Incentivos financeiros: um incentivo à melhoria dos cuidados de saúde?
CLUBE DE LEITURA
Incentivos financeiros: um incentivo à melhoria dos cuidados de saúde?
Teresa Maia Fernandes*; Alexandra Sousa**
*Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Infesta, ULS Matosinhos
**Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Oceanos, ULS Matosinhos
Scott A, Sivey P, Ait Ouakrim D, Willenberg L, Naccarella L, Furler J, et al.
The effect of financial incentives on the quality of health care provided by
primary care physicians. Cochrane Database Syst Rev 2011 Sep 7; 9: CD008451.
Introdução
Os cuidados primários fornecem acesso fácil aos serviços de saúde, abordando a
maioria das necessidades de saúde do indivíduo, desenvolvendo uma relação
médico-doente sustentada e contínua, conjuntamente com a família e a
comunidade.
O número de países com incentivos financeiros para premiar o desempenho e
qualidade dos cuidados primários tem vindo a aumentar. No entanto, apesar da
popularidade destes esquemas, há pouca evidência que prove a sua eficácia na
melhoria da qualidade dos cuidados médicos ou a sua custo-efectividade em
relação a outras medidas. Os efeitos podem ser positivos (incentivando à
mudança de comportamento) ou negativos (sem alteração do comportamento ou com
alteração no sentido oposto), sendo estes efeitos moldados por vários factores,
incluindo características do pagamento, factores motivacionais do clínico e
custos financeiros.
Objectivos
Esta revisão analisou as consequências das alterações nos métodos de pagamento
no que diz respeito à qualidade dos cuidados primários. Além disso, teve como
objectivos identificar os diferentes tipos de incentivos financeiros em que se
verifica melhoria de qualidade, as características das populações em que a
qualidade de cuidados melhorou devido aos incentivos financeiros e ainda as
características dos médicos de família que aderiram.
Metodologia
Foi realizada uma pesquisa dos artigos publicados entre Janeiro de 2000 e
Agosto de 2009. Dois revisores independentes seleccionaram os artigos, colheram
dados e efectuaram a sua avaliação.
Relativamente aos outcomes avaliados, os estudos incluíram vários parâmetros,
nomeadamente informação dos doentes relativa à qualidade de cuidados; taxas de
rastreio por citologia cervicovaginal, mamografia, vacinação pediátrica,
rastreio de clamídia e medicação apropriada da asma; aspectos de seguimento da
diabetes como avaliação de HbA1c, de colesterol LDL, entre outros.
Resultados
Foram incluídos 7 estudos nesta revisão, sendo três deles ensaios clínicos
aleatorizados.
Seis dos sete estudos incluídos usaram esquemas de pagamento a grupos de
médicos e não ao médico individualmente. Em todos esses estudos não foi
descrito como o pagamento foi distribuído entre a equipa médica. Três dos
estudos incluídos descreveram o esquema de pagamento nos grupos de controlo ou
antes da intervenção e dois estimaram a percentagem dos incentivos em relação à
totalidade do ganho.
Seis dos sete estudos selecionados mostraram efeito positivo modesto em alguns
parâmetros da qualidade de cuidados. Um dos estudos não encontrou qualquer
benefício.
Discussão
Embora seis estudos tenham encontrado um efeito positivo estatisticamente
significativo, a maioria verificou melhoria apenas numa das várias medidas de
qualidade usadas em cada um dos estudos. Assim, os resultados devem ser
interpretados de forma cautelosa devido às limitações dos desenhos de estudo e
consequentemente da sua validade externa.
Verificou-se uma heterogeneidade significativa entre os estudos no que respeita
aos métodos dos incentivos e aos diferentes outcomes avaliados. Não é tido em
conta em nenhum dos estudos o modo de selecção dos médicos para a participação
ou não em sistemas de incentivos.
Alguns pontos que poderiam auxiliar a análise dos resultados são o estudo das
consequências não desejadas do uso dos incentivos; a avaliação do grau de
ligação entre médico e doente (se o doente visitaria simultaneamente outros
médicos); a informação sobre a distribuição dos incentivos dados a grupos de
profissionais; e, por último, a referência à magnitude dos incentivos
financeiros em relação ao rendimento anual.
Conclusão
Seis dos sete estudos incluídos mostraram efeitos positivos mas modestos do uso
de incentivos financeiros. Existe, no entanto, elevado risco de viés na maioria
dos estudos devido a desenhos de estudo pobres, e à não consideração do
possível viés de selecção pela possibilidade do médico poder optar por
pertencer ou não ao grupo dos incentivos financeiros.
Apesar do uso de incentivos ter vindo a aumentar ultimamente, a evidência é
insuficiente para apoiar ou reprovar o seu uso de forma a melhorar a qualidade
dos cuidados primários. A implementação deve por isso prosseguir cautelosamente
e os esquemas de incentivos devem ser desenhados mais cuidadosamente antes de
serem implementados. São necessários desenhos de estudo rigorosos, que procurem
avaliar as possíveis consequências indesejadas dos esquemas de incentivos e que
descrevam consistentemente as características dos incentivos financeiros em
questão.
Comentário
Os médicos de família estão a ser, em número crescente, enquadrados em Unidades
de Saúde Familiares (USF) em que os incentivos financeiros desempenham um papel
importante na dinâmica das mesmas. Esta tendência verifica-se em diversos
países, principalmente europeus. A primeira tentativa em Portugal de
organização de um sistema retributivo consoante o desempenho do médico e da
equipa ocorreu com o Regime Remuneratório Experimental em 1998, que mais tarde
evoluiu para as actuais USF. Baseia-se numa remuneração variável condicionada
pelo atingimento de indicadores de saúde.
Este estudo analisou se o pagamento por desempenho, existente nas nossas USF,
traz efectivamente benefícios às populações. Pretendeu registar o impacto real
na qualidade e as desvantagens inerentes a esta forma de pagamento. No entanto,
por se observarem alguns viéses na maioria dos estudos seleccionados, mau
desenho de estudo e muita heterogeneidade nos outcomes avaliados, o artigo em
questão conclui somente que não há evidência de benefício do pagamento por
desempenho, sem abordar no entanto questões específicas.
Destaca, no entanto, três possíveis condicionantes da melhoria da qualidade de
prestação de serviços através deste sistema retributivo. O benefício poderá ser
variável dependendo do tipo de incentivo financeiro, consoante a população-alvo
ou ainda pelo perfil do profissional de saúde. Assim, existem várias formas de
pagamento estudadas neste artigo de revisão, nomeadamente pagamento após ser
atingido um objectivo único, pagamento fixo por cada paciente que atinja
determinado outcome e ranking relativo dos grupos de médicos. Em Portugal, tem-
se assistido ao pagamento por equipa multiprofissional e não por indivíduo
isolado, o que reforça a necessidade do trabalho em equipa. Além disso, o
pagamento não é realizado consoante um ranking relativo, o que significa que se
todas as equipas forem excelentes e atingirem as metas, não ficarão
prejudicadas. Não há pagamento por paciente mas sempre por um todo, o que
diminui o risco de haver selecção dos doentes pelos médicos. De destacar que
nenhum dos estudos abordou a questão dos riscos de viés resultantes do facto do
médico poder seleccionar ou não os doentes que inclui no esquema de incentivos
nem a forma como o pagamento deve ser distribuído entre os grupos.
Não há dados que permitam inferir na literatura sobre as características da
população-alvo destas equipas de saúde. Uma população, num determinado contexto
geográfico e cultural, poderá ter ganhos de saúde, enquanto outras não. Este
sistema de organização, no entanto, difundiu-se sem se estudar as
especificidades locais.
Em relação ao perfil do profissional de saúde, o pagamento por desempenho
poderá constituir uma motivação para uma melhoria da prestação dos cuidados.
Porém, é possível que sejam precisamente os profissionais de saúde mais
motivados que adiram mais a este sistema por sentirem mais valorização e
compensação pelo esforço dispendido. Nem todos os profissionais de saúde
apresentam a mesma resposta a este tipo de organização o que faz depreender que
existem características próprias mais susceptíveis de sucesso.
Outro aspecto importante a salientar prende-se com os outcomes avaliados, isto
é, a definição dos indicadores contratualizados. Se a área abrangida pelos
indicadores for demasiado restrita e com metas elevadas, corre-se o risco de
concentração dos cuidados pelos médicos de família em determinadas actividades
médicas. São assim necessários mais estudos que se debrucem sobre as metas a
fixar em cada objectivo e se o facto de estas serem demasiado elevadas não
prejudicará a actuação noutras áreas. Além disso, o que se pretende são ganhos
em saúde, daí ser essencial que os indicadores medidos tenham como base a
Medicina Baseada na Evidência e que vá de encontro às normas das diferentes
organizações de saúde nacionais, esforço que se tem sentido a nível nacional
com a emissão de novas normas de orientação clínica pela Direcção Geral da
Saúde com critérios de avaliação.
A sustentação científica para a implementação de incentivos com vista à
melhoria da qualidade de cuidados carece de mais estudos.