Obesidade infantil : um problema cada vez mais actual
Introdução
A Obesidade Infantil é a forma mais comum de patologia da nutrição nos países
desenvolvidos.1 A sua prevalência tem aumentado nas últimas décadas,
justificando a denominação da Organização Mundial de Saúde (OMS) como epidemia
de saúde pública, pela vasta dimensão que assume e pela velocidade com que se
propaga.2 Em Portugal, a prevalência de sobrepeso/obesidade infantil é de cerca
de 31,5%, apresentando as raparigas uma percentagem mais elevada, excepto na
faixa dos 7,5 e dos 9 anos, respectivamente.3 Estes resultados reflectem a
tendência geral da Europa, onde os países do sul apresentam as prevalências
mais elevadas, quando comparados com os países do norte.4 Há ainda uma
coincidência com os resultados do estudo realizado em 13 países europeus,
Estados Unidos da América (EUA) e Israel, onde se verificou que a prevalência
mais elevada de sobrepeso/obesidade pertencia aos EUA, Irlanda, Grécia e
Portugal.5
Em 2005, Melo et al constatou uma prevalência de sobrepeso/obesidade de 36% nas
crianças de quatro escolas do ensino primário da área do Lumiar.6
O Instituto Nacional de Saúde dos EUA define obesidade como uma excessiva
acumulação de energia sob a forma de gordura.7 O método de avaliação clínica
definido pela OMS como o mais fácil e fiável é a determinação do Índice de
Massa Corporal (IMC) – quociente entre peso e o quadrado da altura – um
indicador da adiposidade e de possíveis complicações secundárias. Este método é
utilizado nas crianças a partir dos 2 anos de idade. O IMC não tem em conta a
grande variação na distribuição da gordura corporal, o que significa que
indivíduos com o mesmo IMC podem ter diferentes níveis de gordura corporal e,
consequentemente, diferentes níveis de risco de complicações metabólicas.
A percentagem de massa gorda (PMG) é também um método de avaliação clínica da
obesidade, que corresponde à gordura corporal total expressa em temos de
percentagem do peso corporal total. Este parâmetro permite identificar
objectivamente os indivíduos obesos com maior risco metabólico. Ainda se
encontram em curso estudos para a determinação correcta da PMG nas crianças e
uma definição exacta dos valores que determinam obesidade nas diversas idades.
As tabelas de percentis da PMG referência para crianças propostas por McCarthy8
são as consideradas actualmente.
A obesidade está associada a um largo espectro de patologias de carácter
crónico que diminuem a esperança de vida, como doenças cardiovasculares,
diabetes mellitus e problemas osteoarticulares.9 Estas doenças, anteriormente
características dos adultos, são agora diagnosticadas com maior frequência nas
crianças.
A prevenção da obesidade, o seu diagnóstico e tratamento precoces são metas
fundamentais para qualquer programa de saúde, sobretudo na área
pediátrica.10,11
Este estudo teve como objectivo principal determinar a prevalência de
sobrepeso/obesidade numa população em idade escolar e como objectivos
secundários avaliar se houve aumento da prevalência de sobrepeso/obesidade nos
últimos quatro anos, se existe correlação entre IMC, PMG, género e idade, assim
como entre o IMC dos pais e dos filhos.
Métodos
Efectuou-se um estudo do tipo transversal, descritivo e analítico em alunos do
1.o ciclo de quatro escolas da área do Centro de Saúde do Lumiar (CSL). Estas
escolas foram escolhidas atendendo a um estudo realizado em 2005,6 abrangendo
as mesmas escolas, os mesmos equipamentos de medição e o mesmo grupo etário. A
amostra finita incluía as 862 crianças inscritas nas escolas. Foi calculada uma
amostra estratificada proporcional (n = 671), atendendo à escola, turma, sexo e
idade, para um nível de confiança de 95%, mantendo proporção de 36%
(prevalência de sobrepeso/obesidade obtida em 2005),6 precisão de 2% e ajuste
para taxa de não resposta de 25%. Foram autorizadas a participar no estudo um
total de 623 crianças. O estudo decorreu entre Agosto de 2009 e Novembro de
2010. O projecto de investigação foi autorizado pela direcção do ACES Lisboa
Norte, pela comissão de ética da Maternidade Dr. Alfredo da Costa e pelos
encarregados de educação das crianças participantes. A escolha do grupo etário,
à semelhança de 2005, teve em conta características fisiológicas como o rebound
de massa gorda aos 6 anos12 e por ser este o período mais favorável para o
estabelecimento de estratégias preventivas.13
Neste estudo a obesidade constituiu a variável dependente, tendo sido avaliados
como indicadores o IMC e a PMG. As variáveis independentes incluídas neste
estudo foram a idade, o género e o IMC dos pais das crianças. Os dados
antropométricos foram avaliados com as crianças parcialmente vestidas e sem
sapatos. A altura foi medida usando um estadiómetro. O peso e a PMG foram
avaliados com balança de escala electrónica, com precisão de 100 g, com método
de bioimpedância eléctrica bipolar (Tanita InnerScan Body Composition Monitor®
modelo BC-533®, precisão 0,1%).
O IMC foi calculado segundo a fórmula peso/altura2 (kg/m2). A definição de
sobrepeso e de obesidade baseou-se nas tabelas de percentis do Instituto
Nacional de Saúde dos EUA, conforme recomendado pela Direcção-Geral da Saúde
(DGS), que correlaciona o IMC com as tabelas de percentis.14,15
Definiu-se obesidade se IMC ≥ percentil 95 e sobrepeso se percentil 85 ≤ IMC <
percentil 95 e eutrofia se percentil 5 ≥ IMC < 85. Quanto à PMG, definiu-se
excesso de massa gorda e obesidade com base nas curvas de percentis referência
para crianças,16 que define obesidade se PMG ≥ percentil 95 e excesso de
gordura se percentil 85 ≤ PMG < percentil 95.
Realizou-se um questionário somatométrico aos pais das crianças avaliadas,
auto-preenchido, previamente validado, determinando-se posteriormente o IMC dos
pais. Considerou-se, pelas tabelas de referência da OMS para os adultos,17 as
seguintes categorias: baixo peso 10 ≤ IMC < 20, eutrófico 20 ≤ IMC < 25,
sobrepeso 25 ≤ IMC < 30, obesidade grau I 30 ≤ IMC < 35, obesidade grau II 35 ≤
IMC < 40, obesidade grau III - IMC ≥ 40. A análise estatística foi realizada
utilizando o software informático SPSS 16 for Windows®. Por não se verificar
normalidade na amostra, utilizou-se o teste de correlação de Spearman para
avaliar a correlação entre as variáveis, o teste de Kruskal-Wallis para avaliar
diferenças significativas entre as variáveis de estudo (dependentes e
independentes) e o teste de Mann-Whitney para avaliar se a distribuição das
variáveis em estudo se alterava para as diferentes categorias da variável de
cruzamento. O valor aceite do erro alfa foi de 0,05. No presente trabalho é
apresentada ainda uma análise estatística descritiva e inferencial para
determinar a significância dos resultados apresentados.
Resultados
A amostra foi constituída por 623 crianças. As escolas seleccionadas, mantendo
a distribuição estratificada, foram: Escola do Alto da Faia (n = 173), Escola
da Ameixoeira (n = 136), Escola de São Gonçalo (n = 57) e Escola número 57 (n =
257). Da amostra faziam parte 301 (48,3%) rapazes (figura_1). As idades
variaram entre os 6 e os 12 anos. A moda foi de 7 anos e a mediana de 8 anos.
Associando o IMC com as tabelas de percentis, verificou-se que 15,7% das
crianças tinham sobrepeso e que 12,7% eram obesas, o que perfez uma prevalência
de sobrepeso/obesidade de 28,4% – IC95% [24,9%;31,9%] (Quadro_I).
Quanto à distribuição por género e idade, considerando os percentis de IMC,
verificou-se não haver diferença significativa de sobrepeso/obesidade entre o
sexo feminino e o sexo masculino (p = 0,612). No entanto, na faixa dos 6 anos
há mais raparigas obesas (2,5%, n = 8; 1%, n = 3) e na faixa dos 9 anos há mais
rapazes obesos (4,3%, n = 13; 2,2%, n = 7), embora sem significância
estatística (teste de Kruskal-Wallis, p = 0,117 para os rapazes e p = 0,162
para as raparigas). Na distribuição por escolas, verificou-se mais sobrepeso/
obesidade na Escola da Ameixoeira (37,5%) (Quadro_II), apesar desta não ser
significativa (teste de Kruskal-Wallis, p = 0.501).
Quanto à PMG, esta variou entre 9,1 e 46,6% (DP 5,98). Das crianças eutróficas
(pelo percentil de IMC), 425 (68,3%) tinham PMG entre os 12 e os 27%, com
mínimo 9% e máximo 30%, todas as crianças com sobrepeso tinham PMG entre os 16
e os 33% e todas as crianças obesas tinham valores superiores a 23% (figura_2).
Quanto aos percentis de PMG, 30,3% das crianças tinham excesso de massa gorda
ou obesidade – IC95% [26,7%;33,9%] (quadro_I), também sem predomínio de género
(feminino 14,7%, n = 92 e masculino 15,5%, n = 97). Verificou-se que a
diferença na prevalência de sobrepeso/obesidade, quando avaliada pelo IMC ou
pela PMG, é estatisticamente significativa (p = 0,003).
Através do teste de Correlação de Spearman, constatou-se que a idade tinha uma
correlação positiva fraca/média com as variáveis IMC (correlação 0,212) e PMG
(correlação 0,125).
Constatou-se uma correlação positiva forte entre a PMG e o IMC (correlação de
Spearman – correlação 0,893; p < 0,001).
Responderam ao questionário 60% dos pais (376 pais e 378 mães), verificando-se
uma prevalência de 46% de sobrepeso/obesidade (55% dos pais e 27% das mães),
como demonstrado no Quadro_III.
Relativamente à relação entre iguais características nutricionais dos dois
progenitores com as crianças verificou-se que: pais e mães eutróficos tinham
filhos eutróficos em 84,4% dos casos, e pais e mães com sobrepeso/obesidade
tinham filhos com sobrepeso/obesidade em 36,4% dos casos. Aplicando o teste de
Kruskal-Wallis, verificou-se que as diferenças entre as constituições dos
filhos em relação às mães e aos pais eram significativas (p < 0,001 para pais e
p = 0,010 para mães).
Com o objectivo de avaliar a influência do factor hereditariedade no IMC das
crianças da amostra, foi utilizada a correlação de Spearman, verificando-se uma
correlação positiva fraca entre o IMC dos filhos e os IMC dos pais e das mães a
um nível de significância de 0,01 (correlação 0,175 e 0,145, respectivamente).
Discussão
De acordo com a classificação de obesidade segundo percentis de IMC recomendada
pela DGS,16 determinou-se uma prevalência de sobrepeso/obesidade de 28,4%,
(IC95% [24,9%;31,9%]) com uma distribuição praticamente homogénea entre ambos
os sexos. Atendendo aos percentis de PMG, a prevalência de sobrepeso/obesidade
foi de 30,3% (IC95% [26,7%;33,9%]).
Convém salientar a ausência de consenso relativamente à classificação de
obesidade em crianças e adolescentes, ao contrário dos adultos.6,19 Para além
disso, a classificação deve atender à especificidade do país. Uma vez que as
orientações técnicas emitidas pela DGS para a classificação do IMC segundo a
idade compreendem uma faixa etária dos 2 aos 20 anos, teve-se em conta esta
classificação.
A comparação com o estudo de Padez3 é difícil, uma vez que nesse estudo não só
a definição de sobrepeso/obesidade considerou os valores absolutos do IMC mas
também as idades estudadas foram ligeiramente diferentes. No entanto, sendo o
estudo de Padez3 uma referência, pode-se afirmar que na amostra estudada a
prevalência é inferior à nacional. Por outro lado, não se verifica um real
predomínio do sexo feminino como tinha sido determinado por Padez.3 No que
consta ao estudo de Melo,6 relativo às mesmas escolas e grupo etário,
verificou-se uma redução da prevalência estatisticamente significativa (Teste
de Mann Whitman aplicados à prevalência de sobrepeso/obesidade versus ano de
estudo – p = 0,003), que poderá dever-se não só ao facto de se tratar de uma
população diferente, mas também aos diferentes programas alimentares
implementados desde então no âmbito da Saúde Escolar.
Verificou-se que a idade tem uma correlação positiva fraca/média com o IMC e
PMG, o que significa que quanto maior a idade das crianças, maior o IMC e a
PMG, o que está de acordo com a fase pós-rebound de massa gorda que ocorre aos
6 anos.
Quanto à caracterização de obesidade verificou-se que, embora os valores de
referência de PMG que definem obesidade não estejam totalmente definidos para a
criança, a determinação da PMG é útil para a definição de obesidade. Neste
estudo, visou-se avaliar a relação de PMG com a constituição nutricional, e de
facto constatou-se que todas as crianças com sobrepeso tinham PMG entre os 16 e
os 33% e que todas as crianças obesas tinham valores superiores a 23%, o que
vai de encontro à afirmação da DGS.14 O facto das crianças portuguesas de sexo
feminino apresentarem valores de pré-obesidade e obesidade superiores às do
sexo masculino não foi verificado neste estudo. Não pode ser excluído o facto
de que estas diferenças se devam à maturidade e evolução física,
necessariamente diferentes entre os rapazes e as raparigas deste grupo etário,
o que vai de encontro ao facto de não haver diferença relativamente à
prevalência de sobrepeso/obesidade quanto aos percentis de PMG entre género.
Valores díspares têm sido também encontrados em outros estudos.4,20
Neste estudo, verificou-se diferença estatisticamente significativa na
determinação da prevalência de sobrepeso/obesidade pelos percentis de PMG
(30,3%) ou de IMC (28,4%), provavelmente relacionada com as variações de massa
gorda inter-individuais.
Finalmente, na avaliação da relação entre o IMC do pai e da mãe e o IMC dos
filhos verificou-se que, globalmente, esta relação se mostra significativa; no
entanto, pelo seu baixo valor, esta análise sugere que, para além de uma causa
genética, também a causa comportamental/ambiental, tanto no que se refere aos
componentes alimentares como à actividade física, terá influência. Assim, de
acordo com os resultados obtidos, apesar de não poder ser excluída a
hereditariedade, infere-se a força do ambiente familiar na evolução do perfil
de IMC dos alunos. Garver explica que não há consenso quanto à contribuição
relativa da hereditariedade e do ambiente familiar.21 Da mesma forma, Whithaker
verificou ser difícil distinguir a hereditariedade dos factores ambientais,
pois ambos podem exercer influência quando os outros membros da família são
obesos.22
Embora tenhamos encontrado uma redução da prevalência de sobrepeso/obesidade de
36% para 28,4%, a prevalência é ainda elevada.3,6 Os resultados deste estudo
reforçam a ideia que a obesidade infantil continua a ser um problema
prevalente. A sua importância advém não só do facto de afectar seriamente as
crianças, mas também de implicar elevada probabilidade de persistência na idade
adulta quando adquirida na infância, evidenciado por estudos epidemiológicos de
follow up a longo prazo,22 sendo a prevenção e o diagnóstico precoce essenciais
para o seu combate.
Dos dois métodos utilizados neste estudo para identificação de sobrepeso/
obesidade, o IMC é o mais fácil de aplicar na prática clínica de forma
universal. Ainda assim, métodos para determinar a PMG mais acessíveis e
fiáveis, equiparáveis à referência bioimpedância tetrapolar, como a
bioimpedância eléctrica bipolar,23 estão cada vez mais disponíveis, pelo que
esta deverá progressivamente complementar avaliação da constituição
nutricional.
Destacamos o elevado número de crianças avaliadas e pais que aceitaram
participar no estudo. Salientamos ainda a elevada sensibilidade dos aparelhos
usados para a aquisição dos dados somatométricos e o facto das condições de
recolha de dados terem sido estáveis ao longo do tempo, sempre realizadas pelos
mesmos avaliadores.
Como limitações destacamos o facto dos dados somatométricos dos pais não terem
sido obtidos de forma objectiva. A selecção da amostra foi condicionada pela
autorização dos pais, no entanto esta já estava pré-ajustada para assumir uma
taxa de não resposta de 25%.
Os objectivos propostos foram devidamente cumpridos. Para além dos resultados e
reflexões apresentados neste trabalho, a identificação das crianças com
sobrepeso/obesidade em cada escola permitiu referenciá-las à equipa de Saúde
Escolar, para serem devidamente orientadas e tratadas, dando continuidade ao
trabalho iniciado em 2005 por Melo et al.6 Deste modo, será possível realizar
outros estudos com vista a determinar as particularidades inerentes à população
de cada escola, nomeadamente contexto alimentar e actividade física, com vista
à criação de programas de acção específicos, tendo por base o trabalho já
iniciado pela equipa de Saúde Escolar.