decorreram de modo simultâneo e
recursivo, num processo evolutivo constante.
Resultados
Apresentamos, como resultados, a categoria sofrendo com o regresso ao trabalho,
que reflete a experiência da mãe ao se ver sujeita a afastar-se do filho para
retomar a atividade laboral, finda a licença parental. De entre outras que
compõem o fenómeno em estudo, a opção por apresentar esta categoria justifica-
se por explicitar a difícil e desafiadora coexistência de papéis desempenhados
pela mulher trabalhadora quando se torna mãe, constituindo-se numa das
consequências presentes na transição para a parentalidade identificada no
Paradigm Model (Corbin & Strauss, 2008) do estudo mais alargado. Integra as
subcategorias: i) angustiando-se com o regresso ao trabalho que se avizinha,
ii) percebendo a esposa perturbada com o regresso ao trabalho, iii) tendo
necessidade de confortar a esposa em sofrimento, iv) vivendo conflitos no papel
parental, v) deparando-se com dificuldades para continuar amamentando, e vi)
sofrendo menos por ter condições laborais facilitadas.
Com a aproximação do fim da licença parental, muitas mães começam a sentir-se
profundamente amarguradas e culpadas por terem de deixar o seu bebé, como se o
estivessem a abandonar, angustiando-se com o regresso ao trabalho que se
avizinha. São invadidas por preocupações e medos, receando influências no
aleitamento materno e perda do estatuto de mãe (receio de ser dispensável se
não perpetuar a amamentação, receio de que o bebé passe a gostar mais da ama do
que de si ou de que se esqueça de si como mãe), que as entristece.
Testemunham que o "difícil está para vir, está... em saber que vou quatro ou
cinco horas, venho e depois tenho que ir outra vez quatro ou cinco horas, aí
é... é mais difícil" (Clara), prevendo dificuldades de separação do bebé por
estarem tanto tempo sem ele, por o deixarem e por sentirem saudades, sentirem a
sua falta quando fisicamente separados. Até aos 4/5 meses, as situações de
separação foram ocasionais e breves, "deixo-o vinte minutos, uma hora, não vai
ser o... o tempo todo como vou trabalhar, é isso..., é aí" (Sofia), e as mães
nunca deixaram de se sentir muito próximas do filho, de modo que se veem sem
saber se o bebé sentirá a sua falta ou se estará bem, ainda que depositem
confiança nos cuidadores substitutos: "eu sei que o pai que é capaz de tomar
conta, mas... mas o menino também é capaz de sentir a minha falta, não é?!,
está... está habituado a estar comigo" (Sofia); "vou sentir essa... essa falta
de estar com ele, e de saber se ele está bem." (Sílvia).
No discurso das mães é percetível o quanto o regresso ao trabalho e o medo do
que pode acontecer nessa nova condição de mãe trabalhadora são questões
conflituosas que geram vários questionamentos e dúvidas. Para além de estarem
conscientes que vão ter menos tempo para estar com o bebé, anteveem menos tempo
para fazer tudo e que não deve ser fácil conciliar os dois papéis: "eu vou ter
menos tempo, não é?!, porque tenho a lida da casa e... são... poucas horas,
(...) enquanto que dantes tinha uma manhã e a tarde, não é?!, era diferente,
(...) vai começar a ser mais... mais cansativo, prontos, porque agora... tinha
tempo para fazer tudo" (Sofia).
Por ser trabalhadora em atividade intelectual e científica, Clara interroga-se,
ainda, sobre a eventual prorrogação do horário de trabalho para dar resposta
aos compromissos laborais, que colide com o desempenho do papel maternal ao
limitar a disponibilidade de tempo para estar com o filho, "porque no fundo é
assim, uma pessoa quando trabalha eu tinha a perceção que às vezes eram sete e
meia, oito horas, uma pessoa quando vinha era como o meu marido hoje, quer
dizer, se tem que acabar alguma coisa não vem embora sem a ter acabado, e
depois é um bocadinho assim, ahm... depende também das profissões que tem,
alguns chegam lá vêm embora, o fim é à seis, às seis vem embora, eu não é
assim, feliz ou infelizmente" (Clara).
"Já começo a pensar, já falta pouquinho!" evidencia como esta progenitora vai
ficando perturbada com o aproximar da hora do regresso ao trabalho. O relato
seguinte é, ainda, mais expressivo desta consciencialização da separação do
filho, que apenas se torna real e credível nos dias que antecedem o evento,
deixando a mãe sem dormir na véspera: "não dormi nadinha, prontos, ou era por
pensar que ia deixar o meu filho, que ia trabalhar" (Sofia).
Sílvia, pese embora pense no regresso ao trabalho porque está para acontecer,
receia, em acréscimo, não ser capaz de superar a readaptação profissional
devido ao grande afluxo de trabalho previsto, chegando a equacionar recorrer a
soluções farmacológicas por temer não aguentar a pressão. Testemunha ter
pesadelos a respeito: "vão querer que eu faça tudo de uma vez e... e eu não vou
conseguir, e a pensar nele e a pensar no trabalho, vai ser... eu já sei que vai
ser muito difícil para mim..., (...) que até tenho medo de voltar a... a ter
uma depressão. (...) tenho pesadelos em que me esqueço dele e que me esqueço de
alguma coisa. (...) ele acorda comigo a chorar, mas eu estou a sonhar, que...
que vou trabalhar e que me esqueço de o levar para a avó, que... que me
esqueço, que suponhamos que eu não tinha leite e que esquecia-me de comprar o
leite, coisas assim." (Sílvia).
As mães acabam conformando-se com a inevitabilidade do regresso ao trabalho
porque tem de ser ou porque a alternativa de trabalhar em casa, sem que tenham
de separar-se do filho, não garante segurança futura:
"Preocupa-me, mas tem que ser, não é?! (...), já estou mentalizada que tem que
ser, não é?!, que não... não posso estar toda a vida com o meu filho em casa
(...), tenho que ir trabalhar." (Sofia).
"há mulheres que preferem... que estão ansiosas por ir trabalhar, eu já não,
antes preferia ficar em casa, eu já comentei com o meu marido que se eu
arranjasse uma máquina se o patrão dele me arranjava trabalho, que eu
trabalhava aqui em casa, mas isso é... é muito perigoso e que... e que nem
sempre pode dar certo, não é?!, enquanto que enquanto estou lá no emprego estou
garantida." (Sílvia).
Toda esta inquietude materna é sentida pelos respetivos cônjuges, prevendo que
o regresso ao trabalho vai ser difícil. Apercebem-se de esposas stressadas,
preocupadas e tristes por irem trabalhar e acreditam que vão chorar por terem
de deixar o filho:
"ela está é mais agora mais um bocado stressada por ir trabalhar e por deixar o
filho (...) não sei se é bem stressada, está um bocado assim meia... (...) um
bocado preocupada, não é?!, sei lá... (...), prontos, um bocado triste, não
é?!" (Vasco).
"vai ser chegar no domingo e chorar... a noite toda, saber que na segunda-feira
vai ter de o deixar e ter de ir trabalhar" (Anselmo).
As previsões acabam mesmo sendo confirmadas, percebendo a esposa perturbada com
o regresso ao trabalho. As primeiras semanas de reinício laboral deixam a
mulher/mãe abalada, especialmente triste e chorosa, insegura e preocupada por
deixar o filho, sentimentos de perda, culpa e insegurança que são constantes no
testemunho de Anselmo: "ela chorava, ia-se embora a chorar, e... e sentia que
ela que estava... ficava em baixo por causa disso, (...), sentia-a... insegura,
ansiosa, stressada, preocupada, sentia-a tudo, sentia-a... assim, a ela,
primeiro insegura porque não... não sabia como é que ia correr o... a
separação, entre aspas, preocupada porque não sabia se o menino ia ficar bem,
como é que ele estava, como é que não estava, stressada porque... o leite...
podia-lhe desaparecer e ela não tinha como dar leite ao menino, ahm... tinha...
medo de, prontos, ficar sem leite de repente e...".
Também Vasco dá conta de uma esposa mais impertinente e stressada neste
período, num estado de agitação difícil de definir e de elencar a uma só causa:
"Com tudo, com o trabalho, com o menino, com tudo" (Vasco). Com o passar dos
dias, ambos os pais assistem a uma mulher/mãe a reagir cada vez melhor, "pelo
menos ela já não... já não se vai embora a chorar." (Anselmo), porque "o que
custa sempre é... os... os..., pelo menos penso eu, as primeiras semanas,
depois de se habituar..." (Vasco), discursos proferidos com convicção diminuta.
Esta não é uma situação à qual os maridos/pais podem ficar indiferentes, tendo
necessidade de confortar a esposa em sofrimento com palavras de encorajamento e
desdramatização, que colocam a tónica na inevitabilidade do regresso ao
trabalho e na determinação em superar o desafio. "Não há nada a fazer", "não
podia durar para sempre", "tem de ir trabalhar porque não somos ricos", são
razões evocadas por Vasco que tenta, desta forma, apelar a alguma racionalidade
na esposa, sem deixar de acalentar possíveis estratégias de superação e
assegurar que não precisa de estar preocupada com o bebé porque"está em boas
mãos" (Vasco).
Percebendo que o sofrimento está intrinsecamente ligado à dificuldade em
conciliar a vida do trabalho com a vida familiar, Lucas, por seu lado, procura
"baixar o ritmo" da esposa, "tentar chamá-la à atenção para abrandar um bocado,
não é?!, não se preocupar tanto com as coisas de casa ou começar a..., esses
pormenores que não tem... para mim não tem importância nenhuma, não é?!, eu,
basicamente, eu digo-lhe isso, mas também... meter isso às mulheres às vezes
é... é complicado".
Para as mães, a separação física do filho é percebida com grande impacto, como
uma vivência perpassada por conflitos relacionados ao papel maternal. Durante
todo o período de licença parental entregaram-se quase que exclusivamente ao
cuidado do bebé, o que permitiu ter um pleno controlo de tudo o que ocorria,
presenciar o seu desenvolvimento e cimentar um relacionamento fraterno com ele,
mas agora veem-se perante a premência de o confiar aos cuidados de outrem e de
trasladar o papel de cuidadora, até então apanágio seu, como mãe, para a pessoa
que dele se vai responsabilizar. Vivendo conflitos no papel parental retrata a
experiência da mãe-trabalhadora quando passa a não operar a totalidade de
práticas de cuidar e prover as necessidades do filho.
Enquanto cumprem as tarefas profissionais, veem-se não conseguindo desligar-se
do filho, sem deixar de o ter presente no pensamento, "está-se sempre a
lembrar, não... uma pessoa pode estar distraída no trabalho, mas... aquilo está
ali sempre na cabeça." (Sofia). Estão preocupadas com o seu bem-estar e
procuram manter-se informadas sobre as suas rotinas e necessidades, não com o
propósito de avaliar a forma como é cuidado, mas para se sentirem a velar por
ele. Tentam, na medida do possível, telefonar para saber do filho, contendo-se
na frequência com que o fazem para não demonstrar desconfiança no cuidador
substituto: "estou a trabalhar e lembro-me "ai, será que ela está a dormir,
será que ela está acordada?" e telefono à minha irmã (...), mesmo sabendo que
ela está com as pessoas e que está super bem e que... e que as pessoas ahm...
fazem quase as coisas como se fosse eu ou preocupam-se tanto como eu, é
inevitável, (...), e às vezes estive com ela há meia hora atrás ou há uma hora
atrás, mas... mas tenho que ligar a perguntar!" (Daniela).
Sofia não esquece o quanto falou do filho no seu primeiro dia de trabalho e de
como essa oportunidade foi deveras importante. Sílvia destaca a transição do 4º
para o 6º mês de maternidade como o período mais difícil de superar,
especialmente nos momentos em que se encontrava mais sozinha no emprego:
"estava sempre a falar do menino "ai, será que ele está a dormir? Será que ele
está acordado?" (...) fui trabalhar mesmo ao lado da minha mãe, eu assim "olha,
prontos, adivinharam!", senão tinha, não tinha, não me sentia tão à-vontade
para estar..." (Sofia).
"Acho que foi o mais difícil desde que ele nasceu! Custou-me muito ir trabalhar
e deixá-lo ficar porque... além de sentir a falta dele, não sabia se ele sentia
a minha e, então..., não sabia se ele estava bem, apesar de saber que com quem
ele estava, estava bem, mas ao mesmo tempo... "será que está ou não está?!"
e... (...) custava muito passar... o dia, porque só pensava nele, se estivesse
alguém a falar para mim e... e se estivesse mais distraída a fazer com... com o
que estava a fazer, passava melhor, quando estava mais sozinha é que... custava
mais, porque só pensava nele" (Sílvia).
Sentindo-se divididas entre serem mães e trabalhadoras evidencia a perceção
materna ao assumirem as atividades profissionais e se confrontarem com uma
quebra no vínculo que estabeleceram com o filho. A rutura que precisam fazer
com o papel materno, que as caracterizou ao longo dos últimos meses e que as
tornou como que indissociáveis do bebé, é difícil de ser encetada, tende a ser
refutada e é concretizada com mágoa, sofrendo por estarem longe do filho.
Sentem muito a sua falta, sentem saudades e nunca mais veem a hora de regressar
a casa para estarem de novo juntos, "e o dia não era assim muito, só trabalhava
três horas de manhã e três de tarde, mas parecia uma eternidade!" (Sílvia);
"Quando cheguei a casa eu... ao fim de lhe dar a mama, abracei-o, abracei-o,
abracei-o, ai que saudades que eu tinha deles, ui! (...) É capaz de me começar
a passar, mas fogo... que saudades de uma pessoa estar com ele todos os dias
ali e todas as horas..." (Sofia).
Embora estivesse de sobreaviso para o sofrimento da separação, esta mãe
testemunha que não imaginava que custasse tanto e que custa muito deixar um
filho, sobretudo se aos cuidados de alguém menos próximo: "Elas "ai,
quando...!", quando eu estava com alguém que já tinha filhos, "quando tu fores
trabalhar vai-te custar tanto, tu vais ver!", eu era assim "ó, não, não", eu
dizia, eu cá para mim eu assim "oh, não deve custar tanto como elas diz!", ai
mas custa, custa, fogo! Custou-me muito deixá-lo na ama!" (Sofia).
O sofrimento materno está bem patente no testemunho de Sílvia, ao fazer a
analogia da despedida que antecede uma longa viagem. A intensidade
experienciada é menor com o decorrer dos dias, custando cada vez menos deixar o
filho, mas volta a ser reacendida quando, por doença ou férias, é reassumido o
papel de principal cuidadora: "O primeiro dia?! Ai, chorei tanto! Pensei que o
meu filho ia viajar! Pus o pai, pus a sogra, pus tudo a chorar! Não, chorei
muito, custou-me muito ir. (...) agora... agora vai melhor um bocado...,
quando..., agora depois, quando ele ficou doente, também já me voltou a custar
outra vez mais um bocadinho, mas..." (Sílvia).
Todas as mães sentem desagrado por não poderem estar tanto tempo com o bebé.
Não obstante, estão conscientes que a conjuntura político-laboral atual não
permite desinvestimento profissional, sob pena de desencadear desemprego:
"Gostava de ter mais tempo para ele, mas a vida... a vida às vezes não permite,
não é?!, e hoje em dia cada vez pior, com os empregos como está..." (Clara). A
mãe trabalhadora em atividades intelectuais e científicas vive o drama de se
ver sem conseguir estar tanto tempo com o bebé e sem conseguir dedicar o tempo
que gostaria ao trabalho; a que é operária na indústria, confirma as mesmas
dificuldades de convivência materna e vê-se sem conseguir ter uma atitude
diferente perante o trabalho, uma atitude de maior distanciamento, a que
acresce o desespero pela atividade laboral comprometer a prestação de cuidados,
pelo grau de esforço físico exigido:
"fico assim um bocado stressada porque quero... quero estar no trabalho e quero
fazer mais coisas, não é?!, e, por vezes, às vezes é complicado, e às vezes
preciso de ficar um bocadinho até mais tarde, mas sei que também não posso
porque... a Mariana, não é?!, (...) o tempo parece que nunca dá para nada e..."
(Daniela).
"puseram-me nesse trabalho e eu ui, eu desesperava-me! Eu... eu... começava...
de noite, queria-lhe mudar a fralda e não conseguia, adormecia-me as mãos, ia
para de manhã para levá-lo para a ama a conduzir... e eu depois falei com elas
lá no trabalho, (...) é assim, não estou tão mole, mas... não..., (...), mas
stresso na mesma, ai se... quando está a chegar a hora de ir embora e o
trabalho está lá à beira e não vai para a frente, uma pessoa enerva-se na
mesma." (Sofia).
Para Sílvia, o retorno laboral é, ainda, permeado pelo conflito de ter de
partilhar a alimentação do bebé com outras pessoas e pelo ciúme de não usufruir
da sua atenção em exclusivo: "Fico mais triste porque... ele para a mama era só
a mãe, agora sem ser mama pode ser qualquer pessoa! (...) Não é sentir-me menos
mãe, é... aquilo era tão... era assim um momento só nosso, e agora já... já
não, agora já qualquer pessoa lhe pode dar o leite, já não sou só eu (...), eu
sou muito ciumenta! (...) eu queria a atenção do menino para mim, mas ela
estava ali "ti, ti, ti", a falar para ele, eu nem... eu quase que nem conseguia
falar com ele, e... como estava a começar... essa fase de eu ir trabalhar,
ainda me sentia mais triste porque "quer dizer, nem ao meio-dia eu posso estar
um bocadinho com ele?!".
Além do afastamento do filho que o reingresso profissional implica, as mães
veem-se condicionadas a alterar a forma como se relacionam com o bebé e como
suprem as suas necessidades. Para as que amamentam e desejam continuar a fazê-
lo, exige que extraiam e deixem leite para ser administrado pelo cuidador
substituto durante a sua ausência, o que confirmam não ser fácil, deparando-se
com dificuldades para continuar amamentando. Estarem a trabalhar impede as mães
lactantes de amamentarem e esvaziarem as mamas sempre que pretendem ou sentem a
mama repleta de leite, causando desconforto mamário. Acabam percebendo as mamas
ingurgitadas e doridas, assim como, por vezes, a drenagem espontânea de leite
quando a mamada tarda em acontecer, sentindo o leite vazar. O incómodo é
agravado se o último esvaziamento mamário não tiver sido realizado de forma
eficaz, dado que nem sempre o bebé está predisposto a mamar na hora de saírem
para o trabalho, apesar da insistência e desejo materno: "se me calhava de
encostar a algum lado eu "ai, meu Deus!" já não conseguia..., (...), ao fazer
seis horas, sete, ai! Que eu estou sete horas, porque eu dou o peito em antes
de sair, mas ainda tenho... ainda dá... tem que dar o tempo para chegar ao
trabalho, não é?!, depois o tempo para vir, quando eu chego aqui a casa venho
mesmo... à rasca! (...), ele acordou duas horas em antes de eu ter que ir para
o trabalho e... e depois até nem me queria a... nem me queria a mama nem nada
de manhã, pouco mamou, (...), prontos, estava assim à rasca e depois até se
soltou o leite, não sei, pronto" (Sofia).
Em pouco tempo constatam que as suas mamas já não enchem como enchiam e veem-se
sem conseguir extrair a mesma quantidade de leite, percebendo uma redução na
quantidade de leite produzida. A satisfação das necessidades nutricionais do
bebé pode mesmo chegar a estar comprometida, quando a lactente trabalhadora se
vê detentora de leite em quantidade insuficiente, apreciação que realiza pelo
volume de leite produzido e extraído para acondicionamento, assim como pela
conduta de choro e agitação do filho durante a mamada, percebendo que rejeita a
mama sem leite e não fica satisfeito:
"passando duas semanas de começar a trabalhar, depois eu comecei a ficar muito
nervosa e não tinha leite, e então eu comecei a entrar em... em paranoia porque
não conseguia... não conseguia tirar leite e não..., (...) a minha alegria era
dar-lhe só peito até aos seis e como já não estava a conseguir ter... ter...
ter, ainda ficava mais nervosa ainda, então, ainda menos tinha, (...) e depois
já... havia alturas que ele estava a mamar e parecia que estava a mamar em
seco, parecia que eu não... tinha leite para lhe dar, que ele chorava mais,
não... não ficava satisfeito, (...), parecia que queria mais, e parece que...
que dava... empurrava com a mão o peito, como quem diz "já não tem leite", e...
e eu comecei a ficar mais... fiquei toda preocupada" (Sílvia).
A angústia desta mãe é grande e é agravada porque se vai sentindo pressionada
pela sogra para extrair mais leite, "depois a minha sogra dizia-me "olha que o
menino mamava mais! Olha que o menino mamava mais!", eu ficava mais nervosa, eu
assim "eu tenho que tirar mais, tenho que conseguir tirar mais do que o que
tiro!" e não conseguia!" (Sílvia). Estas circunstâncias e a confirmação de um
aumento ponderal insuficiente leva-a a reconhecer a necessidade de complementar
a alimentação do filho com leite artificial, tendo de o introduzir quando não
consegue extrair leite e a situação se torna insustentável.
Percebendo o bebé preferindo o biberão à mama é outra das dificuldades com que
esta trabalhadora se debate para perpetuar a amamentação: "eu acho que ele
agora já prefere o biberão do que mama, mas pronto, ele de noite gosta bem da
mama, quando está a dormir, não sabe que é o biberão (risos), não, tem fases
que parece... parece que não quer a mama, mas... ainda mama." (Sílvia).
Sofrendo menos por ter condições laborais facilitadasé uma subcategoria que
evidencia como o abalo do regresso ao trabalho parece ser minimizado por
algumas circunstâncias que já antes, durante o período de licença parental,
tinham sido previstas e planeadas pelas mães, permitindo-lhes continuar a
estarem com o filho, "o facto de ter... de não ter horários para entrar nem
para sair também me facilitou estar mais com ele" (Clara), e a vê-lo quando
sentem vontade ou têm necessidade de o fazer, "se eu quiser vê-la a qualquer
momento eu... vou... meia dúzia de passos e estou ao pé dela e vejo-a,
percebe?!" (Daniela), razões que concorrem para mais facilmente se verem
acomodadas à condição de mãe-trabalhadora.
Discussão
A categoria sofrendo com o regresso ao trabalho, revelada neste estudo, retrata
o sofrimento vivido pela mãe por não poder estar constantemente com o filho,
evidenciado pelos conflitos que projeta e experiencia no papel parental. Finda
a licença parental, as ações relativas ao seu papel de mãe não poderão
permanecer no plano do idealizado, precisam ser reformuladas sob o risco de
viver sentimentos ambíguos ou negativos em relação ao seu desempenho como mãe.
O retorno à atividade profissional, para algumas mulheres, inaugurou a primeira
experiência de separação do filho, a qual provocou, além de culpa (Nichols
& Roux, 2004), uma sensação de perda e preocupação com o bem-estar do bebé.
Os primeiros dias de trabalho foram particularmente difíceis de serem
superados, sendo acompanhados de uma carga emocional muito forte. As intensas
reações emocionais manifestadas podem ser interpretadas como indicadores de
como as mães estavam dedicadas e próximas ao bebé (Stern, 1997; Winnicott,
2013) e envolveram, como defendido por Hock, McBrid e Gnezda (1989),três
dimensões: sentimentos de aflição ao separarem-se do filho, perceções sobre a
aflição do bebé como resultado da separação e conceções sobre a capacidade do
outro para cuidar do seu filho.
A culpa foi ainda maior e mais difícil de ser superada nas mães que se
depararam com dificuldades para continuar amamentando, o que patenteia uma
significação simbólica de vinculação com o filho pela amamentação, tarefa única
e singular que nenhum outro cuidador pode substituir. Amamentar era, assim, um
modo de perceber-se vital para o filho e, ao mesmo tempo, de diferenciar-se e
dar singularidade ao seu papel de mãe.
O turbilhão de emoções que as mães experienciam no regresso ao trabalho foi
também descrito por Spiteri e Xuereb (2012), num espectro de sentimentos que
inclui preocupação, tristeza, pânico, medo, mau humor, incerteza, culpa e falta
de controlo sobre a situação, emoções complexas que têm dificuldade em
articular. Ter de deixar a criança para trás foi considerado como o aspeto mais
negativo da experiência, gerador de um profundo sentimento de perda, como se as
tornassem menos dignas como mães.
No presente estudo, vivendo conflitos no papel parental desocultou como as mães
sentem que gostariam de dar primazia ao bebé e de lhe dedicar mais tempo e
atenção, mas também não subestimam o trabalho. Percebemos que a escolha entre
trabalhar ou cuidar dos filhos não é simples de ser realizada. As mulheres
tentam lidar com este conflito, conciliando, na medida do possível, os dois
mundos, facto que nos remete à questão da realização da mulher a partir da
vivência de múltiplas facetas e fatores de subjetividade, que não apenas a
maternidade.
Apesar de inevitavelmente condicionadas e mesmo limitadas pelas obrigações
maternais, as mulheres parecem ter atribuído ao trabalho um significado mais
amplo do que poderia supor-se. Na perspetiva de Monteiro (2005), o trabalho
entrou decididamente no léxico identitário feminino, não como componente
secundário e complementar, mas como componente estruturante da constituição do
self das mulheres. A sua relevância ultrapassa a instrumentalidade monetária,
sendo visto como um agente de emancipação, autonomização e inserção social, bem
como de realização identitária. Esta é uma visão que converge, em parte, com a
perspetiva apresentada no presente estudo, ao percebermos, nas trabalhadoras em
atividades intelectuais e científicas, o valor implícito da realização
profissional e o conflito latente inscrito no desejo de terem mais tempo para
dedicarem ao investimento na carreira. Nas operárias da indústria, ainda que o
desejo de terem mais tempo para o filho seja comum, o trabalho é percecionado
como uma fonte de recursos e sustento para a família, do qual não podem abrir
mão. Se as suas famílias fossem financeiramente mais abastadas teriam optado
por ficar em casa com o bebé, aspiração igualmente partilhada por muitas outras
mães trabalhadoras (Nichols & Roux, 2004; Spiteri & Xuereb, 2012).
A articulação entre estes dois polos identitários fez também emergir a tensão
característica dessa conciliação (Lipovetsky, 2007; Martins, 2012). Quando as
mães conseguem manter-se próximas do filho durante o período de trabalho, com
possibilidades de o amamentar, e usufruir de flexibilidade e redução do horário
laboral, os sentimentos de frustração e culpa são menores, assim como é menos
dramático o acumular de obrigações, amenizando o seu sofrimento.
Conclusões
A licença parental constitui-se fundamental no apoio às mães enquanto se
adaptam à sua nova condição de vida como mães. Mas ao retornarem ao trabalho,
muitas passam por uma nova e desafiadora transição. Enquanto ainda estão a
explorar as suas novas funções e adaptação à parentalidade, e procuram dar
continuidade aos seus papéis de esposa, deparam-se com um novo papel, o de mãe
trabalhadora.
O emprego materno no pós-parto constitui-se um desafio para a resiliência das
mulheres e suas famílias. Pese embora todas as mulheres necessitem de suporte
na transição para a parentalidade, as mães trabalhadoras requerem apoio e
recursos singulares e específicos, nomeadamente apoio social e organizacional
para manter o equilíbrio pessoal e familiar.
A preparação para o regresso ao trabalho necessita de ser mais explorada como
objeto de pesquisa, tendo em vista a estabilidade emocional e uma construção
consistente da relação parental. São necessários mais estudos nesta área, tendo
em vista a identificação de recursos e intervenções que ajudem as mulheres a
ultrapassar dificuldades emocionais associadas ao emprego no pós-parto.
Implicações para a Prática Clínica
Os enfermeiros, no exercício do papel clínico e de educador, são fundamentais
para facilitar e promover a saúde das mães trabalhadoras. Uma vez que o
trabalho familiar representa, ainda nos dias de hoje, um domínio tradicional de
género para as mulheres (Martins, 2012; Martins, Abreu, e Figueiredo, 2014;
Katz-Wise, Priess, & Hyde, 2010), a avaliação da dinâmica familiar e do
stress associado com o emprego e as respostas de enfrentamento exigidas são,
neste contexto, indispensáveis. Permitem identificar níveis de stress e
disfunção familiar, e subsequente encaminhamento para serviços especializados
que ajudem as mães trabalhadoras a incrementar estratégias de coping e de
redução de stress.
O foco da intervenção de enfermagem deve centrar-se nesta avaliação, assim como
no ensino e orientação antecipatória sobre as realidades do retorno ao trabalho
no pós-parto. Ouvir as preocupações e os medos das mães que planeiam e
regressam ao trabalho ajuda-as a melhor lidarem com os seus novos modos de
vida.