Avaliação do padrão de uso do álcool entre moradores de uma região socialmente
vulnerável
Introdução
As substâncias psicoativas possuem, atualmente, caráter de mercadoria, visto
que estão inseridas em uma sociedade capitalista e configuram-se como mais um
produto para consumo. Esse problema é complexo e exige enfoque multidisciplinar
de saúde pública, pois o consumo destas substâncias ultrapassa os aspectos
legais, jurídicos e sociais (Ministério da Justiça, 2013).
O consumo de álcool apresenta grande influência nos índices de morbimortalidade
mundial, pois quando consumido em um padrão nocivo pode ocasionar comorbidades
clínicas como: cirrose hepática, intoxicações, câncer hepático, entre outras
doenças. Além disso, pode influenciar em acidentes, quedas e homicídios (Meloni
e Laranjeira, 2004).
A maior porcentagem de pessoas que consomem álcool no Brasil concentra-se nas
classes "A" e "B", entretanto, segundo Laranjeira, Pinsky, Zaleski,e Caetano,
(2007) a classe "E" consome um maior número de doses a cada vez que se bebe. O
beber excessivamente todos os dias ou a ocorrência de repetidos episódios de
intoxicação pelo álcool são padrões de uso que causam prejuízos físicos,
mentais e sociais para o indivíduo (Minto, Corradi-Webste, Gorayeb, Laprega, e
Furtado, 2007).
O álcool, entre as drogas de abuso, é a substância psicoativa mais largamente
consumida no mundo. O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II LENAD)
feito no Brasil e publicado em 2013 aponta que a taxa de dependência e/ou abuso
de álcool na população é de 6,8%, sendo 10,5% homens e 3,6% mulheres
(Laranjeira, Madruga, Ribeiro, Pinsky, Caetano,e Mitsuhiro, 2013).
O perfil de consumo apresentado pelo II LENAD, anteriormente citado, é a
realidade de uma comunidade socialmente vulnerável, do município de Belo
Horizonte, Minas Gerais. Tendo em vista essa problemática, os profissionais da
equipe de Atenção Básica responsáveis pelo atendimento de saúde dessa
população, buscaram uma parceria com professores da Escola de Enfermagem da
Universidade Federal de Minas Gerais para a realização de medidas de
intervenção naquela realidade. Desta parceria, surgiu um projeto de pesquisa e
de extensão denominado "Alcoolismo em região de risco e vulnerabilidade social:
diagnóstico e intervenção".
Neste artigo, tem-se por objetivo apresentar o padrão de consumo de álcool e as
intervenções realizadas em uma comunidade socialmente vulnerável do município
de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Metodologia
Para a análise quantitativa dos dados utilizou-se um estudo transversal cuja
amostra foi composta por 47 participantes maiores de 18 anos. Diante do cenário
pesquisado, adotou-se a pesquisa ação como uma estratégia metodológica, pois
permite conhecer a realidade e ao mesmo tempo fazer intervenções sobre ela.
Segundo Tripp (2005), a pesquisa ação inicia-se com o reconhecimento do
contexto onde o estudo é realizado, identificando as situações passíveis de
intervenção, a fim de planejar uma mudança adequada.
Utilizou-se o Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT) como
instrumento para identificar o padrão de consumo de álcool e realizar as
intervenções de acordo com os resultados obtidos. Valeu-se, também de um
questionário sóciodemográfico para conhecer as seguintes variáveis: nome,
idade, sexo, nível de escolaridade, número de crianças, adolescentes e adultos,
por domicílio. Por meio desse questionário, identificou-se os adultos
consumidores de álcool que convivem com crianças e adolescentes.
O AUDIT é constituído por 10 questões de múltipla escolha que avaliam o uso
individual de álcool nos últimos 12 meses, problemas relacionados ao álcool e
sintomas de dependência. As alternativas de respostas são pontuadas em ordem
crescente de zero a quatro. Ao fim do teste, os pontos obtidos em cada questão
são somados obtendo-se a pontuação final. Os escores finais determinam a
classificação de cada participante em uma das quatro zonas, resumidas no Quadro
1 (Ministério da Justiça, 2014).
O AUDIT foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde como um método
simples de investigação de uso excessivo de álcool e de ajuda na realização de
intervenções (Jomar, Paixão e Abreu, 2012), publicado pela primeira vez em
1989. É considerado eficiente para a detecção do uso nocivo de álcool, devido a
sua alta sensibilidade e especificidade (Magnabosco, Formigoni e Ronzani,
2007). Trata-se de um instrumento de fácil aplicação que permite resultado
imediato e intervenções direcionadas a partir da zona de classificação
identificada.
Foram realizadas reuniões prévias com a equipe de saúde da Atenção Básica que
assiste aos moradores da região estudada, com o objetivo de planejar a entrada
dos pesquisadores no cenário da pesquisa. O primeiro contato dos pesquisadores
com a comunidade aconteceu em um evento no qual se comemorou o dia Mundial da
Saúde. Durante esse evento, desenvolveram-se atividades educativas de promoção
da saúde e iniciou-se a coleta de dados. Posteriormente deu-se continuidade à
coleta dos dados em visitas domiciliares, reuniões realizadas em grupos de
educação em saúde e salas de espera para atendimento médico.
Por se tratar de uma pesquisa envolvendo seres humanos, cumpriu-se as
exigências formais da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Os resultados do questionário sociodemográfico e do AUDIT, permitiram gerar
dados percentuais quantitativos sobre o padrão de consumo de álcool entre os
sujeitos da pesquisa. Esses dados foram dispostos em tabelas de modo a
possibilitar uma análise da relação entre as características sociodemográficas,
o padrão de consumo de álcool e o número de crianças e adolescentes que
conviviam com adultos consumidores de álcool.
A Tabela_1 apresenta os principais dados sociodemográficos da amostra. Os
resultados da análise de dados mostraram equilíbrio em relação ao sexo: sendo
48,9%mulheres e 51,1%homens distribuídos em todas as faixas etárias. A maioria
dos participantes,83,0%, afirmou ter como escolaridade o 1º grau incompleto.
Dos sujeitos da pesquisa, 65,9%convivem com crianças e adolescentes.
Observa-se que a maior parte da amostra total, 61,7%, classificada na zona I,
fazia uso de baixo risco ou era abstêmia. Entretanto, 21,3% classificada na
zona II e III apresentaram padrão de consumo considerado de risco ou nocivo,
respectivamente, e 17,0% classificada na zona IV em níveis sugestivos de
dependência.
Como demonstrado na Tabela_2, os homens foram classificados nos padrões de uso
de risco ou uso nocivo, ou seja, localizaram-se nas zonas II e III, em
frequência significativamente maior do que as mulheres. O mesmo foi observado
em relação a zona IV que sugere possível diagnóstico de dependência de álcool.
Em todas as faixas etárias houve maior concentração de pessoas com uso de baixo
risco de álcool ou abstêmias. A faixa etária entre 31-50 anos apresentou 29,4%
dos participantes com uso nocivo de álcool ou propensão a dependência. Em
relação a escolaridade, destaca-se que todos os classificados na zona IV
afirmaram ter como escolaridade o 1˚ grau incompleto.
Dos adultos que convivem com crianças e adolescentes, 25,9% situaram-se nas
zonas III e IV. A convivência de crianças e adolescentes com usuários de
álcool, tanto nas famílias quanto na comunidade, requer intervenção. Diante
dessa realidade criou-se a ação de extensão Oficina de Arte, Saúde e Paz.
Direcionada a pré-escolares de uma creche da comunidade, a ação abordou
aspectos relacionados à educação em saúde com foco na prevenção ao uso de
álcool e outras drogas, promoção de saúde e cultura de paz.
Foram realizadas oficinas lúdico-pedagógicas de contação de histórias e o uso
de desenhos, fantoches, músicas, brincadeiras e rodas de conversas. Os temas
trabalhados foram escolhidos levando em consideração os resultados evidenciados
pela pesquisa, a vulnerabilidade das crianças para o consumo de substâncias
psicoativas, bem como as demandas apresentadas pelas educadoras da creche.
O trabalho preventivo desenvolvido na comunidade tornou-se relevante pois,
possibilitou a troca de saberes entre os envolvidos nas atividades, além de ter
incentivado a realização de estratégias de prevenção ao uso de drogas,
especialmente do álcool.
Discussão
A partir dos resultados apresentados, verificou-se que a maioria dos
entrevistados foi classificada na zona I, ou seja, faziam uso de baixo risco ou
eram abstêmios. As intervenções em saúde para estes indivíduos visaram orientá-
los quanto à importância de manter-se como consumidores de baixo risco, tendo
em vista os malefícios do uso de álcool em grande escala. Além disso, é
indispensável que esses indivíduos sejam incentivados a divulgar as vantagens
do consumo de baixo risco, valendo-se desses como agentes precursores de boas
práticas de saúde, tanto na família como na comunidade (Ministério da Justiça,
2014).
Observou-se também na zona I o maior número de mulheres, o que indica que estas
fazem uso de baixo risco. Esse achado também é evidenciado por dados
apresentados por Laranjeira et al. (2007), que aponta o uso de álcool pelas
mulheres como de menor frequência e quantidade.
As orientações fornecidas aos indivíduos na zona II objetivaram a redução do
uso de álcool e o esclarecimento sobre os riscos à saúde, potencializados por
esse padrão de consumo. Para Jomar et al. (2012) são muitos os fatores
contribuintes para o desenvolvimento de problemas relacionados ao álcool. Entre
esses, a falta de conhecimento sobre os limites do uso do álcool e sobre os
riscos associados ao seu uso excessivo, as influências sociais e ambientais,
assim como hábitos e atitudes que favorecem o beber excessivo.
Com os classificados na zona III utilizou-se a técnica de Intervenção Breve,
que consiste em, de maneira empática e por meio de uma escuta reflexiva,
avaliar o consumo de álcool e os problemas relacionados a ele e encorajar o
indivíduo a eleger fatores pessoais que o auxiliem na redução do consumo de
álcool ou abstinência.
Deve-se realizar também, com esses usuários, o monitoramento, que oportuniza
momentos de trocas entre participantes e equipe de saúde, a fim de verificar as
metas que já foram alcançadas e aquelas que ainda precisam ser aperfeiçoadas
(Ministério da Justiça, 2014). Durante a pesquisa, esse monitoramento foi
realizado em encontros de terapia comunitária que ocorriam na comunidade,
direcionados pelos profissionais da Atenção Básica. Esses profissionais
ofereceram apoio para o enfrentamento dos problemas relacionados ao uso do
álcool.
Dos classificados como padrão de uso nocivo e chance de diagnóstico de
dependência de álcool, o sexo masculino está em maior número quando comparado
ao sexo feminino. Esses resultados corroboram com Levantamento realizado por
Laranjeira et al. (2007), o qual demonstrou que de cada quatro pessoas do sexo
masculino que fazem uso de álcool na vida, no Brasil, uma se tornará
dependente. Para o sexo feminino, essa proporção é dez para uma.
Na zona IV foram incluídos aqueles que possuem aumento na possibilidade do
diagnóstico de dependência. Segundo Jomar et al. (2012), o AUDIT não
diagnostica dependência. Sendo assim, as pessoas classificadas nas zonas IV
precisaram de uma avaliação adicional sobre a dependência alcoólica. Desse
modo, foi necessário encaminhar os usuários classificados na zona IV a serviços
de saúde. Os serviços indicados abrangem desde a consulta clínica com o médico
da equipe de saúde da Atenção Básica até serviços especializados para
alcoolistas existentes na área de abrangência da comunidade.
Considerando o convívio de adultos consumidores de álcool com crianças e
adolescentes, Schenker e Minayo (2005), apontam que o consumo de bebidas
alcoólicas pelos pais ou responsáveis faz com que o público infanto-juvenil
crie uma ideia de permissão e naturalidade.
Considera-se que uma fragilidade dos resultados deste estudo, dada a
impossibilidade dos pesquisadores, foi o não acompanhamento dos participantes
classificados na zona IV, depois de encaminhados para a equipe da Atenção
Básica ou serviços especializados para alcoolistas. Sugere-se que outros
estudos dessa natureza incluam esse acompanhamento.
Conclusão
A realização desta pesquisa evidenciou o desconhecimento dos participantes em
relação ao próprio padrão de consumo de álcool e consequências que o abuso de
álcool pode acarretar na vida pessoal e social do indivíduo. Notou-se também
que entre os participantes da pesquisa, havia pouco conhecimento das
informações quanto às possibilidades de prevenção e tratamento dos problemas
relacionados ao uso de álcool.
Ressalta-se a importância da manutenção de atividades de promoção à saúde e
prevenção ao uso e abuso de álcool como parte do cuidado de saúde prestado pela
equipe que assiste a população estudada.
Implicações para a Prática Clínica
O AUDIT é um instrumento utilizado na identificação dos problemas relacionados
ao álcool visto que sua aplicação possibilita detectar problemas associados a
diferentes padrões de uso do álcool. Permite também fornecer orientações,
intervenções, e quando preciso direcionamentos a serviços de saúde
especializados.
A utilização do AUDIT nos serviços de Atenção Básica, configura-se como um
instrumento para a realização de ações de educação em saúde, podendo ser
utilizado por toda a equipe de saúde. A prática de enfermeiros pode ser
potencializada com a aplicação de instrumentos dessa natureza, realização de
atividades educativas de promoção de saúde, bem como, ações no âmbito da
prevenção do uso de álcool e outras drogas, especialmente, em comunidades
socialmente vulneráveis como a deste estudo.