Inibidores do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona: que impacto na
mortalidade global dos hipertensos?
CLUBE DE LEITURA
Inibidores do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona: que impacto na
mortalidade global dos hipertensos?
Alexandra Duarte, Lígia Torres Lima
Internas de Medicina Geral e Familiar, USF São João de Sobrado
Van Vark LC, Bertrand M, Akkerhuis KM, Brugts JJ, Fox K, Mourad JJ, et al.
Angiotensin-converting enzyme inhibitors reduce mortality in hypertension: a
meta-analysis of randomized clinical trials of renin-angiotensin-aldosterone
system inhibitors involving 158 998 patients. Eur Heart J 2012 Aug; 33 (16):
2088-97.
Introdução
Mundialmente ocorrem 7,5 milhões de mortes (13% do total) atribuíveis a doenças
associadas a hipertensão arterial (HTA), sendo este considerado o primeiro
fator de risco de mortalidade.
Os inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona (ISRAA) são o grupo
farmacológico mais frequentemente prescrito para controlo da tensão arterial
(TA), sendo, atualmente, os inibidores da enzima conversora da angiotensina
(IECA) e os antagonistas dos recetores da angiotensina II (ARA) as subclasses
clinicamente mais importantes. Embora ambos bloqueiem a angiotensina II, os
IECA produzem vasodilatação adicional, por redução da degradação da
bradicinina, com provável maior benefício.
Vários estudos têm evidenciado o efeito benéfico dos ISRAA na redução da
morbilidade e mortalidade cardiovascular; contudo a redução da mortalidade por
todas as causas ainda não foi convincentemente demonstrada.
Com o objetivo de avaliar o impacto dos ISRAA, como grupo terapêutico, na
mortalidade por todas as causas e mortalidade cardiovascular devidas a HTA, foi
realizada uma meta-análise de todos os ensaios clínicos randomizados
prospetivos que comparam ISRAA com terapêutica controlo. Embora não fosse
objetivo inicial, os autores decidiram, também, avaliar separadamente as
classes IECA e ARA, tendo em conta as diferenças no mecanismo de ação.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa sistemática de todos os ensaios clínicos
aleatorizados disponíveis, publicados em inglês, entre 01-01-2000 e 01-03-2011,
que avaliassem morbi-mortalidade, comparando o tratamento ativo com ISRAA vs
terapêutica controlo, devendo os benefícios esperados advir, essencialmente, da
redução da TA.
Dois autores avaliaram os estudos, de forma independente, quanto à população,
tratamento, protocolo, endpoits e existência de viés de publicação. Foram
critérios de exclusão: estudos com análises post hoc e/ou análises de subgrupos
de estudos principais; inclusão de doentes devido a doenças específicas,
nomeadamente, cardiovasculares ou renais (pelos possíveis efeitos adicionais
dos ISRAA, para além da redução da TA); menos de 2/3 da população com
diagnóstico de HTA; menos de 100 participantes; baixa incidência de morte por
todas as causas ou ausência de referência a este parâmetro; uso de ISRAA em
ambos os ramos do ensaio.
Foram selecionados 20 ensaios, com um follow-up superior ou igual a 1 ano.
Os endpoits definidos foram mortalidade por todas as causas e mortalidade
cardiovascular, cuja taxa de incidência (TI) foi calculada com base na
estimativa das taxas de mortalidade, que se assumiu serem constantes ao longo
do tempo, de acordo com a curva de Kaplan–Meier. Realizou-se análise
estratificada para as duas classes de ISRAA e, ainda, para o tipo de controlo
(placebo vs tratamento ativo) e percentagem de doentes com diabetes ou
insuficiência renal. Para todos os testes estatísticos, foi considerado
significativo um valor de P<0,05.
Resultados
Os 20 ensaios incluídos englobaram 158 998 doentes submetidos a tratamento com
ISRAA (n=71 401) ou controlo (n=87 597). Os IECA foram usados como tratamento
ativo em 7 ensaios (n=76 615), dois destes sob controlo com placebo e os ARA
testados em 13 ensaios, dos quais 5 placebo-controlados. Do total de
participantes, com idade média de 67 anos, 58% eram do sexo masculino e 91%
hipertensos (de acordo com definição aplicada em cada ensaio).
Durante um follow-up médio de 4,3 anos, 6 284 doentes sob terapêutica com um
ISRAA morreram por qualquer causa (TI: 20,9 mortes por 1 000 doentes/ano),
verificando-se 8 777 mortes nos grupos controlo (TI: 23,3 mortes por 1 000
doentes/ano). Em todos os ensaios o tratamento com um ISRAA associou-se a uma
redução de 5% na mortalidade por todas as causas, estatisticamente
significativa [Hazard Ratio (HR): 0,95, intervalo de confiança (IC) 95%: 0,91-
1,00, P=0,032].
No que concerne à mortalidade cardiovascular, morreram 2 570 doentes a fazer
ISRAA (TI: 8,7 por 1 000 doentes/ano), contra 3 773 do grupo controlo (TI: 10,1
por 1 000 doentes/ano). Esta terapêutica associou-se, assim, a uma redução,
estatisticamente significativa, de 7% sobre a mortalidade cardiovascular (HR:
0,93, IC 95%: 0,88-0,99, P= 0,018).
Da análise dos sete ensaios com IECA, resulta uma redução de 10%,
estatisticamente significativa, sobre a mortalidade por todas as causas, quando
comparado com os controlos (TI: 20,4 vs 24,2 mortes por 1 000 doentes/ano,
respetivamente; HR: 0,90, IC 95%: 0,84-0,97, P= 0,004). Contrariamente, não foi
demonstrada uma redução significativa na mortalidade com tratamento com ARA nos
13 ensaios (TI: 21,4 vs 22,0 mortes por 1 000 doentes/ano; HR: 0,99; IC 95%:
0,94-1,04, P=0,683). Esta diferença entre IECA e ARA foi estatisticamente
significativa (P=0,036), com a redução da mortalidade por todas as causas
observada no grupo dos ISRAA, aparentemente atribuída por completo aos IECA.
Contrariamente, parece não haver diferença na redução da mortalidade
cardiovascular por IECA ou ARA (P=0,227). Mediante uma regressão linear
múltipla, verificou-se uma associação significativa (P=0,035) entre a média
especifica de TA de cada ensaio e a redução da mortalidade por bloqueio do
SRAA, sendo esta redução maior nos ensaios com os maiores valores de TA média
de base.
Discussão
Nesta meta-análise, os ISRAA associaram-se a uma redução da mortalidade por
qualquer causa (redução de 2,4 por 1 000 doentes/ano), benefício trazido, quase
completamente, pelos IECA (redução de 3,8 por 1 000 doentes/ano). Os autores
consideram estes dados consistentes e de aplicabilidade clinica, já que foi
incluído um conjunto de ensaios randomizados bem desenhados, abrangendo uma
ampla população de hipertensos, com bom controlo de fatores de risco
concomitantes, altamente representativa da população hipertensa atual e que não
recebia tratamento com outros fármacos que reduzem o risco cardiovascular
(estatinas, antiagregantes plaquetários, etc).
O efeito reduzido dos ARA sobre a mortalidade em hipertensos, quando comparado
com o dos IECA, tem sido ponto atual de discussão. Os diferentes modos de
atuação dos IECA e ARA e a leve redução na mortalidade cardiovascular com IECA
(independente da TA), que não tem sido observada com ARA ou outros agentes
anti-hipertensivos, poderá contribuir para este achado.
A grande variação entre os ensaios no que diz respeito às diferentes populações
estudadas, as diferentes definições de HTA aplicadas, as diferentes doses de
fármaco ativo e de controlo, o uso de diferentes fármacos de cada subclasse, os
diferentes períodos de follow-up e a variabilidade de antecedentes, co-
morbilidades e respetivas terapêuticas concomitantes, são apontadas pelos
autores como as principais limitações desta meta-análise.
Conclusão
Os ISRAA estão associados a uma significativa redução na mortalidade por todas
as causas (5%) em populações com alta prevalência de HTA. Da análise
estratificada por subgrupo, verificou-se um diferencial de benefício entre IECA
e ARA, com os primeiros associando-se, por si só, a uma redução global da
mortalidade de 10%, não se verificando o mesmo com a subclasse dos ARA.
COMENTÁRIO
Com o aumento da esperança média de vida e envelhecimento da população, será
inevitável uma prevalência crescente da HTA, que atualmente já é responsável
por mais de 7 milhões de mortes a nível mundial.
As recomendações europeias definem, claramente, como primeiro objetivo do
tratamento da HTA, a redução da morbi-mortalidade. Parece não haver dúvidas
relativamente aos efeitos benéficos a nível cardiovascular dos ISRAA; no
entanto, o impacto na mortalidade ainda é questionável.1
Neste sentido, estamos perante um estudo inovador, que avaliando o impacto dos
ISRAA em termos de redução da mortalidade por todas as causas, objetiva um
beneficio significativo dos IECA sobre os ARA, como também já teria sido
apontado noutros ensaios.2 Contudo, a diferença entre estes ISRAA deverá ser
interpretada com precaução, para evitar uma sobrevalorização dos IECA, já que,
para além de se verificar em termos de mortalidade cardiovascular um efeito
sobreponível para com os ARA, alguns estudos recentes provaram não existirem
diferenças entre estas subclasses.3,4
Esta meta-análise reforça assim, que os IECA deverão ser considerados agentes
de primeira linha no tratamento da HTA, já que parecem associar-se a um ganho
global de sobrevida. Contudo, a falta de consistência atual entre estudos é a
favor de que mais investigação seja levada a cabo, visando o esclarecimento do
impacto dos ISRAA sobre a mortalidade global.
Procedendo ao cálculo do Number Needed to Treat (NNT) em pacientes hipertensos
sob ISRAA durante um ano, obteve-se um valor de aproximadamente 417, ou seja,
em 417 hipertensos tratados com ISRAA, durante esse período de tempo,
beneficiaremos um, evitando a sua morte por qualquer causa. No que concerne ao
tratamento com IECA, do cálculo do NNT, retira-se que será necessário tratar
durante 1 ano aproximadamente 263 hipertensos para que um deles beneficie
evitando a sua morte por qualquer causa. No que diz respeito à intervenção com
ARA, seria necessário tratar 1 667 hipertensos durante 1 ano, para que seja
evitada a morte de um deles. Contrariamente às intervenções com ISRAA e IECA,
cujo benefício na mortalidade por qualquer causa foi estatisticamente
significativo, a redução da mortalidade encontrada com ARA não mostrou
significância estatística. Da análise destes dados, observa-se igualmente uma
superioridade dos IECA na redução da mortalidade por qualquer causa em doentes
hipertensos.
Saliente-se que, no passado, os doentes eram alertados para a importância de um
controlo tensional alegando-se a prevenção de eventos cardiovasculares.
Atualmente e com estes novos dados, a redução da mortalidade poderá constituir
um argumento bastante convincente para melhorar a adesão ao tratamento entre os
hipertensos.