Morte súbita cardíaca em crianças assintomáticas: qual o papel do
electrocardiograma?
CLUBE DE LEITURA
Morte súbita cardíaca em crianças assintomáticas: qual o papel do
electrocardiograma?
Ana Carolina Cruz*; Lisa Amaro**
*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde Dr. Arnaldo
Sampaio – ACES Pinhal Litoral II
**Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, Centro de Saúde Dr. Arnaldo
Sampaio – ACES Pinhal Litoral II
Rodday AM, Triedman JK, Alexander ME, Cohen JT, Stanley IP, Newburger JW, et
al. Electrocardiogram screening for disorders that cause sudden cardiac death
in assymptomatic children: a meta-analysis. Pediatrics. 2012;129(4): e999-
e1010.
Introdução
A morte súbita cardíaca (MSC) em idade pediátrica tem uma incidência anual de
0,8-6,2 por 100.000 crianças assintomáticas. Embora seja rara, trata-se de um
evento trágico, com consequências devastadoras e de grande preocupação pública.
O Japão é o único país que realizou um rastreio em massa dirigido a crianças em
idade escolar. Outros países defendem o rastreio dirigido a subgrupos
específicos, nomeadamente a crianças com diagnóstico de perturbação de
hiperactividade e défice de atenção, antes de iniciar medicação, ou praticantes
de desporto.
Inúmeras doenças raras podem causar MSC em crianças mas nem todas apresentam
alterações no electrocardiograma (ECG). As patologias mais frequentes
detectáveis por ECG são a Cardiomiopatia Hipertrófica (CMH), o Síndrome do QT
longo (SQTL) e o Síndrome de Wolff-Parkinson-Whitte (WPW). Na verdade, sabe-se
que as taxas de prevalência estimadas destas patologias em crianças saudáveis e
assintomáticas são baixas e, além disso, o valor do ECG como teste de rastreio
não está ainda bem estabelecido.
Os autores deste artigo realizaram uma revisão sistemática e meta-análise da
literatura destas três patologias que causam MSC, com dois objectivos
principais. O primeiro foi sistematizar a frequência com que o exame
electrocardiográfico ou o ecocardiograma (expressão/prevalência fenotípica)
sugerem CMH, SQTL ou WPW em crianças assintomáticas, não diagnosticadas, que
pudessem vir a ser identificadas por rastreio em massa. Os autores focalizaram-
se na prevalência fenotípica em vez da prevalência genética, porque os testes
genéticos no âmbito de programas de rastreio são impraticáveis e de utilização
limitada como diagnóstico ou estratificação de risco. O segundo objectivo foi
analisar a sensibilidade e especificidade do ECG, isolado ou associado ao
ecocardiograma, e determinar os valores preditivos.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa de artigos na Medline, publicados entre 1950 e
Dezembro de 2010, sobre CMH, SQTL e WPW. Seis revisores independentes
analisaram os artigos relevantes.
Para responder ao primeiro objectivo, os autores incluíram estudos transversais
e de coorte. Foram excluídos estudos cuja média de idades dos indivíduos fosse
superior a 2 desvios-padrão de 25 anos, subgrupos seleccionados, estudos com
amostras de conveniência não representativas ou que abordassem a frequência das
variações genéticas para cada doença. Para o segundo objectivo, os autores
incluíram estudos que abordassem os valores de sensibilidade e especificidade
do ECG.
A taxa de prevalência fenotípica (por 100.000) e o intervalo de confiança (IC)
a 95% para a CMH, SQTL e WPW foram calculados pela distribuição binominal. Para
avaliar até que ponto a variação dos resultados obtidos podiam resultar do
acaso, os autores usaram a Cochran Q de modo a determinar a heterogeneidade e
quantificar a sua magnitude em termos de I2 (0 e 100%). A heterogeneidade foi
considerada significativa para valores de I2>75%.
Resultados
De 6.954 artigos encontrados foi avaliado o texto completo de 396. Destes,
foram seleccionados trinta: oito estudos de prevalência, dois de análise da
sensibilidade e prevalência, dezanove de sensibilidade e especificidade e um
simultaneamente de sensibilidade, especificidade e também de prevalência.
A população dos onze estudos de prevalência fenotípica variou entre a população
geral e subgrupos de atletas universitários e recrutas militares (amostras de
1.369 a 1.336.377 indivíduos). A população dos vinte estudos que incidiram
sobre a sensibilidade e a especificidade incluiu grupos de indivíduos afectados
com estas patologias e os seus familiares (amostras de 23 a 2.770 indivíduos).
A prevalência fenotípica de CMH, baseada em sete estudos, variou de 0 a 170/
100.000, com uma taxa resumida de prevalência fenotípica de 45/100.000 (IC 95%:
10-79) e uma variação significativa entre os estudos (I2=91%, P<0,001).
Relativamente ao SQTL (três estudos), as taxas de prevalência fenotípica
variaram entre 1 a 12/100.000, com uma taxa resumida de 7/100.000 (IC 95%: 0-
14), com significativa heterogeneidade (I2=93%, P<0,001).
As taxas de prevalência fenotípica da patologia WPW, baseada em três estudos,
oscilaram entre 68 e 222/100.000 (IC 95%: 55-218), com uma taxa resumida de
136/100.000 (I2=95%, P<0,001).
O valor preditivo negativo (VPN) do ECG, tanto para CMH como para o SQTL, foi
elevado. Contudo, o valor preditivo positivo (VPP) variou com os diferentes
valores estabelecidos de sensibilidade e especificidade e da verdadeira
prevalência das patologias.
Discussão
Verificou-se que as prevalências fenotípicas estimadas apresentaram grande
variação entre os estudos e foram inferiores às de outros estudos da
bibliografia. Estes achados ajudam a definir limites à utilização teórica do
ECG e/ou Ecocardiograma como exame de rastreio de MSC. Contrariamente aos
programas de rastreio habituais, que valorizam incluir os indivíduos que podem
vir a ter patologia (sensibilidade), verificou-se que, quando a prevalência
fenotípica é reduzida, dar prioridade à especificidade sobre a sensibilidade
pode melhorar o VPP sem afectar o VPN.
Os autores realizaram outros cálculos para perceber como estas estimativas se
poderiam adequar ao rastreio populacional baseado no ECG. A prevalência
combinada estimada da CMH, SQTL e WPW desta meta-análise foi 188/100.000.
Quando optimizaram a precisão, o VPN atingiu os 100%, indicando uma falsa taxa
de certeza. Contudo, o VPP do ECG para rastrear uma destas três doenças foi de
1%, o que significa que 99% das crianças com um ECG positivo não teriam nenhuma
das doenças. Contrariamente, quando optimizaram a especificidade, o VPN ainda
se aproximou de 100% mas o VPP foi 41%.
Embora estes resultados sugiram que o ECG possa ser utilizado para rastreio em
massa, sob um ponto de vista estatístico e de acordo com os critérios da U.S.
Preventive Services Task Force, não permitem avaliar outros componentes dos
programas de rastreio (mortalidade, morbilidade, custos, qualidade de vida e
avaliação do desempenho).
Devido à prevalência fenotípica muito baixa e à imprecisão inerente a quase
todos os exames médicos (incluindo os cardiologistas pediátricos que relatam o
ECG), o rastreio de doenças raras leva a muitos falsos positivos. Estes
conduzem a avaliações diagnósticas adicionais, que por sua vez resultam em
terapêuticas e restrição de actividade física desnecessárias e, além disso,
podem desencadear ansiedade nas crianças e nos pais. As famílias devem ter
consciência de que um ECG negativo não exclui o risco de MSC e que outras
doenças cardíacas raras a podem causar.
Este estudo tem várias limitações, nomeadamente: a pesquisa foi limitada à
literatura da Medline; as estimativas podem reflectir viés de publicação; os
estudos são bastante heterogéneos; os cálculos elaborados não tiveram em
consideração a história clínica e o exame físico; os autores basearam-se apenas
na prevalência fenotípica e focalizaram-se apenas nas três patologias
descritas.
Conclusão
Atendendo à baixa prevalência fenotípica e à variação na taxa de falsos
positivos, são necessários estudos adicionais de custo-efectividade para
determinar se os programas de rastreio de MSC em crianças assintomáticas devem
ser instituídos como medida de saúde pública.
Comentário
A MSC em crianças é uma situação rara, de muito mau prognóstico e com um
impacto social significativo. A sobrevivência a uma paragem cardíaca situa-se
entre os 8 e 9% e cerca de metade dessas crianças podem ficar com graves
sequelas neurológicas.1 O diagnóstico precoce em indivíduos sintomáticos,
familiares ou por rastreio pode reduzir o impacto desta situação. O rastreio
universal da população pediátrica levanta muitas questões nomeadamente a
reduzida fiabilidade da clínica e a escolha do método ideal de rastreio, uma
vez que um ECG ou ecocardiograma normais não excluem determinadas patologias
responsáveis por MSC.2
De acordo com recomendações do Colégio Americano e da Sociedade Europeia de
Cardiologia, baseadas em consensos entre Especialistas, devem ser estudados
todos os doentes sintomáticos, os atletas de alta competição e todos os
indivíduos com antecedentes familiares de MSC (primeiro grau). Nestes casos,
recomenda-se a realização de um ECG e, se este apresentar alterações, deve-se
efectuar um ecocardiograma. Os familiares de doentes com história de CMH ou
morte súbita em idade jovem devem manter uma vigilância anual até aos 21 anos e
de cinco em cinco anos a partir dessa idade a menos que o estudo genético
permita excluir a mutação responsável.3
Esta meta-análise fornece uma base de evidência para avaliação de programas de
rastreio pediátricos destas patologias. Constitui também um ponto de partida
para outros estudos desse âmbito.