Tabaco nas crianças e jovens: qual o papel dos cuidados primários?
CLUBE DE LEITURA
Tabaco nas crianças e jovens - qual o papel dos cuidados primários?
Smoking in children and adolescents - what is the role of primary care
services?
Joana Costa Gomes
USF Lagoa, Centro de Saúde da Senhora da Hora
Patnode CD, O’Connor E, Whitlock EP, Perdue LA, Soh C, Hollis J. Primary care-
relevant interventions for tobacco use prevention and cessation in children and
adolescents: a systematic evidence review for the U.S. Preventive Services Task
Force. Ann Intern Med 2013 Feb 19; 158 (4): 253-60.
Introdução
A redução do consumo de tabaco por crianças e jovens pode ser alcançada
prevenindo o início do consumo e promovendo a cessação tabágica nestes grupos.
Até ao momento não foi estabelecida, no entanto, a efectividade das estratégias
de prevenção do consumo e promoção da cessação aplicadas no contexto dos
serviços de saúde. O objectivo desta revisão sistemática foi analisar a
evidência existente em relação à efectividade de estratégias de prevenção de
consumo e de promoção da cessação tabágica em crianças e jovens, no contexto
dos cuidados de saúde primários (CSP).
Métodos
Foram colocadas três questões centrais para as quais se pretendeu obter
resposta: 1 – Será que estratégias aplicadas ao nível dos CSP desenhadas para
prevenir consumo de tabaco ou promover o seu abandono em crianças e
adolescentes melhoram os resultados em saúde e reduzem os consumos na idade
adulta? 2 – Será que estas estratégias previnem de facto o consumo ou melhoram
as taxas de cessação? 3 – Que efeitos adversos têm estas estratégias? Foi
realizada revisão sistemática com metanálise da literatura com selecção dos
ensaios clínicos que respeitavam os critérios de inclusão previamente
estabelecidos. Foram incluídos ensaios clínicos cuja população alvo fossem as
crianças/jovens e/ou os seus pais; relevantes nos cuidados primários; que
tivessem grupo de controlo e com pelo menos 6 meses de seguimento. Os
resultados foram agrupados em ensaios que avaliaram prevenção de consumo;
ensaios que avaliaram cessação tabágica (intervenções comportamentais e
farmacológicas) e ensaios que avaliaram prevenção e cessação em simultâneo
(combinados). Foram também avaliados os potenciais malefícios das intervenções.
Resultados
Foram avaliados 19 ensaios clínicos. Os ensaios combinados (prevenção e
cessação) obtiveram um RR de 0,91 (IC 95% 0,81 – 1,01). Em relação às
intervenções comportamentais para prevenir consumo, o RR combinado foi de 0,81
(IC 95% 0,70 – 0,93), favorecendo a intervenção, e os ensaios que avaliaram
intervenções comportamentais de cessação tabágica obtiveram um RR de 0,96 (IC
95% 0,90 – 1,02). Não foi encontrado benefício significativo da bupropiona aos
seis meses. Nenhum ensaio avaliou o potencial malefício das intervenções
comportamentais e os resultados dos três estudos que avaliaram malefícios da
bupropiona obtiveram resultados conflituosos.
Discussão
Os resultados obtidos sugerem que as intervenções ao nível dos CSP desenhadas
para prevenir o início do consumo de tabaco são as únicas com efectividade
demonstrada no grupo das crianças e jovens. A ausência de resultados
estatisticamente significativos em relação às outras intervenções pode estar
relacionada com a parca evidência existente em relação a estas faixas etárias.
A forma como foi aferido o estado de fumador (auto-declaração) pode ter
influenciado os resultados dos estudos e a heterogeneidade de medidas
utilizadas para avaliar os outcomes prejudicam a capacidade de comparação e
generalização dos mesmos.
COMENTÁRIO
A carga de doença associada ao tabagismo é um importante problema de saúde
pública.1 Ao longo do tempo, várias medidas têm sido postas em prática, quer
visando prevenir o início do consumo de tabaco, quer pretendendo promover a
cessação tabágica, alertando para os seus potenciais malefícios a curto e a
longo prazo.2 Em Portugal, estas medidas têm passado ainda pela emissão de
legislação regulando o consumo de tabaco em locais públicos (In Diário da
República, 1.ª série – N.º 156; Lei 37/2007 – 14 de Agosto de 2007). A maior
parte dos estudos realizados visam, no entanto, a população adulta para a qual
a combinação de farmacoterapia com intervenção comportamental parece ser mais
eficaz.3,4 Para as crianças e jovens, faixa etária onde muitas vezes se inicia
o consumo e para a qual os fármacos não estão aprovados, não existe clara
evidência das intervenções que poderão ter verdadeiro benefício.5,6 De acordo
com outros autores, pouco está a ser feito no sentido de proteger
especificamente este grupo dos malefícios do tabaco.6
A consulta de Saúde Infantil, na qual se inclui a consulta do adolescente,
representa uma porção importante da actividade do médico de família. Desta
consulta faz parte a abordagem sistemática dos comportamentos de risco, nos
quais deve ser incluído o consumo de tabaco. Dentro da multiplicidade de
tarefas que englobam estas consultas é crucial que o clínico esteja ciente do
impacto que a sua intervenção terá na criança ou jovem a que se dirige, de
forma a aumentar a eficiência da consulta, ou seja a optimização da relação
entre o tempo e o impacto das intervenções.
De acordo com esta revisão sistemática, as intervenções que visam a prevenção
do início do consumo são as únicas, de entre as avaliadas, que poderão ter
benefício e, neste sentido, parece adequado manter esta tarefa como parte
integrante da consulta em CSP. Não obstante, os estudos avaliados assentam, na
sua maioria, em intervenções sistematizadas e não na intervenção oportunística
no contexto da consulta. De facto, dos 10 ensaios clínicos que avaliaram este
tipo de intervenção, seis basearam-se essencialmente em material didáctico
enviado para a residência dos participantes, três englobavam intervenções
simultâneas nos jovens e progenitores e um visava exclusivamente os
progenitores, representando pouco o contexto da consulta em CSP. Além disso, é
de salientar que os resultados deste estudo indicam que será necessária
intervenção em 50 crianças ou jovens para evitar que 1 desses indivíduos venha
a consumir tabaco, o que mais uma vez reforça a maior eficiência das
intervenções de base populacional, por oposição à intervenção em consulta.
Os ensaios avaliados não permitem também estabelecer que impacto, em termos de
saúde dos indivíduos, poderão ter as intervenções aplicadas às crianças e aos
jovens, emitindo apenas considerações em relação a prevalência de consumo ou
taxa de cessação, uma vez que não foram encontrados estudos que visassem esses
end-points. Da mesma forma, não foi possível a resposta à pergunta colocada em
relação às taxas de consumo na idade adulta, o que poderia ajudar a perceber o
efeito a longo prazo das intervenções em idades precoces.
Que papel tem então o médico de família na redução do impacto do tabagismo em
idades precoces? De esclarecimento? De alerta? Mais estudos, que incluam a
consulta médica como intervenção, são necessários para estabelecer a abordagem
correcta desta temática, não sendo no entanto de esquecer que o papel do médico
de família vai para além da consulta, englobando também a actuação na família e
na comunidade.7