Prioridades de investigação em saúde mental e a transformação do modelo
Introdução
Nas duas últimas décadas o Brasil passou por um processo de transformação do
seu modelo de atenção em saúde mental, caracterizado pelo redirecionamento de
um cuidado antes centrado na internação hospitalar para uma lógica de atenção
focada em serviços de base comunitária. Esse processo de mudança de modelo
implica um conjunto de desafios para investigação científica, reforçando a
importância da inclusão do tema saúde mental na Agenda de Prioridades de
Pesquisa para o Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Saúde
Mental no Brasil é essencialmente baseada na Declaração de Caracas (OMS, 1991),
e prevê, sobretudo: o processo de desinstitucionalização do portador de
transtorno psíquico, a reorientação da assistência na saúde mental para um
modelo descentralizado e de base comunitária, a partir da redução gradual dos
leitos psiquiátricos e com a progressiva ampliação da rede extra-hospitalar.
Neste sentido, os novos dispositivos de saúde mental que vêm sendo utilizados
no Brasil são: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); ações da saúde mental
na Atenção Básica; os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de
Convivência e Cultura; alguns Leitos de atenção integral em Hospitais Gerais e
nos CAPS III (que funcionam 24 horas); o auxílio financeiro do Programa de
Volta para Casa; e os Consultórios de Rua.
Dentre os dispositivos disponíveis, o principal deles tem sido o CAPS, o qual
constitui a principal estratégia do processo de Reforma Psiquiátrica no
Brasil. De acordo com a Portaria nº 336/GM de 2002, os CAPS são instituições
destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua
integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da
autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e psicológico. Sua característica
principal é a de buscar integrar o portador de sofrimento psíquico a um
ambiente social e cultural concreto, designado como seu "território", o espaço
da cidade onde se desenvolve a vida cotidiana desses usuários e de seus
familiares (Brasil, 2002).
Os principais objetivos destes serviços tem sido: oferecer cuidados
intermediários (entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar) com
ênfase na abordagem compreensiva e com suporte educacional, social,
recreacional, reabilitação psicossocial e reinserção profissional; estimular a
melhoria da qualidade de vida dos usuários e seus familiares através do
autocuidado; e intervir junto à comunidade com ações educativas em saúde como
forma de reduzir os danos sociais, psíquicos e físicos conseqüentes do uso de
drogas.
Metodologia
Buscou-se informações contidas em artigos, em língua portuguesa indexados em,
bases de dados e Bibliotecas Virtuais em Saúde (BVS) como BIREME, SCIELO,
MEDLINE, LILACS e BDENF a partir do descritor "Enfermagem Psiquiátrica". Usou-
se como critérios de seleção os artigos estarem disponíveis na íntegra,
escritos por brasileiros e cujos resumos evidenciassem concretamente que o foco
principal de abordagem do artigo fosse relacionado à enfermagem psiquiátrica. O
período considerado para a busca foi de janeiro de 2009 a julho de 2014.
Realizou-se uma análise dos 54 artigos científicos encontrados, levando-se em
consideração as prioridades propostas pela agenda para pesquisas em saúde
mental no Brasil. Dos artigos encontrados destacam-se os estudos desenvolvidos
por Camatta (2009), Filizola, Teixeira, Milioni e Brechesi (2011), Mari,
Bressan, Almeida-Filho, Gerolin, Sharan e Saxena (2006), Miranda, Clementino,
Santos, Silva e Costa (2010), Moreira e Loyola (2010), Muniz, Tavares, Souza,
Pacheco e Figueiredo (2014), Oliveira, Silva e Silva (2009), e Oliveira,
Kestenberg e Silva (2013).
Para contextualizar o tema, realizou-se um levantamento da distribuição dos
serviços de saúde mental no Brasil, comparando-se regiões do país, serviços
hospitalares e extra-hospitalares e desenvolvimento de pesquisas em enfermagem.
Resultados e Discussão
O atual cenário da saúde mental no Brasil tem apresentado como tendências: a
reversão do modelo hospitalar para uma ampliação significativa da rede de
atenção extra-hospitalar, de base comunitária; o entendimento das questões de
álcool e outras drogas como problema de saúde pública e como prioridade no
atual governo; e a ratificação das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS)
nas ações de saúde mental através da Lei Federal 10.216/01 e da III Conferência
Nacional de Saúde Mental.
Atualmente, 12% da população necessitam de algum atendimento em saúde mental,
seja ele contínuo ou eventual, e 2,3% do orçamento anual do SUS são destinados
para a Saúde Mental (Ministério da Saúde, 2012).
Neste sentido, alguns desafios precisam ser enfrentados, sobretudo no sentido
de fortalecer às políticas de saúde voltadas para grupos de pessoas com
transtornos mentais de alta prevalência e baixa cobertura assistencial, bem
como implementar uma política de saúde mental mais eficaz no atendimento às
pessoas que sofrem com a crise social, a violência e desemprego - determinantes
sociais da saúde impactantes atualmente no Brasil.
Para isto, o país tem apontado para a necessidade de consolidação e ampliação
da rede de atenção de base comunitária e territorial (Gráfico_1) visando à
promoção da reintegração social e cidadania. Portanto, o aumento dos recursos
do orçamento anual do SUS para a Saúde Mental também deve ser encarado como
importante desafio, a fim de se tornar factível o alcance das metas
estabelecidas.
As regiões do Brasil não demonstraram um equilíbrio na distribuição deste
crescimento no número de CAPS. É mais expressivo o indicador da cobertura
assistencial nas regiões Sul e Nordeste, que vêm apresentando os maiores
indicadores de cobertura. A expansão do número de CAPS nas regiões Centro-oeste
e Norte permanece como desafio a ser enfrentado nos próximos anos. Com relação
à questão específica da expansão destes serviços na região Norte, o Ministério
da Saúde (2012) aponta que, para melhor compreensão do problema é necessário
que se ajuste o indicador CAPS/100.000 habitantes, devido às peculiaridades
demográficas desta região. Já a região Sudeste, tem apresentado um ritmo de
crescimento semelhante ao das regiões Centro-oeste e Norte, apesar de ter
apresentado um patamar mais alto de cobertura no início do recorte histórico.
Este recorte pode ser melhor compreendido a partir da interpretação do gráfico
2, que mostra em seu comportamento a expansão dos CAPS em cada região do país.
Os SRT também apresentaram um movimento de expansão considerável no país,
havendo um crescimento acentuado em 2011 devido ao processo de fechamento de
grandes hospitais neste período (gráfico_3). O mesmo ocorreu com o Programa de
Volta para Casa. O Ministério da Saúde aponta que em 2012 o Programa havia
alcançado mais de 4 mil beneficiários em folha de pagamento (gráfico_4). Porém,
tanto os SRT quanto o Programa de Volta para Casa precisam ampliar
significativamente sua curva de crescimento, pois ainda há muitos usuários que
não têm acesso a essas estratégias para a Reabilitação Psicossocial.
Neste sentido, pode-se destacar a inversão que houve dos investimentos na
atenção Psicossocial por parte do Ministério da Saúde. Se em 2002 aplicava-se
apenas 24% dos gastos na saúde mental em serviços extra-hospitalares, em 2011
essa porcentagem atingiu 71%, contra 29% investidos em serviços hospitalares
(Brasil, 2012).
No entanto, verifica-se a partir da interpretação dos gráficos, que as novas
modalidades terapêuticas apresentaram um ritmo de crescimento importante de
2002 a 2006. E de lá pra cá passaram a atingir ritmo de crescimento mais lento.
Este fato relaciona-se com o próprio processo de discussão em torno da Reforma
Psiquiátrica no Brasil que precisa ser reaquecido, retomando o debate a
respeito da importância da ampliação de novas modalidades terapêuticas. Nesse
contexto a presença da universidade é também requerida. É consenso que existe a
necessidade de produção de conhecimentos que gerem mais saúde mental para a
população, que auxiliem nas ações de expansão da rede de serviços, na melhora
na qualidade da atenção e na redução da lacuna assistencial com ênfase na
atenção primária, levando em conta os determinantes sociais e o enfrentamento
do estigma na sociedade.
Neste sentido, propõe-se que os enfermeiros busquem sintonizar suas pesquisas
às temáticas priorizadas na agenda de Saúde Mental. A articulação em torno da
Agenda é a ação mais importante na legitimação deste instrumento na Política
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde no Brasil, e permitirá que
prioridades de pesquisa em saúde estejam em consonância com os princípios do
SUS. Para isto, tem-se como pressuposto que as pesquisas visem respeitar as
necessidades nacionais e regionais de saúde e estimular a produção de
conhecimentos e bens materiais e processuais, sobretudo, nas áreas
prioritárias, para o desenvolvimento das políticas sociais.
Destacam-se como tópicos a serem contemplados nas pesquisas que apresentam um
potencial para suprir as lacunas de conhecimento identificadas na área de saúde
mental: intervenções que possam reduzir a carga global da doença mental;
estratégias mais eficientes de ampliar a oferta de serviços em saúde mental;
atenção primária; bioética e direitos humanos das pessoas com transtornos
mentais.
A produção de pesquisa em enfermagem de saúde mental no Brasil é marcada por
uma produção desigual nas diferentes regiões do país, acompanhando o grau de
desenvolvimento ecônomico e social dessas regiões. O gráfico_5 apresenta o
total de artigos produzidos pelos pesquisadores em enfermagem do Brasil,
exemplificando as disparidades regionais já mencionadas.
O foco das pesquisas realizadas por enfermeiros, segundo análise do material
encontrado nas bases de dados investigadas, relaciona-se de um modo geral à
agenda de pesquisa prioritárias em saúde mental no Brasil, predominando as
pesquisas sobre as demandas de cuidado de enfermagem em saúde mental. A
abordagem metodológica predominante é a qualitativa, desenvolvida em 74,1% dos
estudos, seguida da quantitativa 24,1% e da quanti-qualitativa 1,8% (Quadro_1).
O Quadro_2 apresenta os itens de prioridade da agenda para pesquisa em saúde
mental pesquisados em menor número pelos enfermeiros.
Conclusão
A mudança do modelo assistencial em saúde mental no Brasil desencadeou um
conjunto de desafios para investigação científica, culminando com a inclusão do
tema saúde mental na Agenda de Prioridades de Pesquisa para o SUS. Até o
momento, a despeito dos enfermeiros desenvolverem pesquisas coadunadas com a
agenda nacional de prioridades, persiste a necessidade de novos estudos serem
realizados de forma mais equanime em todas as regiões do país. Ressalta-se a
necessidade de mais estudos de avaliação, para comparar o custo-benefício dos
modelos de cuidados alternativos ' uma forma de melhorar a cobertura pelo uso
da própria pesquisa como um instrumento para a mudança.
Os estudos analisados indicam importantes avanços nos cuidados desenvolvidos
com a pessoa portadora de sofrimento mental, o significado que assume a doença
mental junto à família e a relação com os novos dispositivos assistenciais em
saúde. Contudo, é necessário que a sociedade, o governo e a universidade
ampliem o debate em torno de novas estratégias de atenção em saúde mental e
também possa investigar sua eficácia.
Tangente a isto, concluiu-se a relevância dos enfermeiros contemplarem a
temática dos desafios enfrentados na clínica e na política de saúde mental. Por
isto, recomenda-se que os serviços de saúde e as universidades intensifiquem
parcerias para que conjuguem formas de cuidar que atendam ao imperativo ético
da Reforma Psiquiátrica, e que se qualifique a infra-estrutura para apoio à
pesquisa no país.