Listas de 1900 utentes: a quantidade questiona a qualidade
EDITORIAL
Listas de 1900 utentes: a quantidade questiona a qualidade
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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O Serviço Nacional de Saúde está a mudar e não há dúvidas que se avizinham
tempos ainda mais difíceis para os médicos de família.
A juntar às dificuldades já sentidas, devidas à gestão da complexidade da
consulta e aos exigentes objectivos alvo de contratualização com as Unidades de
Saúde e Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS), temos agora a imposição, para
quem opte ou tenha forçosamente de aderir ao regime das 40 horas/semana, de
trabalhar com listas de 1.900 utentes, correspondentes a 2.358 unidades
ponderadas. Este tipo de regime de trabalho, que para os médicos de família já
contratados é opcional, a partir de 2013, é obrigatório para todos os novos
contratos.1
Podemos encarar esta como uma das maiores cedências do acordo estabelecido a 14
de Outubro de 2012 entre os Sindicatos Médicos, o Ministério da Saúde e o
Ministério das Finanças que, afectando de entre a classe médica apenas os
médicos de família, vai permitir minorar um problema grave a nível da política
de saúde, através da atribuição de médico de família a mais de um milhão de
utentes.
No entanto, apesar de teoricamente minimizar esse problema, é fácil antever que
condicionar o trabalho com listas desta magnitude irá acarretar menor
acessibilidade, menos tempo para a consulta, menor qualidade no atendimento dos
utentes, menos tempo para tarefas preventivas e de promoção da saúde, menos
tempo para tratar problemas de doença aguda e crónica, menor satisfação dos
médicos e dos utentes e provavelmente maiores gastos com exames complementares
de diagnóstico e com a prescrição.
Outro aspecto importante deste aumento do número de utentes a atender será a
implicação na formação de médicos internos. Com esta sobrecarga tornar-se-á
mais difícil e haverá menos tempo para fazer uma formação orientada e
reflectida, pois a azáfama entre o doente que sai e o doente que entra
estreitará o tempo disponível para acompanhamento dos formandos, sobretudo os
que estão na fase inicial da sua formação específica. Ou seja, esta medida irá
ter repercussão directa na capacidade formativa dos serviços e, desde já, é de
alertar para isto o Colégio da Ordem dos Médicos e as Coordenações de
Internato.
Num dia-a-dia atarefado, em que lutamos para manter acessibilidade e a
qualidade das consultas, para além do cumprimento dos indicadores
contratualizados, o atendimento de tamanha quantidade de utentes, sem que se
materialize ou preveja o reforço do apoio de outros profissionais de saúde a
breve prazo (como secretários clínicos dando apoio efectivo à actividade do
médico, psicólogos, nutricionistas, podólogos, enfermeiros diferenciados em
determinadas áreas de intervenção prioritária com real partilha das actividades
da consulta, etc.) pode transformar-se numa tarefa simultaneamente hercúlea e
frustrante, pois ao acréscimo de esforço pode juntar-se uma sensação de
trabalho menos conseguido e de inferior qualidade.
Para agravar esta situação, acresce que, a 24 de Outubro de 2012, foi decretado
expurgar automaticamente as listas de utentes, até aqui com percentagens
variáveis de doentes inactivos, em listas com taxas de 100% de utilização a 3
anos.2 Esta condicionante parece vir contrariar a «Explicação do Acordo e das
medidas nele inseridas»,3 efectuada pela Federação Nacional dos Médicos (FNAM),
que explicita que «as listas de utentes serão objecto de uma metodologia clara
de actualização com a participação dos médicos de família e sem a existência de
supostos utentes ‘adormecidos’ como subterfúgio para aumentar
indiscriminadamente o seu número global».3
Podemos calcular que o aumento das listas para 1.900 utentes por médico de
família se vai traduzir num aumento de cerca de mais 800 utentes activos, para
listas médias de 1550… tendo em conta a possibilidade de activação automática
de uma média de cerca de 30% de utentes «adormecidos».
Se para listas de cerca 1.550 utentes, há estudos4 que demonstram que o tempo é
escasso para todas as tarefas a efectuar (entre as tarefas preventivas, de
cumprimento dos indicadores, para além das necessárias respostas a situações de
doença crónica e aguda), que dizer acerca do volume de trabalho que vai
acrescer com tão avultado número de utentes, todos eles activos?
Em outros países, a experiência de trabalho com listas de grandes dimensões é
variável, mas diversos estudos5,6 já demonstraram os problemas associados à
falta de tempo na consulta devidos à sobrecarga condicionada pela necessidade
de atendimento de um elevado número de utentes.
Verifica-se que quanto maior é o número de horas assistenciais dedicadas e o
tempo disponibilizado por consulta e quanto menor a percepção do médico acusar
stress laboral, tanto maior é a satisfação sentida pelo doente relativa aos
cuidados recebidos.7
Há também estudos5 que apontam para o facto de os médicos que fazem consultas
mais longas, prescreverem menos e empenharem-se mais em actividades de promoção
da saúde e relembre-se que este último tipo de investimento se pode traduzir, a
médio prazo, em estilos de vida mais saudáveis e menor consumo de cuidados
médicos. Do mesmo modo, estes médicos atingem níveis mais elevados de
capacitação e melhores resultados em alguns dos parâmetros da satisfação dos
utentes. As diferenças encontradas não se restringem a resultados de consultas
individuais, mas referem-se também a marcadores de longo prazo, que sugerem que
os médicos que fazem consultas mais rápidas não conseguem compensar as
deficiências relativas à falta de tempo na consulta, fazendo consultas mais
frequentes.5
Aprender com a experiência dos outros é sinal de inteligência, precaução e
sabedoria. Por outro lado, responder a um problema com uma solução pouco
efectiva pode condicionar um problema ainda maior.
Que ganharão globalmente os doentes com um médico de família ao qual
dificilmente terão acesso e que pouco tempo terá para os ouvir atentamente? Que
custos, de todos os géneros, nos trarão consultas rápidas e superficiais?
Que ganhos haverá com esta situação que nos conduzirá a médicos exaustos, a
doentes insatisfeitos e potencialmente a piores cuidados?
Por agora, em termos de saldo relativo a esta medida tomada, objectivamente
ainda só podemos especular sobre os resultados. No entanto, já se ganhou
algo... um travo amargo na boca e a sensação incómoda de que as coisas não vão
correr bem, nem para nós, nem para os nossos doentes.