Os registos clínicos e a codificação
EDITORIAL
Os registos clínicos e a codificação
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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Os registos clínicos são a memória de um médico, são uma preciosa ajuda à
prática clínica, auxiliando e promovendo o raciocínio clínico, permitindo
arquivar as impressões subjectivas e os dados objectivos, servindo de suporte
clínico e legal e constituindo uma base importantíssima para o processo de
formação e investigação em Medicina.1,2
A codificação, por sua vez, permite harmonizar e uniformizar, ou categorizar
com códigos as diversas expressões pessoais que o doente relata, os diferentes
e personalizados procedimentos que efectuamos em determinado caso clínico ou as
nossas duvidosas, incertas ou rigorosas avaliações diagnósticas.
De uma forma generalizada, a classe médica, a nível da Medicina Geral e
Familiar, aderiu aos diferentes sistemas informáticos de registos clínicos em
uso. Para a maior parte dos médicos de família portugueses, longe estão os
tempos dos registos clínicos escritos em papel.
Quando temos de recorrer aos ficheiros em papel para recuperar um documento, é
com algum saudosismo e admiração que percorremos com o olhar os nossos antigos
registos, em que a continuidade era mais aparente e a percepção da evolução do
caso clínico mais evidente. Neles estão espelhados também a nossa alma e estado
espírito, através da letra mais aprimorada ou mais irregular; a pressão do
tempo, através de texto mais cuidado ou das palavras e frases inacabadas; a
cadência com que decorreu a consulta, através da fluidez com o que o registo
foi redigido e desenhado no papel...
Depois de recentemente fazer o exercício de me distanciar e observar os
registos clínicos no Sistema de Apoio ao Médico (SAM) para comentar o nosso
trabalho com o meu interno, e depois de passar pela experiência de auditar
alguns processos clínicos de diferentes colegas, não pude deixar de reflectir
acerca do caminho que os registos clínicos começam a levar nos dias de hoje.
Longe de serem a memória do médico, de o auxiliarem a recordar o que o doente
disse em determinado contexto, parte importante dos registos clínicos começa a
ser um seco repositório de classificações da Classificação Internacional de
Cuidados de Saúde Primários (ICPC).3
Ora, se um registo é, em muitos casos, um juízo clínico, sendo já
interpretativo e não se limitando a ser uma descrição, uma codificação é
definitivamente um rótulo homogéneo que se coloca a uma situação que por vezes
ainda não amadureceu para ter sequer um nome...
Na nossa prática clínica, muitas vezes lidamos com sintomas vagos, mal
definidos, que surgem em fases precoces da doença, que nem chegam a tornar-se
doença ou transformar-se num problema de saúde. Apesar de a ICPC estar
preparada para lidar com estas subtilezas da nossa especialidade, duvido que,
em todos os momentos, estejamos preparados, para ali mesmo, no momento, por
vezes demasiado breve e espartilhado da consulta, fazermos com que tudo o que
descrevemos e ajuizamos vire um código, sabermos a que categoria cada sintoma
ou impressão clínica pertence... O problema das classificações não reside na
ICPC, mas sim na forma como ela é utilizada.
A maior parte dos clínicos não faz investigação, a maior parte dos clínicos
dedica-se apenas à clínica e especializa-se no acto maior da Consulta.
Interrogo-me então – porque deixaram alguns dos clínicos, sobretudo esses que
só fazem clínica, de fazer na mesma os seus registos em texto livre para os
passarem a fazer única e exclusivamente através de uma classificação que poucos
estudaram e poucos dominam?
Que memória é esta que tão pouco nos servirá no futuro, a nós médicos? Tenho
dúvidas que este tipo de registo meramente codificado e tão pouco prolixo tenha
o suficiente rigor para, não permitindo a sua auditoria no que concerne ao
rigor da descrição do que foi relatado, vir a servir de base de investigação no
futuro.
A descrição do que se ouve, do que se interpreta ou do que se faz deve vir
acompanhada, sempre que adequado e possível, da respectiva codificação, mas
esta última não parece suficientemente expressiva para substituir a rica
descrição semiológica do que se escuta e do que se subentende ou a complexidade
e a incerteza do que se ajuíza.
Nesta edição, publicamos dois estudos originais que baseiam a sua investigação
em registos clínicos.4,5 As limitações deste tipo de estudos que serão no
futuro cada vez mais vulgares entre nós (felizmente! sobretudo se forem de boa
qualidade...), poderão ser colmatadas através do desenvolvimento de
procedimentos de registo e de codificação. Estes procedimentos têm de assentar
na discussão e na sistematização da forma como estes devem ser praticados.
Quantos e quais serão os médicos que fazem os seus registos e codificações com
suficiente rigor para que a sua prática possa ser objecto de inclusão num
estudo deste género? Todos ou só alguns?
Talvez fosse interessante começar por fazer um estudo que respondesse a esta
questão...
Nesta edição falamos também acerca de e-counselling e da sua importância
crescente. Abordamos, de novo, o uso do e-mail na consulta.6
A forma como alguns sistemas informático estão desenvolvidos (como por exemplo
o SAM) não permite, neste momento, efectuar registos no local dos registos
contínuos (SOAP) sem abertura de um contacto, o que actualmente não se pode nem
deve fazer, sem o consentimento do utente, uma vez que, nos devidos casos, tal
acto médico condiciona o pagamento de uma taxa moderadora.7
Ora, para além das consultas por email, temos muitas vezes contactos
telefónicos, contactos por via de terceiros, ou o envio directo para o sistema
informático, sem o conhecimento prévio do utente, de resultados de exames
auxiliares de diagnóstico, que nos devem suscitar a necessidade e o rigor do
registo da informação no local apropriado.2 Muitas vezes, nestes contextos de
consultas não presenciais, para além do registo de informação para mais tarde
recordar, há até juízos clínicos, procedimentos aconselhados ou efectuados. Em
muitos destes casos, não há propriamente a possibilidade ou viabilidade prática
de pedir consentimento expresso ao doente para abertura do contacto, pelo que a
dificuldade do registo nestas situações deveria ser contornada pela
possibilidade real de podermos efectuar os registos sempre que necessário e nos
locais mais indicados.
Acerca desta questão central dos registos e das codificações, não posso
terminar sem salientar e sem me congratular com a habitual generosidade dos
médicos de família...
Sem pestanejarem, a maioria dos colegas que aderiram aos registos nos sistemas
informáticos, assumiram com a naturalidade e o auto-didactismo do costume a
arte de codificar e passaram a fazê-lo com tal desenvoltura que já nem recordam
que, há apenas alguns anos, só uma minoria entre nós o fazia. Aliás, como nos
Hospitais hoje ainda ocorre... onde há médicos que têm, como única tarefa
demorada e remunerada, o acto de codificar o que os outros colegas registam...